Hip Hop e Coalizão 016: luta contra a criminalização da cultura
Existem poucas iniciativas estatais de reconhecimento e apoio ao hip hop, como programas, fóruns e projetos de lei específicos para a cultura hip hop. Ainda assim, há a Lei Anti-Oruam e outras medidas de criminalização da cultura periférica.

Foto: Marcelo Hayashi / Jornal O Futuro.
Por Luiz “Zidane” e Marcelo Hayashi
O evento "Coalizão 016 Liga Caipira de Freestyle", realizado no penúltimo domingo (25/05) em Ribeirão Preto, constituiu-se como um ponto de encontro do movimento cultural hip hop no interior paulista. A iniciativa reuniu MCs, DJs e público em um espaço de livre expressão, desafiando a invisibilidade que frequentemente caracteriza as periferias fora dos grandes centros urbanos. Este encontro não apenas celebrou a arte, mas solidificou um movimento que se recusa a ser silenciado.
A Liga Caipira de Freestyle ocorreu em toda região central do estado de São Paulo, que abarca o código de área 016 (por isso o nome do evento também), ao longo do último mês. As seletivas foram realizadas em 16 batalhas diferentes (Batalha na Arena, Batalha H2S, Batalha dos Nômades, Batalha da Ressaca, Batalha do Caos X Batalha da Ressaca, Batalha do Pico, Batalha Nova Era, Batalha BDK Freestyle, Batalha da UBS, Batalha do Braza, Batalha da Fonte, Batalha dos Pombos, Batalha Sangue na 7, Batalha do Cerrado, Batalha do Raio e Batalha da Vinte), percorrendo e envolvendo artistas de mais de uma dezena de cidades (Ribeirão Preto, Franca, São Carlos, Araraquara, Batatais, Brodowski, Pradópolis, Jardinópolis, Morro Agudo, Orlândia, Patrocínio Paulista, Pedregulho, Restinga, Bauru, Sertãozinho e São Tomás de Aquino, esta última em Minas Gerais).
Um dos idealizadores, José Renato “Tim” Porto, falou para a reportagem sobre a ideia da Liga Caipira:
“Eu acredito que a Coalizão, mano, ela nasceu da necessidade de reconhecer e valorizar o corre dos MCs daqui da nossa quebrada, sabe? Sempre teve talento, mas pouco espaço para crescer. A gente tem exemplo aí de crescimento de MC daqui da nossa quebrada, mas só depois que eles foram para lá [São Paulo]. Então, a nossa intenção aí é dar essa visibilidade e valorizar os nossos enquanto eles estão aqui ainda, para que eles cheguem lá já mais preparados. Então a gente teve essa ideia aí de unir a cidade, criar a ponte entre as batalhas, batalhas de várias cidades daqui do interior e mostrar que não é só lá no eixo que a cultura está pulsando né?”
Entre os pré-selecionados para a chave principal do evento, houve a presença dos MCs Haiki, Zemaki, Jovem Kata, Jimmy, Tyrano, Jhow, Guri, Puma, MS, Giroto, Bubba, Luh do Click, Dieguim e Last.

Puma, MC de São Carlos e campeão da Coalizão 016. Foto: AniramArt.
O organizador Tim ainda ressaltou que a missão de conectar as batalhas foi mais sobre escuta e articulação, “respeitando todas quebradas e processos”, até buscando conectar batalhas que estavam um pouco mais afastadas do movimento. Em edições futuras, a organização pretende dar espaço para as batalhas que tentaram participar dessa vez e não conseguiram. Ele também apontou que 127 MCs participaram do processo, foram “127 MCs que rimaram nas seletivas e lá no dia da pré-fase, todo mundo já tinha participado de seletivas, e acho que, por incrível que pareça, tivemos três… quatro finalistas da seletiva que foi sorteado, né?”, concluiu.
