Cotas ribeirinhas: populações tradicionais lutam pela inclusão na UFPA

Movimentos ribeirinhos e rurais do Pará se reuniram com a reitoria da UFPA para protocolar pedido de cotas.

2 de Setembro de 2025 às 21h00

Raimundinho e Denise, moradoras de uma comunidade ribeirinha de Barcarena. Reprodução/Foto: Bruno dos Anjos Seixas.

Na manhã do dia 18 de agosto, os movimentos ribeirinhos e rurais do Pará estiveram reunidos com a Reitoria da Universidade Federal do Pará (UFPA) para entregar, oficialmente, as cartas de apoio para o protocolo de criação das cotas ribeirinhas no Processo Seletivo da UFPA. Com este ato, as populações ribeirinhas fazem uma dupla contestação: protestam contra sua exclusão histórica do ensino superior, e também da sua marginalização no discurso oficial, que deliberadamente oculta a Amazônia Real do presente em prol de uma Amazônia mítica do passado.

Para entender a relevância dessa luta e porque ela é um passo necessário na luta pela Universidade Popular, é necessário contextualizar quem são os povos ribeirinhos e sua importância no território amazônico, bem como os motivos que os levaram a ser repelidos no processo de modernização conservadora brasileira.

Uma outra (e radical) relação com o espaço

As populações ribeirinhas são apenas uma das múltiplas populações tradicionais características da região amazônica. Se tratam de pequenas comunidades que vivem às margens dos rios, em contato direto com a natureza, e que realizam principalmente a produção extrativista tanto para auto sustento como para venda. Denise, presente na reunião do dia 18, definiu esse modo de vida como “guardiões das águas” em virtude do permanente contato com a hidrografia amazônica. Portanto, se tratam de populações que não só estão fora da lógica da acumulação de capital, como também já provaram que podem desafiar essa lógica.

Entretanto, isso não significa que podem ser associados à vida rural ou que a “modernidade” não chega até eles. Boa parte das comunidades ribeirinhas estão localizadas às margens de agrupamentos urbanos - Denise e seu tio Raimundinho, por exemplo, moram em Barcarena, cidade englobada na Região Metropolitana de Belém, e sofrem os impactos ambientais e sociais da mineração agressiva que ocorre na cidade, como frisaram nesta entrevista ao Jornal O Futuro. Além disso, mesmo fora do perímetro urbano, as populações ribeirinhas estão sujeitas aos impactos de obras agressivas ao meio ambiente e que servem unicamente para incrementar o fluxo do capital. É o caso, por exemplo, da explosão de pedras submersas do Pedral de São Lourenço, obra proposta pelo governador Helder Barbalho e apoiada pelo governo federal, a qual se sustenta unicamente na “necessidade escoar a produção do Norte e Centro-Oeste” (conforme nota do Gov.br), desestruturando a sustentação de centenas de famílias ribeirinhas no processo.

Por situações como as descritas acima, mas que já se estendem por décadas, se tornou necessário não apenas a organização política das populações ribeirinhas, como também a necessidade de romper violências estruturais do Estado para conseguirem maior poder reivindicatório - o acesso à educação é um deles.

A histórica exclusão educacional contra os ribeirinhos

Como o modo de vida e a vivência dos povos ribeirinhos estão inseridos em uma lógica que ignora ou até confronta os interesses do capital, as classes dominantes sempre cercearam o mínimo acesso destas populações ao ensino formal, sendo necessárias grandes articulações populares para assegurar esse direito. Em Belém do Pará, um grande marco dessa luta ocorreu em 1996, quando foi arrancada, da Prefeitura, a criação da Escola Bosque e sua Fundação mantenedora. Localizada em Caratateua, uma das ilhas de Belém, a Escola foi um grande marco educacional por ter como proposta a plena integração entre educação e meio ambiente. Esta pedra angular, no entanto, esteve constantemente ameaçada pelo sucateamento, e neste ano, o atual prefeito de Belém, Igor Normando, extinguiu a Fundação Escola Bosque, deixando o estabelecimento como apenas mais uma escola da rede municipal.

Ultrapassando o âmbito do ensino básico e entrando no universitário, a situação também é difícil. Apesar de ter ramificações no interior do estado, o principal campus da UFPA segue sendo o de Belém, o que significa, para muitos ribeirinhos, a mudança para a cidade grande. Isso significa não apenas estar sujeito às imensas desigualdades e problemas urbanos da capital, mas também a discriminação dos habitantes da capital, historicamente “de costas para o rio” não só em sua geografia, mas também em sua cultura. A professora Iná Camila Favacho, ribeirinha de Baião e uma das dirigentes do movimento pelas cotas, resume essa forma de violência:

“[...] Eu acredito que todo mundo que fez essa migração, principalmente as mulheres que fazem essa migração para o estudo, passou pelo que eu passei também. A gente jogado aqui em uma cidade que a gente não conhece, novos costumes, novas comidas, as comidas são diferentes, os costeiros são diferentes, o tratar são diferentes, a gente vive em comunidade, nas comunidades ribeirinhas, então é tudo muito novo, e eu sempre falo isso quando estou conversando com os meus pares, que essa migração, que o estudo, ele também acaba desterritorializando, a gente sai, a gente perde grande parte dessa identidade quando a gente vem para cá, porque a gente precisa falar de uma maneira diferente, se vestir de uma maneira diferente, se portar de uma maneira diferente, porque senão sofremos bullying. [...]”

