Um deserto de ideias: sobre a campanha por uma mulher negra no STF
A bandeira mínima do movimento comunista sobre o sistema de justiça brasileiro é uma disputa aberta para o estabelecimento de eleições periódicas e mandatos revogáveis para todos postos de comando em poderes públicos, inclusive em todos os tribunais, onde os juízes serão eleitos pelo povo.

Protesto de enfermeiros contra a suspensão da lei que fixou piso salarial da categoria, em Brasília. Reprodução/Foto: Brenda Ortiz/G1.
Por PA e Levi Gama
Com o anúncio da aposentadoria do Ministro Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), setores diversos do dito campo “progressista” do mundo político e jurídico iniciaram uma campanha “em defesa da nomeação de uma mulher negra” para a vaga deixada no STF.
O último ato do Ministro Barroso antes de efetivar sua aposentadoria é algo digno de nota: O Ministro proferiu um voto favorável à descriminalização do aborto em até 12 semanas de gestação, tema que se discute na ADPF 442. Esse voto final é marcante no que diz respeito ao espaço institucional ocupado pelo STF em meio às disputas de diversos grupos de interesse sobre os rumos da atuação do Estado burguês. O mesmo Ministro Barroso cujo voto mencionado se coloca em defesa dos direitos sociais e reprodutivos das pessoas que gestam, foi também uma figura que se posicionou reiteradas vezes em favor da precarização das relações de trabalho que desproporcionalmente prejudicam mulheres negras e outros setores oprimidos do povo trabalhador. É igualmente notável que somente agora o Ministro tenha proferido esse voto, em um tema alvo de inúmeras mobilizações populares ao longo de anos, logo antes de se aposentar e sem ter de firmar compromisso algum com a continuidade dessa bandeira de luta em um espaço institucional que seguirá discutindo a questão.
Na conjuntura política posterior a 2016 o Supremo Tribunal Federal por diversas vezes ganhou destaque como grande mediador e definidor dos rumos de disputas institucionais no cenário político brasileiro. Foi fiador do impeachment, ratificou as contrarreformas trabalhistas e da previdência, validou a prisão de Lula em segunda instância com seu consequente afastamento das eleições presidenciais de 2018. Paralelamente, interviu nacionalmente para garantia de patamares mínimos de isolamento social durante a pandemia, pautou uma pretensa moderação da violência policial na chamada ADPF das Favelas e na descriminalização do porte pessoal da maconha, anulou a sentença condenatória contra Lula e chancelou a legalidade de sua participação nas eleições presidenciais de 2022.
Nesse sentido, até mesmo seria pertinente uma reflexão sobre o quanto diversas mobilizações populares e sociais do chamado campo progressista dos últimos 20 anos giraram em torno da apresentação de demandas ao STF. Em certa medida, é sintomático que um órgão jurisdicional do Estado Burguês que é insuspeito de radicalidade provoque maior temor da extrema direita e tenha maior protagonismo nacional na repressão a mobilizações deste campo do que o conjunto das organizações de esquerda em solo nacional.
Temos aí o que é discutivelmente o ponto de maior destaque recente do STF: os processos movidos em torno das movimentações golpistas associadas ao 8 de janeiro e à figura de Jair Bolsonaro. É esta a mais recente série de eventos em que o papel de mediação do Supremo, sua função fundamental enquanto um “garantidor de estabilidade” da ordem burguesa, foi colocada de modo explícito. A mais alta corte do país aplicou penas severas contra as figuras mais xucras, toscas ou publicamente associadas às mobilizações golpistas: Bolsonaro, seus aliados mais explícitos e diversos participantes “da base” das ações golpistas de 8 de janeiro. Contudo, este mesmo Supremo Tribunal Federal que tanto louva “O Estado Democrático de Direito” também muito se esforça para pagar pedágio às cúpulas militares que se associaram ao golpe. Comandantes que ouviram propostas golpistas e nada fizeram, que prevaricaram e no mínimo foram coniventes com mobilizações golpistas, são tratados como heróis legalistas que atuaram (através do silêncio e da inação) em defesa da república.