Contando ainda com uma pré-fase durante o evento, a Coalizão deu a última chance de todos MCs da região apresentarem suas rimas no evento e disputarem a última vaga na chave principal, em que o MC Satsu levou a melhor, saindo da pré-fase e chegando até a semifinal da chave principal. Em um dia de muitas rimas, beats e aquela energia presente na cultura periférica, o campeão da noite foi o MC Puma, de São Carlos (SP). Como premiação, ele levou a vaga para as chamadas “Big Four” de São Paulo (Batalha da Leste, Batalha da Aldeia, Batalha da Ana Rosa e Batalha da Norte), uma vaga para a 4ª edição do Festival Hip Hop Salva em São Carlos, R$500,00 e mais algumas premiações dadas por patrocinadores.
O evento reuniu mais de uma centena de pessoas vindas de todas cidades da região, contando com shows dos artistas Arteq, Gomex, Bubba, Jovem Kata e DJ Ju Novais e DJ Vitinho Matraca, além da batalha de rimas.
O palco da resistência caipira
O hip hop, desde suas origens, é um movimento cultural e social que serve como voz e ferramenta de transformação para comunidades historicamente marginalizadas. Ele emerge como uma resposta direta às lacunas deixadas pelo Estado e pela lógica do sistema capitalista, oferecendo oportunidades e um caminho de resistência para jovens que, de outra forma, estariam desassistidos. A sua presença e vitalidade em regiões como o interior paulista revelam uma dinâmica social profunda.
A organização do evento apontou que “foi um desafio coletivo”. O Tim disse à reportagem do jornal O Futuro que “a gente depende do corre de todo mundo que se empenhou, desde fotógrafo, produtor, foi tudo no coletivo mesmo mano. A escolha do local, o Parque Maurílio Biagi, a gente escolheu ele cara, justamente por ser um local público, acessível, até pra galera que vem de fora, quem vem de busão ali encostado na rodoviária” e que conseguiram o espaço com diálogo com a Prefeitura, que “eles entenderam a importância do projeto, mesmo que não teve incentivo financeiro. Então, a gente entende que essa é uma parte que ainda precisa de muita melhoria, muito diálogo aqui na nossa cidade, porque geralmente o poder público costuma ignorar esse tipo de manifestação, a não ser que seja conveniente pra eles de alguma forma”. Ele finalizou dizendo que ocuparam um espaço que é de direito deles, porém o “incentivo real da Prefeitura tem que estar constando ainda, está em débito aqui com a nossa cultura”.
A percepção de inércia e a falta de reconhecimento para a cultura periférica no interior, como apontado pelo MC Guri ao afirmar que o evento é um passo para "tirar o interior paulista da inércia" e mostrar que "o interior não é inferior", não são ocorrências acidentais. A MC Luh do Click complementa essa visão ao descrever sua cidade (Pradópolis), uma zona rural com 18 mil habitantes, como uma localidade que "não é entendida como periferia" mas que, na prática, carece de infraestrutura básica como hospitais, e de espaços culturais como batalhas de rima, exigindo que seus moradores se desloquem para Ribeirão ou São Paulo em busca de oportunidades. Essa realidade reflete uma lógica inerente ao sistema capitalista: a concentração de recursos, investimentos e poder em grandes centros urbanos, o que se convencionou chamar de "eixo da capital". Essa centralização invisibiliza e marginaliza as regiões periféricas e rurais, onde a cultura é frequentemente vista como um subproduto ou um "custo" a ser evitado, a menos que possa ser monetizada e cooptada pelo mercado dominante. O evento "Coalizão 016 Liga Caipira de Freestyle", portanto, emerge como um ato de resistência contra essa lógica de invisibilização e subdesenvolvimento imposta pelo sistema, um grito pela autonomia e pelo reconhecimento da potência cultural local.

Guri, MC natural de Ribeirão Preto e que hoje vive em São Paulo. Foto: Marcelo Hayashi / Jornal O Futuro.
