Protestos em Caucaia tentam frear restrições ao maior programa de tarifa zero do Brasil
O que o prefeito Naumi Amorim (PSD) fez com a política de passe-livre é atacá-la e restringi-la, quando seu alvo, pelo contrário, buscando expandir o serviço e tirar dos bolsos da população os seus custos, deveria ser a empresa que opera o serviço e sua ganância voraz.

Representantes de partidos e movimentos sociais reunidos para dialogar com a prefeitura. Reprodução/Foto: Lorena Frota/O Povo.
Por Diego Vieira
No último dia 23 de outubro (quinta), às 9h, partidos políticos, movimentos sociais e entidades estudantis se reuniram em frente à prefeitura de Caucaia (CE), protestando contra as recentes mudanças no passe livre no transporte coletivo de ônibus da cidade. A mobilização tinha como objetivo reunir uma comissão para falar diretamente com o prefeito, Naumi Amorim (PSD) em busca de impedir que o programa, antes nomeado de “Bora de Graça”, não seja burocratizado e restringido até sua completa extinção.
Recebidos pela polícia municipal, apenas uma pequena comissão pôde adentrar no prédio público. Mesmo assim, nenhuma resposta ou diálogo foi realizado por parte da prefeitura, seja pela figura de Naumi ou por algum de seus subordinados. Uma suposta reunião seria marcada, mas até o fechamento desta matéria, muito além do prazo pré-estabelecido, não obtivemos nenhuma data. Segue-se a modificação, que tem tudo para piorar o serviço do transporte coletivo, limitando-o cada vez mais, sem qualquer diálogo com a população.
O Programa “Bora de Graça”
Lançado em setembro de 2021 sob o nome "Bora de Graça", o programa estabeleceu a gratuidade universal no sistema de ônibus, configurando Caucaia, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, como a maior cidade do Brasil, em termos populacionais, a adotar essa medida de forma integral. Com uma população de mais de 350.000 habitantes, a iniciativa se tornou um caso de relevância nacional na discussão sobre políticas de tarifa zero.
Com a justificativa de que o programa devolveria os impostos pagos pela população aos cidadãos mais vulneráveis, a lógica era que a economia gerada pela isenção da tarifa seria reinjetada no comércio local, aquecendo a economia. Também foi no bojo da pandemia, onde, de qualquer maneira, devido à queda radical de passageiros (em Caucaia foram de 35 mil para 18 mil usuários por dia) e consequentemente tarifas pagas, os subsídios às empresas de transporte aumentaram drasticamente para garantir seu funcionamento — na prática, para garantir seus lucros. Desta forma, se já aumentariam os subsídios, pensou o então prefeito, por que não custear integralmente o transporte?
A sustentação financeira do programa de tarifa zero de Caucaia foi estruturada com base em um modelo de remuneração que desvincula o pagamento à concessionária do número de passageiros transportados. Em vez de um subsídio por passageiro, a Prefeitura de Caucaia adotou o pagamento por quilômetro rodado. Nesse arranjo, a empresa concessionária, Empresa Vitória, recebe um valor fixo por cada quilômetro que seus veículos percorrem em serviço, conforme estabelecido no contrato. Este modelo é tecnicamente adequado para sistemas de tarifa zero, pois incentiva a operadora a cumprir os itinerários e as frequências planejadas, garantindo a cobertura do serviço em toda a cidade, incluindo áreas menos povoadas, em vez de focar apenas nas linhas de maior demanda para maximizar a receita. Ainda mais em Caucaia: a cidade tem quatro vezes a extensão da capital do estado, tornando as distâncias ainda maiores do que em outras cidades do Brasil.
O custo mensal inicial para o município foi estimado em cerca de R$3 milhões, o que representava aproximadamente 2,5% do orçamento total de Caucaia na época. Com base nesse custo e no número de passageiros transportados, o custo efetivo por viagem para a prefeitura situava-se entre R$1,50 e R$1,60, um valor significativamente inferior à tarifa de R$4,90 que era cobrada antes da implementação da gratuidade. Durante os primeiros anos, o sistema operou sem catracas, que foram removidas em um gesto simbólico para celebrar a gratuidade. Na ausência de um mecanismo da prefeitura de contagem automática de passageiros e de validação de viagens, ela ficava em uma posição de dependência dos dados fornecidos pela própria operadora para validar os quilômetros rodados e justificar os pagamentos — situação similar a Fortaleza, onde mesmo a empresa pública que deveria fiscalizar todo o sistema de ônibus (ETUFOR) não tem os dados sobre o uso do sistema, estando nas mãos do sindicato patronal (Sindiônibus).