Em suma, a mais alta corte do país atua para punir aqueles que foram face pública ou base de uma trama golpista, mas não ousa se confrontar com a estrutura militar que certamente foi conivente com a trama e que permanece em posição para apoiar mobilizações futuras.
O STF, apesar de ocasionalmente cumprir um papel de contrabalanço a investidas reacionárias de setores declaradamente conservadores da burguesia, cujos integrantes no parlamento tem sido os membros mais vocalmente melindrados, cumpre há décadas o papel de linha de frente dos interesses econômicos e políticos da burguesia. Usa de seu poder supra-eleitoral e de regulação constitucional dos demais poderes para para atacar conquistas dos trabalhadores e direitos trabalhistas (como o piso salarial da enfermagem e, mais recentemente, o vínculo trabalhista), dar legitimidade a privatizações (como no caso da Vale) e regular os termos de disputa política eleitoral a favor da Burguesia (como na chancela do Impeachment de 2016, bem como na prisão e posterior libertação de Lula).
Se trata de uma instituição das mais aristocráticas do Estado burguês brasileiro, não apenas por causa de sua composição de gênero e cor, mas devido também à longevidade dos mandatos de seus integrantes bem como pela abrangência de seus poderes de intervenção política e judicial, aliados a um status de quase invulnerabilidade política de seus membros a partir de pressões e mobilização popular.
Dado esse panorama, convém destacar que o histórico anterior de indicações petistas ao STF não é dos mais favoráveis no que diz respeito às inúmeras lutas e interesses da classe trabalhadora. A título de exemplo: Fachin, Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Fux foram todos indicados por Lula ou Dilma e votaram de modo decisivo para a prisão de Lula em 2018; Zanin, ainda no seu primeiro mês de exercício como Ministro indicado por Lula, votou a favor da condenação em 2 anos de reclusão de um homem acusado de furtar “um macacão hidráulico”; tudo isso sem nem entrarmos no mérito da atuação de figuras como Joaquim Barbosa ou do voto de Fux no julgamento de Bolsonaro.
Nesse sentido, a campanha abstrata por “uma ministra negra no STF” pouco diz e dialoga com as inúmeras demandas da classe trabalhadora no presente momento e mesmo com o próprio histórico de indicações ao STF por parte do partido dos trabalhadores.
Como bem pontuou o camarada Jones Manoel em um recente vídeo sobre este tema, a mera alusão à figura de Joaquim Barbosa para rechaçar a proposta de uma pessoa negra é apenas um truque argumentativo para cercear o debate através de uma retórica racista. O conjunto das indicações petistas ao STF tem sido de figuras, na média, pouco combativas e essencialmente conservadoras no que diz respeito às demandas da população trabalhadora e oprimida do país, independente de serem brancos ou negros.
Ao mesmo tempo é também sintomático da atual conjuntura que a mais vocal das campanhas por uma ministra negra sequer se aprofunde no mérito de que tal candidata seja uma pessoa com compromisso histórico de luta em defesa de um projeto antineoliberal, antirracista, contra as privatizações e em defesa dos direitos trabalhistas, contra a escala 6x1, para que, uma vez empossada do cargo, pudesse lutar dentro do STF alinhada a esses princípios. Mas não, nem mesmo enquanto falsas promessas o chamado campo progressista consegue se entusiasmar com tais bandeiras.
Fato é que a presente campanha é nos melhor dos casos ingênua e na pior cínica. Ingênua pois, de fato, seria positiva a indicação de uma mulher negra ao STF que pudesse atuar ao menos de modo defensivo nos interesses da população trabalhadora, negra, indígena, das mulheres e LGBTI's no Supremo Tribunal Federal. Uma figura que atuasse de modo constante em prol da limitação da repressão burguesa via aparato penal, em prol de direitos trabalhistas, demarcação de terras indígenas, da garantia de direitos reprodutivos básicos e etc. Seria uma campanha na qual inclusive os comunistas poderiam se somar com o objetivo de explicitar as contradições da atual presidência, promover avanços na compreensão da classe trabalhadora sobre o papel cumprido pelo aparato de justiça burguesa e até mesmo de sua organização em prol de demandas diversas. Contudo, fato é que nada indica o menor interesse de Lula em indicar qualquer figura negra combativa ao STF.
