As escolas cívico-militares excluem estudantes, não garantem sua segurança e adoecem professores

No último dia 30/05, uma professora veio à óbito no Paraná após ser pressionada e questionada sobre seus “resultados”. O modelo da escola era a cívico-militar, que vem ganhando espaço e sendo implementada em diversos outros estados do país.

24 de Junho de 2025 às 21h00

O jornal O Futuro estende toda força e solidariedade à família e colegas da professora Silvaneide Monteiro Andrade, falecida em 30 de maio, após um infarto devido à sobrecarga de trabalho e cobranças desmedidas. Reprodução/Foto: redes sociais.

No último dia 30 de maio, uma professora da rede básica de ensino do Paraná, veio à óbito devido a um mal súbito. Silvaneide Monteiro Andrade tinha 56 anos e sofreu um infarto fulminante dentro da Escola Cívico-militar Jayme Canet, em Curitiba, após ter sido chamada a uma reunião com a equipe pedagógica para discutir sobre seus “maus resultados” docentes.

Após a implementação do modelo cívico-militar, o governo do estado Paraná, através da SEED (Secretaria de Estado da Educação), passou a exigir a utilização de plataformas digitais contratadas que impõem “metas” que os professores devem atingir, com a intenção de garantir o aumento de “resultados” educacionais.

De acordo com o APP-Sindicato (o sindicato dos professores do estado do Paraná), essa reunião feita pela equipe pedagógica, tem o papel de pressionar os professores para o uso das plataformas e para que as metas sejam atingidas, independentemente do que o professor está realizando dentro da sala de aula.

“A morte da professora Silvaneide tem causado uma grande comoção em toda a categoria, que tem relacionado às circunstâncias do óbito, às pressões e às condições de trabalho que temos vivenciado (...) "Ela era professora de Língua Portuguesa, disciplina que tem sido exigida uma grande interação nas plataformas, com metas, o que tem trazido como consequência pressão, assédio e adoecimento". Disse a diretora do sindicato, Walkiria Mazeto.

Devido ao acontecido, professores e professoras decidiram se manifestar coletivamente como forma de protesto, se recusando a utilizar as ditas plataformas digitais durante uma semana. Esse “breque” da plataforma organizado pelos professores durou de segunda-feira (2) e se estendeu até a sexta-feira (6) da mesma semana.

Segundo grupos de professores no WhatsApp, Silvaneide não teria conseguido cumprir a meta de redações, levando à cobrança da equipe pedagógica que está submetida às plataformas educacionais adotadas pelo governo Ratinho Júnior (PSD).

"Ela infartou dentro da escola, dentro da sala da pedagogia, na frente de uma tutora. Foi chamada para prestar contas, porque não estava conseguindo dar conta das redações da plataforma e de todas essas cobranças absurdas que a gente sofre todos os dias", disse o professor de Filosofia, Paulo Vieira, atuante na rede estadual do Paraná.

O projeto de exclusão da educação das escolas cívico-militares

O modelo de escolas cívico-militares passou a ser promovido desde 2023 no Paraná sob o governo do Ratinho Júnior e tem servido como modelo para outros estados, como para o estado de São Paulo. Um modelo que, como se pôde observar, contribui para o adoecimento de profissionais da educação e que, infelizmente, contribuiu com o desgaste e o falecimento da professora Silvaneide.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PL), sancionou uma lei estadual complementar que promove a implantação das escolas cívico-militares no estado, inspiradas no modelo do Paraná. O projeto tem como um dos principais alvos as escolas que se encontram em regiões de maiores incidências de criminalidade.

Além de São Paulo, o governo do estado do Mato Grosso anunciou a construção de 25 novas escolas no estado que seguirão o modelo cívico-militar. O anúncio ocorreu após uma votação realizada com os pais, responsáveis e estudantes maiores de 16 anos realizada pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc) realizada no mês de maio deste ano.

A adesão do modelo cívico-militar também vem ganhando espaço se estendendo para o âmbito municipal, como é o caso de Rondonópolis. Isso porque o município agora passou a autorizar a implementação de escolas do modelo cívico-militares vinculadas à Secretaria Municipal de Educação.

O modelo é cívico-militar porque divide as competências da escola em duas esferas: a que cuidará da disciplina dos alunos, que é a militar; e a esfera necessariamente pedagógica, que é a esfera civil e será de responsabilidade dos profissionais da educação.

Voltando ao exemplo do estado de São Paulo, os militares serão selecionados e contratados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, mas o recurso público destinado para a contratação sairá da Secretaria da Educação.

Ou seja, uma parte do já escasso orçamento estadual para educação, que poderia estar sendo destinada para o aumento dos salários dos profissionais da educação, ou para a melhoria da infraestrutura escolar, que se encontra totalmente precarizada, será destinado para a contratação dos militares que atuarão nas escolas.

