Saneamento à venda: Governo do ES acelera privatização da Cesan em leilão de R$1,8 bilhão
Especialistas e movimentos sociais alertam para os riscos desse modelo, já testado com sérias consequências em outras regiões do país. O leilão ocorrerá na sede da B3 (Bolsa de Valores de São Paulo) e será dividido em dois lotes, abrangendo 43 municípios capixabas.

Estação de Tratamento de Esgoto de Araças, em Vila Velha (ES). Reprodução/Foto: Governo do Espírito Santo/Divulgação.
Com leilão marcado para o dia 17 de junho, a Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan) entra no radar da privatização e dá abertura para exploração econômica do saneamento básico. Sob o formato de Parcerias Público-Privadas (PPP), o governo do Espírito Santo pretende transferir à iniciativa privada a operação de serviços fundamentais de abastecimento e esgoto em diversos municípios. Especialistas e movimentos sociais alertam para os riscos desse modelo, já testado com sérias consequências em outras regiões do país.
O leilão ocorrerá na sede da B3 (Bolsa de Valores de São Paulo) e será dividido em dois lotes, abrangendo 43 municípios capixabas. Sob o argumento de promover a universalização do saneamento básico, o processo prevê um aporte do setor privado que pode chegar a R$1,8 bilhão. Porém, trata-se de uma ação inserida em uma estratégia mais ampla coordenada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que lidera a promoção da privatização do setor no Brasil. A carteira do banco inclui projetos em diversos estados, com previsão de aplicação de cerca de R$50 bilhões em recursos públicos para estruturar concessões e parcerias voltadas ao setor privado.
Classificado como um projeto de médio porte, o leilão não exigirá pagamento de outorga na assinatura do contrato — condição que tem atraído grande interesse do setor privado. A ausência dessa exigência torna a exploração dos recursos hídricos mais simples e lucrativa, reduzindo as obrigações iniciais para as empresas concessionárias. A Aegea, gigante do setor privado de saneamento, desponta como favorita na disputa. Controlada pelo grupo Equipav, a empresa tem entre seus principais investidores o GIC (fundo soberano de Cingapura), o IFC (braço financeiro do Banco Mundial) e a holding brasileira Itaúsa. No Espírito Santo, a Aegea já administra os serviços de água e esgoto nos municípios de Serra, Cariacica e Vila Velha.
Nessas cidades, no entanto, a realidade contrasta com as promessas de eficiência e os problemas relacionados à falta de água, falhas na coleta de esgoto e denúncias de água imprópria para o consumo seguem como queixas frequentes da população. Em Serra, onde a empresa administra os serviços de saneamento desde 2015, mais de 139 mil moradores ainda vivem sem acesso à coleta de esgoto, e outros 83 mil não têm abastecimento regular de água, segundo dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento).
Em Cariacica e Vila Velha, onde a empresa assumiu em 2021 e 2017, respectivamente, a situação também é crítica: apenas 35,5% da população de Cariacica conta com rede de esgoto, enquanto em Vila Velha esse índice é de 58,78% — o que representa cerda de 192 mil moradores sem acesso à coleta adequada.
O próprio exemplo local escancara o colapso das promessas de universalização e eficiência frequentemente associadas à entrada do capital privado na gestão do saneamento básico. Apesar dos contratos milionários e dos prazos estendidos, a realidade enfrentada diariamente pela população é marcada por infraestrutura precária, falhas recorrentes no abastecimento e ausência de cobertura de esgoto — evidências que colocam em xeque os reais benefícios desse modelo de concessão.
A experiência do Espírito Santo reflete o que ocorre em outras partes do país, como em São Paulo, onde a privatização da Sabesp já tem gerado tarifas abusivas, queda na qualidade dos serviços e menor transparência. O caso da Cesan segue a mesma lógica: transferir responsabilidades estratégicas para grandes conglomerados privados, retirando do Estado o controle sobre um direito fundamental e transformando-o em mercadoria.
O processo ainda é permeado por sérias irregularidades, conforme apontado em parecer do Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES). Entre os principais pontos, estão: restrições à competitividade por critérios técnicos que favorecem grandes grupos; omissão da obrigatória deliberação do colegiado da Microrregião de Água e Esgoto (MRAE); e discrepâncias entre os dados usados no edital e os informados ao SNIS, o que compromete a definição de metas e indicadores de desempenho.
Além disso, o MPC-ES questiona possíveis violações à Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que a Cesan estaria realizando investimentos sem o devido aumento da participação acionária do Estado — o que pode caracterizar dependência financeira e configurar irregularidade.
Enquanto isso, o Espírito Santo segue enfrentando sérios problemas estruturais no setor de saneamento básico, com índices alarmantemente baixos de coleta e tratamento de esgoto em dezenas de municípios — em 31 deles, a maioria da população ainda vive sem acesso adequado, e mais de 60 cidades estão abaixo da média estadual de atendimento. Longe de enfrentar essas deficiências com investimentos públicos e planejamento estratégico, o Governo do Estado aprofunda a lógica de mercantilização do serviço, ao transferir para a iniciativa privada a gestão de um direito fundamental. Essa decisão desconsidera os princípios de universalização e justiça social, e tende a acentuar desigualdades, ao priorizar o lucro de grandes empresas por meio da elevação de tarifas e do progressivo enfraquecimento da infraestrutura pública.