O histórico de indicações de Lula ao STF é movido por cálculos eleitorais, pela busca de acordos com a burguesia em prol de “governabilidade” ou para consagrar figuras entendidas (erroneamente ou não) enquanto aliados do Partido dos Trabalhadores. A demanda abstrata por uma pessoa negra no STF não tem sido encampada por setores cuja mobilização atende de modo relevante a esses critérios. Razão pela qual uma parte do engajamento na campanha por uma ministra negra no STF é mero cinismo de quem sabe os critérios para a próxima indicação de Lula, sabem que o apoio abstrato a indicação de uma pessoa negra nada impacta em termos práticos perante o governo e buscam apenas autopromoção carreirista de determinadas figuras que nunca manifestaram particular compromisso com as demandas da classe trabalhadora ou até mesmo com uma agenda minimamente antirracista.
Novamente, aqui não negamos que seria um elemento positivo a indicação de uma mulher negra ao STF que atuasse enquanto porta-voz do conjunto de demandas da classe trabalhadora. Seria uma campanha em torno da qual os comunistas poderiam e deveriam se mobilizar e apoiar.
Ao mesmo tempo, que o grande debate das esquerdas no presente momento gire em torno da indicação de um único nome ao STF é também reflexo do momento de morte e inanição da combatividade deste campo. É uma perspectiva coerente com um campo político que promove “manifestações em defesa do STF” e que praticamente abriu mão do debate crítico sobre o papel do sistema judiciário na repressão e controle da classe trabalhadora, que deixa as demandas sobre transformações ou até mesmo “reformas” ao sistema de justiça na mão de figuras torpes da extrema direita.
Ainda que fosse uma medida pontual positiva, a nomeação individual de uma figura ao órgão mediador máximo do Estado burguês não é “uma grande bandeira de luta” da classe trabalhadora. O judiciário brasileiro é profundamente aristocrático, misógino e racista em seu funcionamento cotidiano. Ele confere legitimidade à barbárie estatal, à precarização do trabalho e à repressão de classe diariamente. Que ele ganhe alguns elementos críticos, progressistas e comprometidos com a classe trabalhadora é positivo mas isso não altera sua dinâmica geral, como se comprova pela existência de pontual de promotores, juízes, defensores públicos e afins que por vezes se reivindicam como “de esquerda” ou até mesmo mais radicais; figuras que tendencialmente são silenciadas ou pressionadas institucionalmente em prol de uma atuação que seja estritamente limitada pelos interesses institucionais da manutenção da ordem burguesa. O próprio modelo de seleção de seus membros favorece a seleção de quadros “técnicos” que atuam de modo carreirista, mais preocupados com suas posições individuais que com qualquer alinhamento político, além de que seu desenho institucional é feito justamente para promover a repressão classista independente das posições individuais deste ou daquele membro.
A bandeira mínima do movimento comunista sobre o sistema de justiça brasileiro é uma disputa aberta para “o estabelecimento de eleições periódicas e mandatos revogáveis para todos postos de comando em poderes públicos, inclusive em todos os tribunais, onde os juízes serão eleitos pelo povo”. Qualquer compromisso inferior a este seria insuficiente e mesmo essa bandeira só se tornaria factível através de um intenso processo de mobilizações e lutas de amplos setores da classe trabalhadora.
Ao fim e ao cabo, é tarefa dos comunistas conscientizar todo trabalhador comprometido com o fim das privatizações, interessado no avanço das leis trabalhistas, que quer o fim o da escala 6x1, que quer serviços públicos de qualidade, que esses avanços não serão fruto da nomeação de figuras iluminadas ao STF ou mesmo ao parlamento, assim como informá-los de que o STF é um inimigo intransigente na luta por essas pautas. É somente através da organização e mobilização política do proletariado que trincheiras pontuais podem ser arrancadas da burguesia e do Estado.