Os militares contratados serão os da reserva (aposentados) e de acordo com o projeto sua presença tem como objetivo garantir “que a disciplina seja um vetor da melhoria da qualidade de ensino”.

O fato de que a prioridade do projeto são escolas em locais com alto índice de criminalidade revela que, na verdade, não é a qualidade de ensino o seu objetivo final. Se assim o fosse, o projeto teria propostas de ensino-aprendizagem, consultas pedagógicas aos profissionais da educação, estudos de comprovação dos processos educacionais entre jovens e adultos e não apenas um projeto de disciplinarização de escolas que, pela lógica do projeto, são as que mais necessitam de disciplina e vigilância.

A segurança e a excelência das escolas militares é utilizada como pretexto para a construção das escolas cívico-militares. Em primeiro lugar, escolas militares são diferentes de escolas cívico-militares. A primeira possui administração ligada às Forças Armadas e seu planejamento é próprio delas, sem nenhuma ligação com o MEC. Os professores são altamente qualificados, bem remunerados e as escolas militares possuem, no geral, uma boa infraestrutura.

Ou seja, as escolas não são boas apenas por serem militares, mas porque são escolas que pagam salários dignos aos professores, possuem bons orçamentos, infraestrutura adequada, processos seletivos etc. Possuem bons índices não porque escolas militares são naturalmente boas, mas porque possuem uma organização e um planejamento que tem como consequência a entrega de bons resultados.

No entanto, a mesma coisa não acontece com as escolas cívico-militares, que nada mais são do que uma adaptação do tradicional ensino público. Nesse caso, a administração da escola ainda está submetida, no âmbito máximo, ao Ministério da Educação, mas algumas competências relacionadas à disciplina, regras de conduta e atividades extra-curriculares estarão nas mãos dos militares de dentro da escola. Escolas essas que manterão a infraestrutura semelhante às das demais escolas públicas: precarizada e insuficiente. Para o doutor em psicologia escolar e mestre em direitos humanos, Adilson Paes de Souza, importa-se o pior do sistema militar.

Quanto a segurança, que passa a ser terceirizada aos militares atuantes dentro da escola, mesmo que inicialmente sua presença seja aparentemente positiva para a segurança física da comunidade escolar, essa violência passa a ocupar lugar dentro das escolas, explica a doutora em educação Miriam Fábia.

As escolas cívico-militares provocam um tipo de violência e de seleção de conduta específica que costuma apagar ou silenciar diferenças, como as de gênero, raça, cor, classe e etnia. Ela constroi um ambiente propício à exclusão de liberdades individuais e de expressão de identidade dentro do ambiente escolar. Esse modelo se constrói a partir da utilização de fardamentos militares, o reforço dos papéis de gênero, a vigilância autoritária etc. Estudantes mais vulneráveis, como por exemplo os pertencentes à comunidade LGBTI+, podem se sentir coagidos a evadirem da escola devido à administração militar.

De acordo com especialistas, as escolas cívico-militares inclusive contribuem para o aumento da evasão escolar à medida que provocam uma mudança no público-alvo da escola para um público que se adapta ao modelo militar.

“Via de regra essas escolas têm vários tipos de violência, porque a militarização em si já é uma violência. Impor essas regras rígidas do quartel à escola já é uma violência, assim como negar a diversidade dos sujeitos, negar as diferentes formas de expressão. (...) Não há nenhum dado científico que diga que essas escolas se tornam mais seguras.” Argumenta a professora Miriam Fábia.

Na verdade, nos últimos anos, desde a implementação do projeto no Paraná pelo governo do Ratinho Júnior, diversas denúncias de violência têm chegado ao ministério público. Não apenas violências físicas, mas também intimidações, ameaças contra estudantes e até casos de violência sexual praticadas pelos militares em atuação nas escolas. O que demonstra que a violência acaba por ser transferida para dentro das escolas de outras maneiras.

As denúncias não se limitam apenas ao Paraná. Outros estados da federação, que também praticam o mesmo modelo de escolas cívico-militares, possuem casos de denúncia, como no caso do DF, que em 2022 teve uma de suas escolas cívico-militares como palco de denúncias de violência. O caso ocorreu no Centro Educacional 01 (CED 01) e um militar teria ameaçado “arrebentar” um estudante durante um protesto da própria comunidade escolar contra a exoneração da vice-diretora, que teria sido expulsa do cargo por criticar o tenente da PM.

No momento, mais de 100 escolas do estado de São Paulo irão aderir ao modelo. No entanto, a medida foi considerada inconstitucional pela Advocacia Geral da União (AGU) em parecer enviado para o STF, e está paralisada. O advogado-geral da União, Jorge Messias, diz que o projeto foi revisto pelo governo federal após notar “incongruências com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e com o Plano Nacional de Educação (PNE)".