Efeitos da Tarifa Zero
Ao eliminar o custo do transporte do orçamento familiar, a iniciativa funcionou como uma transferência de renda indireta, com um impacto particularmente significativo para as populações de menor poder aquisitivo. Esse dinheiro, que antes era destinado ao pagamento de passagens, passou a ser utilizado para o consumo de outros bens e serviços, majoritariamente dentro do próprio município, gerando um aumento de 25% no faturamento do comércio e do setor de serviços de Caucaia. Apesar de não terem sido realizados estudos subsequentes para coletar dados precisos, foram feitas projeções da própria prefeitura acerca de alguns efeitos em cascata: diminuição de, “em média, 40% do fluxo de veículos em circulação no município e traz às famílias mais carentes de Caucaia um acréscimo de 15% a 36% em sua renda”.

Ônibus circulando na cidade após a mudança na sua identidade visual. Reprodução/Foto: Prefeitura de Caucaia.
O resultado mais imediato e impressionante da implementação da tarifa zero em Caucaia foi o aumento exponencial na demanda por transporte público. Os dados revelam uma transformação radical no padrão de mobilidade da cidade. Em agosto de 2021, um mês antes do início do programa, o sistema de ônibus transportava aproximadamente 510.000 passageiros. Em meados de 2023, esse número havia saltado para uma média de 2,3 a 2,4 milhões de passageiros por mês. Para atender a essa nova realidade, a infraestrutura do sistema teve que ser rapidamente expandida. A frota de veículos em operação foi ampliada em 46%, passando de 48 para 70 ônibus.
A dívida com a Empresa Vitória
A implementação do programa de tarifa zero em Caucaia foi uma decisão política central da gestão do então prefeito Vitor Valim (PSB). A implementação, por meio de decreto executivo vindo diretamente do prefeito, principal idealizador do programa, foi, por um lado, estratégico para implementar o passe livre de forma ágil e decisiva, prorrogando constantemente o prazo de vigência do contrato com a empresa Vitória. Por outro, essa via rápida deu uma fragilidade ao projeto, não vinculado formalmente ancorado na Lei Orçamentária Anual (LOA), e suscetível a ataques por quaisquer novas gestões municipais, como tem acontecido justamente neste ano, após a posse do atual prefeito, Naumi Amorim. Vemos assim na prática a fragilidade institucional do parlamento burguês e suas manobras, onde a burguesia não mede esforços para acabar com as políticas para o povo e garantir suas taxas de lucro.
Ao longo de 2023 e 2024, a gestão municipal acumulou uma dívida substancial com a Empresa Vitória. Em dezembro de 2024, essa dívida atingiu o valor crítico de aproximadamente R$14,3 milhões. A situação chegou a um ponto insustentável no início de dezembro de 2024, quando a Empresa Vitória enviou um ofício à 2ª Promotoria de Justiça de Caucaia, denunciando o atraso nos repasses e o montante da dívida. No documento, a empresa anunciou uma medida drástica: a partir do dia 17 de dezembro, suspenderia o programa de gratuidade e voltaria a cobrar a tarifa diretamente dos usuários para garantir a continuidade da operação. A concessionária também solicitou a abertura de um inquérito para apurar improbidade administrativa por parte do gestor municipal devido ao inadimplemento. A ameaça de paralisação do maior programa de tarifa zero do país gerou uma crise imediata, colocando em risco um serviço essencial para centenas de milhares de cidadãos e exigindo uma intervenção urgente.
Sob a condução do Ministério Público do Ceará (MP-CE), as partes (empresa e prefeitura) foram instadas a negociar uma solução que garantisse a continuidade do transporte gratuito. O resultado foi um acordo formal no qual a Prefeitura de Caucaia se comprometeu a pagar uma parte significativa da dívida, no valor total de quase R$9 milhões, de forma parcelada ao longo do mês de dezembro. Em troca, a Empresa Vitória concordou em manter o programa "Bora de Graça" em funcionamento, suspendendo a ameaça de retorno da cobrança de tarifa.