Hip Hop: raízes de luta e conscientização
Nascido nas ruas do Bronx, Nova York, nos anos 1970, o hip hop emergiu dos confrontos e trocas culturais entre jovens negros, jamaicanos e porto-riquenhos, configurando-se como uma organização espontânea de uma conversa intercultural entre a juventude marginalizada. No Brasil, o movimento desembarcou nos anos 1980, com São Paulo rapidamente se consolidando como um de seus epicentros. Desde seus primórdios, o hip hop se estabeleceu como uma manifestação política da comunidade negra, com seu discurso crítico profundamente enraizado na experiência periférica.
O rap, um dos pilares fundamentais do hip hop, é intrinsecamente político e antirracista. Suas letras não são meras canções; elas narram histórias de vida das periferias, expressando um profundo orgulho e amor pela comunidade, ao mesmo tempo em que denunciam a violência sistêmica, a desigualdade social e a exclusão a que essas populações são submetidas. O MC Guri, por exemplo, relata ter crescido em batalhas sob a opressão policial, com "giroflex da polícia em volta", reafirmando a natureza do hip hop como uma "cultura marginalizada" que, apesar de ter expandido sua esfera de influência, ainda enfrenta preconceito. Nesse contexto, o rap reflete discussões cruciais sobre raça, escravidão e subdesenvolvimento.3 Álbuns icônicos como "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MC's, tornaram-se marcos na valorização da autoestima negra, denunciando a violência velada contra a população pobre e racialmente marcada, e conectando a opressão racial ao passado escravocrata do país. Mais recentemente, Emicida, em seus trabalhos, reforça a unidade negra e a conexão com a ancestralidade africana, associando simbolicamente viaturas policiais a "navios negreiros" e favelas a "senzalas", evidenciando a continuidade da condição marginalizada da população negra na estrutura social. Somando-se a essa linha de enfrentamento, o rapper Don L, com seu aclamado álbum "Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2", aprofunda as reflexões sobre o futuro e crítica às bases do sistema capitalista, solidificando o rap como uma ferramenta contundente de análise social e projeção de novos horizontes de classe.
A essência do hip hop vai muito além do entretenimento. É um movimento de resistência, criatividade e mudança, que inspira gerações e transforma comunidades. O MC Guri enfatiza que "não dá para deixar os boys achar que a parada virou entretenimento, porque a nossa luta não acabou, pelo contrário, acabou de começar." O conhecimento, considerado o quinto elemento do hip hop por Afrika Bambaataa, é o ponto central das batalhas de rima, difundindo uma estética periférica de revolta e conscientização. Os rappers são, em muitos aspectos, intelectuais orgânicos que produzem uma crítica à realidade social baseada na experiência direta de suas comunidades. O MC WP ressalta o papel social positivo do hip hop ao afirmar que ele "livra vários moleques de fazer coisa errada", contrastando com a visão criminalizadora que busca estigmatizar a cultura.

WP, MC de São Paulo e que hoje mora em São Carlos. Foto: Marcelo Hayashi / Jornal O Futuro.
A politização do hip hop, portanto, não é uma escolha estilística ou uma mera vertente do gênero, mas uma consequência direta e inevitável de suas origens e do contexto social em que se desenvolve. Em um sistema capitalista que persistentemente marginaliza, explora e invisibiliza certas populações, especialmente as negras e periféricas, a arte produzida por essas comunidades torna-se, por necessidade, uma ferramenta de denúncia e conscientização. A repressão policial sofrida pelos MCs, como Guri relatou, e a estigmatização do rap como "música de bandido" são reações do próprio sistema. Essas ações buscam deslegitimar a voz que o critica e que, de outra forma, poderia mobilizar a população. A tentativa de reduzir o hip hop a mero entretenimento é uma estratégia do capital para desarmar seu potencial revolucionário. Ao cooptar ou silenciar a arte periférica, o sistema busca neutralizar a "estética de revolta" e o "conhecimento" que o hip hop difunde, elementos que representam ameaças diretas à hegemonia ideológica e econômica dominante. A luta do hip hop é, assim, uma luta constante contra a despolitização e a mercantilização da cultura, reafirmando seu papel como um bastião de resistência.