O caso do estado de São Paulo chegou ao STF através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que exigia a suspensão do modelo devido ao seu caráter inconstitucional, por violar princípios da gestão democrática do ensino público, da autonomia pedagógica e da liberdade de ensino. Princípios esses ligados à LDB e ao PNE. A votação para a suspensão do projeto em São Paulo sofreu pedido de vista pela segunda vez no último mês de maio, desta vez pelo Ministro do Supremo Flávio Dino. Ou seja, além dos diversos problemas pedagógicos e educacionais, o projeto ainda possui problemas jurídicos e constitucionais à medida que conflitua com a LDB e com o PNE.

O modelo das escolas cívico-militares não apenas carecem de base científica que comprovem sua eficácia, como também a realidade prática demonstra que vão no sentido contrário da melhoria na qualidade do ensino no Brasil. O infeliz caso da professora Silvaneide é sintomático de um dos diversos problemas envolvendo esse tipo de escolarização.

Não apenas os estudantes, como também os profissionais da educação sofrem com a censura e o silêncio impostos pelo regramento e pela disciplina. Para além da questão diretamente ligada à liberdade de expressão e de ensino, o modelo cívico-militar faz com que professores também sofram de uma desvalorização profissional.

Em São Paulo, os militares da reserva que atuarem nas escolas receberão uma gratificação de R$ 5.692,40 ao mês. Esse valor poderá ser acrescido em 50% se o militar da reserva tiver patente de oficial ou coordenador. Do outro lado da moeda, o piso salarial dos professores é de apenas R$ 4.633,44.

É importante salientar que este modelo, em todos os estados em que foi implementado, sofreu fortes críticas e desaprovação dos profissionais da educação. Não à toa, quando o projeto foi votado na Assembléia Legislativa de São Paulo (ALESP), estudantes e professores de diversas categorias estiveram presentes e se manifestaram fortemente contra a aprovação do projeto. Os professores e as organizações estudantis se opõem a qualquer projeto de escola cívico-militar pois esta reduz o papel social da escola pública de questionamento e crítica para um papel de submissão disciplinante e autoritário.

A escola de que realmente precisa a classe trabalhadora

Se o objetivo do projeto fosse a melhoria da qualidade do ensino público no país, definitivamente não é através de um modelo carente de base científica e pedagógica, autoritário, exaustivo e que provoca o adoecimento de profissionais da educação.

A criminalidade que o projeto deseja combater tem sua raiz fora da escola, não dentro dela. Terceirizar a segurança da comunidade para militares da reserva resulta na verdade em outros tipos de violências, como as tratadas linhas acima.

De acordo com Otaviano Helene, professor do Instituto de Física da USP e ex-presidente do INEP, se o objetivo era utilizar da capacidade de trabalho de aposentados para contribuir com a melhoria da educação no nosso país, este objetivo seria mais “bem satisfeito se os aposentados convidados fossem professores, orientadores educacionais, psicólogos escolares, assistentes sociais ou outros profissionais com muito maior experiência com os problemas das escolas e de seus estudantes.”

Ainda de acordo com o professor, o projeto é, em seu fundamento, ruim. Não resolve nem a criminalidade, nem melhora a educação. Ele insiste dizendo que o orçamento para a educação do estado de São Paulo “destinado a remunerar professores e demais trabalhadores, à manutenção das escolas, à compra de materiais educacionais, entre tantas outras despesas típicas de um sistema educacional, não deve atingir sequer os quinhentos reais mensais por aluno.”

Ou seja, a escola pública da qual a maioria da classe trabalhadora utiliza sofre de inúmeros problemas já conhecidos por toda a população: falta dinheiro, infraestrutura, água encanada, salas que suportem o calor das mudanças climáticas, laboratórios, funcionários que não sejam terceirizados e precarizados, professores bem-remunerados e não sobrecarregados e entre dezenas ou dezenas de outros problemas.

É impossível, por exemplo, pensar uma melhoria significativa da educação pública sem o fim do Arcabouço Fiscal, o qual asfixia o investimento em ciência e educação no país, e inviabiliza o repasse adequado para estados e municípios através do FUNDEB; ou com o Novo Ensino Médio, que vem sendo mais um projeto que vai na contra-mão da melhoria do ensino público.

O subfinanciamento da educação brasileira parece abrir brechas para a promoção de projetos para a educação que nem de perto alteram os problemas estruturais que já atravessam gerações – inclusive para projetos de privatização. O modelo cívico-militar surge como uma dessas propostas que não apenas não resolvem os problemas da criminalidade e da segurança da qual se propõe a resolver, como pode provocar o aumento da violência dentro das escolas. Em resumo, não dá nenhum passo adiante em direção à construção de uma escola digna e popular.

Para que propostas desse gênero não cheguem às escolas, a responsabilidade do repasse financeiro do Estado e dos governos precisa ser repensada com maior seriedade e compromisso. A escola brasileira possui problemas que o modelo cívico-militar é incapaz de resolver e o problema do orçamento insuficiente e da desvalorização dos profissionais da educação, por exemplo, são muito mais antigos e, de acordo com os especialistas, são muito mais urgentes.