A eleição de Naumi Amorim e o “Passe Livre”
Eleito com um discurso de austeridade fiscal, Naomi tem como uma das primeiras declarações de seu mandato a denúncia de uma dívida herdada de R$ 681 milhões, sendo “o maior rombo da história” do município, o que necessitaria de um contingenciamento de gastos e reavaliação dos programas municipais. Já tinha com um de seus motes de campanha reavaliar o “Bora de Graça” para garantir uma maior responsabilidade fiscal.
Após a eleição, a nova gestão colocou em prática a reavaliação anunciada durante a campanha. Em janeiro de 2025, foi anunciado que o programa continuaria, mas com uma redução de R$1 milhão nos repasses mensais para a empresa operadora. A justificativa do novo governo era de que o serviço estava sendo prestado de forma "precarizada", com um número de ônibus circulando (70, em tese) que não condizia com a percepção de qualidade da população. A nova administração optou por retornar ao número original de veículos previsto em contrato (54 ônibus), prometendo maior fiscalização e uma adequação das rotas e horários às reais necessidades dos cidadãos. Esse foi o primeiro avanço contra o transporte público como um direito.
Em junho, retornam as catracas, supostamente para garantir o “levantamento de dados” sobre o sistema. Agora, no início de outubro, o programa “Bora de Graça” se transformou em “Passe Livre”, com uma promessa de “uma série de avanços” que serão anunciados nos próximos dias e meses. Apesar de, inicialmente, ser anunciada uma retomada de rotas, fontes do Jornal O Futuro destacam que o que se espera pela frente é na verdade cada vez mais a restrição desse direito e o retorno da tarifa, ainda que parcialmente por ora. Uma especulação que tem sido feita é que será garantida tarifa zero somente para residentes em Caucaia, que façam um bilhete especial, sem ainda mais detalhes sobre seu funcionamento. Não se sabe quais alterações serão feitas nos subsídios pagos à empresa Vitória, nem mesmo qual será a tarifa. A expectativa é que o prefeito faça um pronunciamento público nesta quarta-feira (29/10) para anunciar as mudanças, que já entrarão em vigor nesta semana.
Transporte como um direito, não mercadoria
É exatamente por isso que, ao saber da mudança do programa, acompanhar as declarações e restrições (como a volta da catraca) que têm sido feitas, e sentir na pele a precarização do transporte em Caucaia, mesmo ainda gratuito, manifestantes se reuniram às portas da prefeitura para cobrar respostas — e afirmar categoricamente que este ataque não passará em branco.

Flavin, militante do PCBR, denunciando as restrições do passe-livre. Reprodução/Foto: Iago Barreto Soares.
A execução do serviço de transporte gratuito em Caucaia foi viabilizada por meio de um contrato de concessão com uma única operadora, a Empresa Vitória Organização Guimarães Ltda. Essa parceria público-privada formou o eixo central da operação do programa, com a prefeitura atuando como poder concedente e financiador, e a empresa como a executora do serviço. Apesar de ser uma política pública com efeitos essenciais à população, não consegue ainda superar a lógica de tratar o transporte como uma mercadoria: as empresas privadas, como já reiteradamente denunciamos, buscam somente o lucro. A falta de empresa pública que detenha o monopólio da frota de ônibus e de serviços na cidade faz com que nosso dinheiro sirva não para custear o transporte, mas sim para custear os lucros desta empresa.
Contratos feitos sem qualquer participação popular, com dados e custos fornecidos pela empresa beneficiária, devem ser abertamente questionados, mas nestes termos: que sejam modificados para cada vez mais controle popular e qualidade de serviço, garantida somente por uma empresa estatal. O que Naumi fez com a política de passe-livre é atacá-la e restringi-la, quando seu alvo, pelo contrário, deveria ser a empresa que opera o serviço e sua ganância voraz. Ao invés de reduzir o financiamento (e consequentemente a frota), o que os movimentos sociais, partidos e intelectuais afirmam é: procurar novas formas de financiamento, especialmente aquelas que oneram as grandes empresas capitalistas, garantir controle popular e caminhar rumo à estatização do transporte coletivo, para que seja efetivamente público, tratado como um direito, e não uma mercadoria.