A cena 016: despertar e potencial ignorado
Para os MCs entrevistados pelo jornal O Futuro, a "Liga Caipira de Freestyle" representa um marco fundamental para a cena 016. WP vê o evento como uma "oportunidade de levar pro moleque de gueto" algo "muito grande", especialmente por estar "fora do eixo da capital." Zemaki, que migrou do Capão Redondo para São Carlos há quatro anos, destaca a importância da Liga para que os "MCs do interior" sejam vistos, reconhecendo o potencial de "rima boa" que, sem esses espaços, muitas vezes permanece invisível e sem reconhecimento.

Zemaki, intérprete de libras, MC, poeta e trancista, que veio de São Paulo para o interior. Foto: AniramArt.
A MC Luh do Click oferece uma perspectiva crucial sobre as particularidades da marginalização no interior. Vinda de Pradópolis, ela descreve sua realidade, onde a ausência de espaços culturais como batalhas de rima são evidentes. Para ela, a Liga Caipira significa "ter a sensação das oportunidades não estarem tão longe de casa", quebrando o ciclo de ter que se deslocar para São Paulo para encontrar espaços e oportunidades de expressão e desenvolvimento.
A lei da censura: ofensiva contra a cultura periférica
A recente aprovação da Lei Nº 23.191 em São Carlos, representa um avanço preocupante na ofensiva contra a cultura periférica. O texto legal proíbe a contratação, direta ou indireta, de shows e eventos abertos ao público infanto-juvenil que, segundo sua interpretação, envolvam "apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas". A abrangência da lei é vasta, incluindo "expressões de apologia" e mensagens que possam ser consideradas contrárias à proteção infanto-juvenil, e estende-se a espaços públicos ou eventos custeados por recursos públicos. As penalidades previstas são severas, com multas que podem atingir 20 salários mínimos e a suspensão de novos contratos ou parcerias com o Município por até cinco anos. Além disso, a lei faculta a qualquer cidadão a possibilidade de denúncia [Lei Nº 23.191/2025]. Esta legislação se alinha a projetos semelhantes que têm surgido em outras localidades, como a proposta em Araraquara e a já conhecida "Lei Anti-Oruam" em São Paulo, que visam proibir a contratação de artistas que, na visão dos legisladores, façam apologia ao crime ou às drogas.4 Apesar da justificativa oficial de "regular o uso de dinheiro público" e focar no "ilícito", o movimento hip hop classifica essas iniciativas como uma clara criminalização do hip hop, censura seletiva e uma tentativa de associar a cultura periférica ao crime.
Leia também: Lei que criminaliza a arte periférica é aprovada na Câmara de São Carlos - Jornal O Futuro
A perspectiva dos MCs sobre a lei é contundente. Guri afirma que a Lei Anti-Oruam é "só um signo para uma movimentação que acontece desde sempre, que é a marginalização do hip hop, da cultura de rua." Ele a descreve como a "sintetização desse preconceito que sempre existiu socialmente." Luh do Click vai além, declarando que "existe a criminalização da vida do pobre, né? Não só do que a gente produz, mas da vida do pobre, da vida do preto, da vida do periférico." Ela questiona a autoridade por trás da definição de apologia: "Quem define o que é apologia? Quem é responsável pela arte que nós faz é nós, parça." WP reitera que a lei é "falta do que fazer", pois o hip hop "livra vários moleques de fazer coisa errada", e que nós "só queremos fazer o que a gente gosta." Zemaki interpreta a criminalização como uma forma de "falar que o povo de periferia não tem voz", um "silenciamento das periferias, das populações negras, das populações minorizadas", uma tentativa do sistema de "apagar" suas vozes. Já o organizador do evento, Tim, disse que é “uma tentativa desesperada do sistema silenciar aquilo que mais está ameaçando ele, que é a verdade que sai da boca de quem realmente vive, de quem é de quebrada e tal. Acredito que essa lei cara, faz parte de uma guerra que já é declarada há muito tempo contra a juventude preta, pobre e periférica, então é uma censura que ela vem disfarçada de moralidade”.