Além disso, integrantes das comunidades ribeirinhas destacam a necessidade de ter pessoas com vivência territorial adquirindo o conhecimento acadêmico para assistir suas comunidades com mais propriedade. Nesse prisma, a cota ribeirinha há de cumprir não apenas um papel de amenizador das históricas desigualdades amazônicas, como também o de estabelecer uma ligação íntima da instituição com o território. Denise ressalta a importância de ter profissionais nativos da terra como uma forma de valorizar a vivência local:

“[...] trazer para para dentro da nossa comunidade de volta nosso jovem formado, para que ele possa atuar dentro da nossa comunidade e assim… tem comunidade que ela tem uma distância um pouco maior, então geralmente não chega esse profissional lá, e quando chega um profissional ele tem uma outra vivência. Então quando a gente forma o filho do pescador, forma o indígena, forma o quilombola, e aí ele volta pra comunidade, ele consegue compreender porque ele vive aquela realidade, ele está inserido ali naquele contexto.”

Professora Iná Camila Favacho. Reprodução/Fonte: YouTube.

Desafios para uma universidade popular

As cotas ribeirinhas, como medida de inclusão de populações historicamente excluídas do ensino universitário, são necessárias a todos aqueles que intencionam uma universidade comprometida com os interesses da classe trabalhadora brasileira em toda a sua diversidade. Entretanto, é indispensável apontar que, enquanto política de inclusão social, as cotas, nem de longe, são o suficiente para afirmarmos que a universidade brasileira é verdadeiramente plural e acolhedora.

No âmbito do acesso, apesar de 20 anos de avanços, a população com diploma universitário mal chega a ⅕ do total segundo o IBGE, o que significa que a universidade permanece inacessível para quase toda a classe trabalhadora, a despeito da pregação triunfalista de que “agora as universidades se pintaram de povo”.

Junto a isso, é necessário considerar a qualidade desse acesso. Ainda que a UFPA afirme ter 65% dos estudantes com renda familiar de até 1 salário mínimo e meio, a universidade acumula prejuízos de centenas de milhões de reais desde 2015 (ou seja, ainda no governo Dilma) em seu orçamento, impactando em concursos, na infraestrutura e nas políticas de permanência da universidade, e esta exclusão tende a piorar com o atual Governo Federal, que corta e limita os investimentos para as universidades. Tais itens são indispensáveis para pensar uma política séria de permanência e interiorização da UFPA, e estes atualmente não estão sendo cumpridos. Para citar um único tópico de interesse, até hoje o único campus da UFPA que possui Restaurante Universitário (RU) é o de Belém, com os demais estando totalmente desprovidos. Considerando a necessidade de evitar a desterritorialização, conforme as próprias palavras da professora Favacho, a inexistência de RUs nos interiores atenta contra a assistência aos ribeirinhos.

Por fim, a UFPA se movimenta para tornar a presença de ribeirinhos em seus espaços como uma medalha simbólica, sem inclusão contínua e consistente. Na reunião do dia 18 de agosto, o reitor Gilmar Pereira esteve acompanhado na mediação, dentre outras figuras, pela ex-governadora Ana Júlia Carepa, desgastada publicamente, dentre outros motivos, pela aliança oportunista com o ex-governador neoliberal Almir Gabriel quando tentou se reeleger (sem sucesso) em 2010. O próprio reitor, por sua proximidade com o PT, não se pronunciou sobre os cortes de verbas das universidades ocorridos nesse ano, ficando atrás até de outros reitores federais. Finalmente, é necessário analisar: o que a UFPA entende como inclusão dos ribeirinhos?

Antes da reunião com a reitoria, a Assessoria de Diversidade e Inclusão Social (ADIS), comandada pela profa. Zélia Amador de Deus, mandou uma resposta para o requerimento da profa. Iná Camila Favacho. Nela, a ADIS afirma que a UFPA já realiza medidas de inclusão por, dentre outros motivos, ter criado dois cursos voltados para a população ribeirinha no campus de Altamira, etnodesenvolvimento e educação no campo, e isso estaria qualificado como inclusão. Ainda que a criação de cursos interiorizados seja realmente necessária, a associação de ribeirinhos a cursos e modalidades específicas é, na prática, uma maneira de esvaziar o debate e estereotipar essas populações como características ou bem-vindas apenas em certos contextos, indo contra o desejo expresso de vários de seus movimentos. Como frisou tanto Raimundinho quanto Denise em entrevista ao jornal, a acessibilidade das populações não deve estar voltada apenas aos cursos de educação, como pedagogia, mas para qualquer curso que as comunidades desejarem. Fica evidente, portanto, que a reitoria entende a inclusão pensa a pauta das cotas como uma medida de fachada, isolada e esvaziada tanto de maiores investimentos na interiorização quanto em questionamentos mais profundos quanto à importância de uma universidade a serviço das populações tradicionais amazônicas.

Neste momento, os interesses tanto da reitoria, de roupagem progressista, quanto o dos movimentos dos povos tradicionais aparentam convergir: ambos desejam a implementação das cotas. Entretanto, a prevalência de um outro lado pode resultar em dois processos brutalmente distintos. Um lado, o da reitoria, quer a inclusão superficial, sem atentar para a qualidade da permanência dos ribeirinhos na universidade, e tentando se apropriar da pauta de maneira a aparentar a inclusão como uma manobra vinda do alto. O outro lado, dos movimentos ribeirinhos, entende as precariedades e exclusões que a universidade promove e luta para que as cotas sejam não só uma conquista de suas próprias mãos, mas apenas um pilar de uma universidade popular.