Solidariedade sob ataque: Flotilha Global Sumud ruma à Gaza

Intensifica-se a ofensiva israelense contra a Flotilha Sumud, missão civil que visa romper o cerco a Gaza. Episódio expõe o histórico de violência contra iniciativas de solidariedade internacional que desafiam a ocupação.

30 de Setembro de 2025 às 17h00

O ator irlandês Liam Cunningham é um dos tripulantes da Flotilha. Reprodução/Foto: Anadolu.

Ataques diretos à Flotilha Global Sumud ocorreram no dia 23, com explosões constatadas em alguns barcos. Já na noite de 21 de setembro, voluntários a bordo da flotilha vinham relatando um movimento incomum de drones não identificados sobrevoando suas embarcações no Mediterrâneo. Algumas aeronaves chegaram a passar a poucos metros dos barcos, em clara tentativa de intimidação. A denúncia foi feita pelo Comitê Internacional para Romper o Cerco a Gaza, que descreveu em nota um “nível incomum de atividade de drones causando apreensão”. Não se trata de mera vigilância, mas de mais uma evidência da guerra de terror conduzida por Israel não apenas contra o povo palestino, mas contra todos que ousam desafiá-lo em mar.

À medida que a flotilha entrava na chamada “zona amarela”, ao sul da Grécia, seus tripulantes se preparavam para a possibilidade de um ataque direto da marinha israelense. Exercícios noturnos de resistência não violenta foram realizados, simulando uma invasão semelhante à que já havia ocorrido em missões anteriores. Organizações solidárias alertam que a escalada de drones sobre os barcos é um sinal de que Israel não hesitará em repetir o mesmo roteiro de difamação dos ativistas como “terroristas”, justificando os ataques sob pretexto de “segurança”.

A hostilidade de Israel aos movimentos civis de solidariedade não é novidade. Desde a primeira tentativa de romper o bloqueio de Gaza por via marítima, ainda em 2010, a resposta israelense foi marcada pela violência, com o assassinato de nove civis turcos a bordo da Mavi Marmara em águas internacionais. O massacre inaugurou uma política que perdura até hoje, a de criminalizar, interceptar e, eventualmente, eliminar fisicamente qualquer iniciativa de denúncia ao cerco.

A Sumud representa a 38ª tentativa de quebrar o bloqueio de Gaza. São mais de 40 embarcações, reunindo centenas de ativistas de dezenas de países, entre eles parlamentares europeus, latino-americanos e figuras públicas como Greta Thunberg, Liam Cunningham e Rima Hassan. Longe de se tratar de “jihadistas”, como os porta-vozes israelenses insistem em rotular, trata-se de uma coalizão plural de juristas, médicos, artistas, jornalistas e cidadãos comuns. A missão é simples: levar ajuda humanitária e tornar visível a catástrofe da fome fabricada pelo cerco.

Israel, no entanto, nunca aceitou essa mobilização global pacífica. Ao contrário: fez dela alvo preferencial de sua doutrina de guerra. Apenas nos últimos meses, ao menos três embarcações foram interceptadas em alto-mar. Em 9 de junho, o barco Madleen, que se aproximava da costa de Gaza, foi sequestrado e teve seus 12 tripulantes detidos, entre eles a ativista sueca Greta Thunberg. Em 27 de julho, foi a vez do Handala, rebocado à força para o porto de Ashdod com 21 civis mantidos nas masmorras da ocupação sem acesso a advogados.

Os tripulantes do Madleen foram sequestrados pelas forças sionistas em 9 de junho de 2025. Reprodução: Twitter.

Não bastasse o sequestro de embarcações, Israel passou a adotar drones armados como arma preferencial contra barcos civis. Em 10 de setembro, um desses ataques incendiou o convés do navio britânico Alma, ancorado na Tunísia. Um dia antes, outro drone havia lançado um dispositivo incendiário sobre o barco Family, também em águas tunisianas. Meses antes, em maio, um ataque similar quase afundou uma embarcação da Freedom Flotilla, abrindo um buraco em seu casco. Em todos os casos, as autoridades tunisianas se calou sobre as ocorrências.

As autoridades israelenses buscam legitimar essa política pelo discurso. O governo classificou a atual flotilha como “jihadista” e insinuou vínculos com o Hamas, estratégia recorrente para enquadrar movimentos civis no espectro da “guerra ao terror”. Assim, criminaliza a solidariedade e naturaliza o uso da força contra cidadãos estrangeiros em águas internacionais. Trata-se de uma campanha ideológica na retórica que precede e justifica a violência da ofensiva militar.

Essa política não apenas viola leis marítimas e humanitárias internacionais, mas afirma o caráter extraterritorial da ocupação: o bloqueio de Gaza não termina em sua costa, mas se estende a todo o Mediterrâneo, sob a tutela militar israelense. O mar aberto se converte em extensão do cerco.

Mesmo diante de alertas formais da comunidade internacional, Israel mantém sua postura. Em 16 de setembro, dezesseis países, entre eles Turquia, Brasil, Espanha e Bangladesh, advertiram Israel a não atacar a flotilha. O comunicado ressaltava que os barcos transportavam apenas ajuda humanitária e que qualquer ação contra eles violaria o direito internacional. A ameaça de “responsabilização” soou firme no papel, mas é duvidosa na prática: em ataques anteriores, nenhuma medida efetiva foi adotada.

As interceptações não se restringem a cargas de alimentos e remédios. São também ataques à liberdade de expressão e ao direito de manifestação global. Entre os detidos em julho estavam parlamentares europeus, jornalistas e defensores de direitos humanos. Torna-se evidente que qualquer pessoa, de qualquer nacionalidade, que ouse questionar o cerco a Gaza será tratada como inimiga militar de Israel.

Apesar da ofensiva israelense contra a expansão das políticas de solidariedade, as mobilizações em prol da Palestina só ganham força, até mesmo em espaços culturais que fogem dos meios populares de pressão. Nos últimos dias, esse movimento transbordou para espaços de cultura e espetáculo de massa. Nos Emmys de 2025, astros de Hollywood romperam o silêncio conveniente da indústria, denunciando diante das câmeras o genocídio em Gaza. Javier Bardem surgiu no tapete vermelho com uma kuffiyah e exigiu boicote diplomático e comercial a Israel, enquanto a atriz Hannah Einbinder, premiada por Hacks, gritou “liberdade para a Palestina” no palco – fala que foi censurada pela transmissão oficial, mas amplificada nas redes.

No Reino Unido, mais de 12 mil pessoas lotaram a Wembley Arena no evento Together for Palestine, que arrecadou mais de £1,5 milhão para organizações palestinas. Entre música, poesia e discursos políticos, figuras como Florence Pugh, Benedict Cumberbatch, Richard Gere e Eric Cantona ecoaram a urgência de responsabilizar Israel por crimes de guerra.

Ruth Negga, Benedict Cumberbatch e Amer Hlehel no Together for Palestine. Reprodução: Getty.

Apesar do cerco, as flotilhas continuam partindo. O que Israel tenta desarticular pela força se multiplica pela solidariedade. A cada embarcação sequestrada, outras são preparadas. A cada ativista preso, novos voluntários se somam. O que está em jogo não é apenas o envio de alimentos ou remédios, mas o direito de dizer – diante do mundo inteiro – que Gaza não está sozinha, e que a ocupação deve acabar.