A lei busca criar uma falsa dicotomia entre a apologia ao crime e o retrato da realidade social. O rap e o funk, como José Lopes Nei do coletivo Bases em Araraquara aponta, "frequentemente retratam a realidade das periferias, abordando temas como desigualdade, violência e exclusão social".4 A criminalização ignora que a arte é um espelho da sociedade, e ao tentar censurar essa reflexão, o sistema busca ocultar suas próprias falhas e a marginalização que ele mesmo produz.
A criminalização da cultura periférica é um mecanismo direto do sistema capitalista para manter o controle ideológico e econômico. Ao associar o hip hop ao crime, o Estado pretende deslegitimar a arte que denuncia as desigualdades sociais e raciais inerentes ao capitalismo. As multas e suspensões de contratos, conforme o Art. 3º da Lei aprovada em São Carlos, não são apenas punições, mas formas de asfixia financeira, impedindo que artistas e coletivos periféricos se profissionalizem e ganhem autonomia econômica. Isso força a cultura a se submeter à lógica do mercado dominante, que só a aceita se for despolitizada e lucrativa.

Luh do Click, MC e poeta de Pradópolis. Foto: AniramArt.
Luh do Click expõe a hipocrisia central dessa dinâmica: o hip hop é "a cultura mais consumida no mercado, cultura tanto na música quanto visual, quanto de roupa," mas "quem consome é quem quer criminalizar." Isso revela que o capital deseja lucrar com a estética e o consumo da cultura periférica, mas teme sua mensagem crítica e política, buscando cooptar o estilo enquanto reprime a substância. Nesse caso, os "vilões" são os artistas periféricos que ousam narrar a realidade e contestar a ordem. A lei é uma tentativa de silenciamento das populações minorizadas, buscando apagar a voz que grita contra a injustiça e a desigualdade, reforçando o poder hegemônico e a narrativa dominante.
Vozes da resistência: a periferia responde
Apesar da ofensiva legislativa e das tentativas de silenciamento, a voz da periferia se mantém firme e uníssona. As mensagens dos MCs Guri, Luh do Click, WP e Zemaki são um testemunho da resistência da cultura hip hop. Guri declara que sua mensagem é passada "cada vez que eu tô num palco, cada vez que eu tô com o microfone na mão", e que a arte é a forma de "bater de frente com esse sistema que impôs que nós não podemos ser vitoriosos." Ele desafia os opressores com a simplicidade da verdade: "Assistam, pô, tá ligado? E admirem."
Luh do Click, com a certeza da resistência que emana das comunidades, afirma: "Vocês vão continuar tentando [silenciar] e nós vamos continuar resistindo." WP, com a franqueza que caracteriza a voz da rua, sentencia: "Não vai conseguir, tá ligado, mano? Infelizmente nós somos a massa maior. Então, se depender de nós, nós vai estar sempre para cima aí e eu não ligo e nós não vai ligar, mano. Pode tentar que nunca vai conseguir." Zemaki reforça a inevitabilidade da resistência, afirmando que "quanto mais vocês tentam silenciar a voz da periferia, mais a gente grita." Ela contextualiza essa luta em um horizonte histórico mais amplo: "Há 500 anos a gente tá tentando lutar e a gente tá conseguindo lutar ainda." Tim aponta que a Coalizão “é nossa forma de gritar que a gente não aceita ser marginalizado só por existir, por fazer cultura e por estar incomodando, né?!”
A resiliência da cultura periférica e a ineficácia das leis repressivas, como a Lei Anti-Oruam, são causadas pela natureza orgânica e popular do movimento hip hop. Como intelectuais orgânicos, os rappers não estão descolados de suas comunidades; sua arte é a expressão direta da experiência da periferia. A repressão externa, em vez de apagar, funciona como um catalisador, fortalecendo a identidade e a coesão do movimento. Cada tentativa de silenciamento gera uma nova onda de conscientização e engajamento, provando que a "massa maior" não pode ser controlada por decretos.
As vozes dos MCs ressaltam o papel fundamental do rap na formação de novas gerações conscientes e engajadas. Luh do Click observa que "a cada batalha de rima nós tá formando mais menor, mais mina aí consciente no que vocês querem fazer com o nosso sonho, com a nossa arte." O hip hop, com sua capacidade de difundir conhecimento e uma estética de revolta, estimula a juventude a refletir sobre sua condição social e a intervir na sociedade. É uma arte que cumpre uma função revolucionária de conscientização. A incapacidade do sistema capitalista de cooptar ou destruir completamente a cultura periférica revela uma falha fundamental em sua lógica de controle. A arte que “salva vidas” e que é produzida a partir das contradições da realidade é uma força que transcende a lógica do lucro e do poder estatal. A luta "de 500 anos" contra a opressão é uma prova da persistência da resistência popular, que se adapta e se fortalece diante das adversidades, transformando a repressão em combustível para a luta. Tim finalizou dizendo que “se eles tentam criminalizar aquilo que a gente faz, é porque a gente tá acertando e vamos seguindo, marcha. Vamos ocupar aqueles espaços que é nosso, vamos denunciar, vamos principalmente fortalecer, né, mano?! Uns aos outros, nossas quebradas aqui, por mais que esteja um pouco longe, a gente tem mais que fortalecer, se unir. E a cultura é isso, né mano?! É resistência, é revolução e nunca foi crime”.
A luta continua
O evento "Coalizão 016 Liga Caipira de Freestyle" em Ribeirão Preto é um testemunho vivo da resiliência do hip hop. Ele simboliza a contínua capacidade da cultura periférica de se organizar, expressar e resistir, mesmo diante de ataques legislativos que visam criminalizá-la e silenciá-la. O hip hop permanece uma arma cultural que denuncia problemas sociais e promove a conscientização.
A Liga Caipira e as vozes dos MCs Guri, Luh do Click, WP e Zemaki demonstram que a cultura periférica não apenas sobrevive, mas floresce em todos os cantos do país, do eixo da capital ao interior e às zonas rurais que lutam por reconhecimento. É uma cultura que se impõe, que faz sua arte e que se recusa a ser apagada.

Foto: Marcelo Hayashi / Jornal O Futuro.
A Lei Nº 23.191 de São Carlos, e outras iniciativas similares, não são atos isolados, mas manifestações de uma ofensiva que busca controlar as vozes que desafiam a ordem estabelecida. É imperativo que a sociedade reconheça o hip hop não como um problema a ser criminalizado, mas como uma solução que oferece oportunidades, conscientização e dignidade. A luta pela liberdade de expressão da cultura periférica é, em essência, uma luta pela vida e pela justiça social.
A relação do Estado com a cultura periférica é marcada por uma contradição fundamental. Existem poucas iniciativas estatais de reconhecimento e apoio ao hip hop, como programas, fóruns e projetos de lei específicos para a cultura hip hop. Ainda assim, há a Lei Anti-Oruam e outras medidas de criminalização da cultura periférica. Essa ambivalência não é uma falha ou inconsistência, mas uma característica inerente do Estado dentro de um sistema capitalista. O Estado, como instrumento da burguesia, tenta cooptar e integrar a cultura periférica quando ela pode ser mercantilizada ou quando seu potencial de mobilização se torna uma ameaça que precisa ser "gerenciada" através de políticas públicas controladas. No entanto, quando a cultura mantém sua autonomia e seu discurso crítico, desafiando diretamente a lógica do capital e a ordem social, o Estado recorre à repressão e criminalização. A Lei Anti-Oruam é um exemplo claro dessa faceta repressiva, visando deslegitimar e desfinanciar as expressões que não se curvam à lógica dominante. A mentalidade que permeia a cultura hip hop é uma ameaça ao sistema porque ela não busca apenas reformas, mas uma transformação fundamental da sociedade, desafiando a própria base da exploração e da desigualdade. A luta continua, e a voz da periferia, ecoada em cada rima e cada batalha, não se calará.