Projeto de Autarquização da Saúde da Unicamp avança sob conflitos de interesses

O sindicato disponibilizou uma agenda de luta, visando barrar esse projeto. No dia 02 de dezembro haverá pressão no CONSU que pautará o tema, e no dia 3, participarão da Audiência Pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP).

30 de Novembro de 2025 às 15h00

Hospital das Clínicas. Reprodução/Foto: Caius Lucilius/HC Unicamp.

Desde que assumiu a reitoria em abril deste ano, o reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Paulo Cesar Montagner, começou uma campanha visando autarquizar todo o complexo da Área da Saúde da Unicamp para entregá-lo à gestão privada. O projeto foi elaborado por um Grupo de Trabalho (GT) ligado à Diretoria Executiva da Área da Saúde - DEAS e conta com apoio também do governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. A gestão da nova autarquia seria entregue à secretaria de saúde do Estado, de onde os recursos passariam a sair, e não mais da secretaria de educação, via Unicamp.

O projeto elaborado pela DEAS, chamado “Projeto de Expansão das Atividades Acadêmicas da Unicamp: Viabilidade pela Autarquização da Área da Saúde”, busca convencer a comunidade universitária que ceder seu maior projeto de extensão, os hospitais da Unicamp e seus centros de referência, à administração privada, trará em troca uma suposta expansão de cursos e aumento do número de vagas e mais dinheiro para os institutos e faculdades.

A reitoria apoia o projeto da DEAS sob a justificativa de que o complexo da área da saúde demanda um aporte de recursos que a Universidade não pode suportar e que a liberação destes recursos, ao longo dos 10 anos de transição, permitiria o aumento do investimento em outras áreas de ensino e pesquisa. O contraponto foi feito pelo sindicato dos trabalhadores da Unicamp, que em seu boletim do dia 30 de setembro afirma: “O projeto de autarquização da Área de Saúde é apresentado como solução financeira, mas na prática representa um ataque direto à universidade pública e aos trabalhadores.”

Seriam integrados à nova autarquia o Hospital de Clínicas, reconhecidamente um dos melhores hospitais públicos do Brasil e do mundo, o CAISM - Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti, e outros seis centros de atendimento especializado. Além de servir como um dos principais complexos de atendimento hospitalar da região, os hospitais e centros de atendimento especializado também estão integrados às áreas de pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas e de outros institutos e núcleos produzindo ciência e desenvolvimento tecnológico avançado, por vezes atuando na fronteira do conhecimento em suas respectivas áreas.

A reitoria pretende convocar, às pressas, uma sessão extraordinária do Conselho Universitário - CONSU para o dia 02 de dezembro, período que o movimento estudantil e de trabalhadores tende a arrefecer devido ao período de férias e recesso. Para aumentar as incertezas, a convocação oficial para o CONSU do dia 02/12 ainda não foi realizada e o documento final do GT da DEAS (um documento de 92 páginas) só foi entregue aos conselheiros nesta última quarta-feira, dia 26/11. Após a aprovação do projeto, a minuta de lei elaborada pelo GT seria encaminhada à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo para votação.

As ligações do Grupo de Trabalho da Autarquização com a Fascamp, Organização Social da Saúde

O Grupo de Trabalho ligado à DEAS é composto por dezessete membros, dentre professores e funcionários, dos quais três possuem ligação com uma entidade de direito privado chamada Fundação da Área da Saúde de Campinas - Fascamp:

  • Prof. Dr. Claudio Saddy Rodrigues Coy: membro do GT de Autarquização, presidente do Conselho de Curadores da FASCAMP
  • Prof. Dr. Luis Carlos Zeferino: presidente do GT de Autarquização e membro do Conselho de Curadores da FASCAMP
  • Prof. Dr. Erich Vinicius de Paula: membro do GT de Autarquização e presidente do Conselho Fiscal da FASCAMP

Além disso, outros membros dos conselhos da Fascamp possuem posições estratégicas no alto escalão da universidade e fora dela, dos quais se destacam:

  • Cristiane Roberta Grizotti Trevine: membro do conselho fiscal da FASCAMP e Assistente Ténica da DEAS/Unicamp, braço direito do Prof. Luis Carlos Zeferino
  • Prof. Dr. João Renato Bennini Junior: membro do conselho fiscal da FASCAMP e Superintendente do CAISM
  • Francisco Vicente Rossi: membro do conselho curador da FASCAMP, ex-desembargador do Estado de SP e diretor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP

A Fascamp, criada em 2012, conta hoje com três convênios públicos em sua carta de clientes, o Hospital Regional de Piracicaba, o AME Amaparo, um centro ambulatório gerido pela Unicamp com interveniência da FASCAMP, e o Instituto de Otorrinolaringologia Cirurgia de Cabeça e Pescoço - Unicamp, embora, até o momento da escrita desta matéria não tenha sido possível encontrar informações a respeito deste Instituto no site da transparência da fundação.

A relação íntima entre a Fascamp e membros do alto escalão universitário revela uma rede de conexões pessoais e interesses particulares, que visa transferir os recursos que hoje são direcionados aos trabalhadores e aos usuários para a mão de alguns poucos. À título de comparação, um técnico de enfermagem da Fascamp ganhou R$2.983,72 de salário bruto em janeiro de 2025, enquanto os técnicos de enfermagem concursados da Unicamp ganham em torno de R$4.900,00 de salário bruto base, além de diversos benefícios como Vale Alimentação, Vale Refeição e Auxílio Saúde.

Ataque aos trabalhadores concursados

Com esta manobra da reitoria, todos os funcionários ligados aos hospitais, centros médicos e à equipe de compras e gestão de contratos da saúde (ligados à Diretoria Geral da Administração) seriam considerados afastados pela Unicamp e cedidos à nova autarquia. As regras para este afastamento não estão claras no projeto final da autarquização, mas desde já é possível vislumbrar ataques graves aos trabalhadores. A minuta da lei afirma que os trabalhadores serão afastados “sem prejuízo dos salários e demais vantagens, mantidos todos os direitos e obrigações decorrentes do contrato de trabalho ou do vínculo estatutário”.

O Estatuto dos Servidores da Unicamp - ESUNICAMP, em seu artigo 88, inciso V, permite o afastamento de seus servidores “para o exercício em órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, suas respectivas autarquias”. É justamente sob o inciso V deste artigo que cai o caso dos funcionários que seriam afastados para a nova autarquia.

Contudo, a malícia da minuta da lei está nos detalhes. O artigo 122 do ESUNICAMP afirma que “para fins de licença prêmio, não serão considerados como interrupção de exercício” “os afastamentos enumerados no artigo 88, exceto inciso V”. Ou seja, os trabalhadores afastados tendo como base o inciso V, não terão seu tempo de trabalho contado para licença prêmio, implicando que todos os trabalhadores afastados para a autarquia não terão mais o direito à licença prêmio.

Ainda, na Instrução Normativa que versa sobre o vale-refeição dos trabalhadores, o artigo 9 é claro:

Artigo 9º – O servidor terá direito ao benefício nas seguintes hipóteses de licença ou afastamento por:

a) Cessão para a Justiça Eleitoral;
b) Participação no tribunal do júri;
c) Convocação para depoimento;
d) Afastamento preventivo, de acordo com a Lei 10.261/1968;
e) Doação de sangue.

Não sendo nenhum destes o caso dos trabalhadores afastados para a autarquia, o Vale Refeição de todos está ameaçado, afetando de maneira significativa a alimentação de centenas de famílias.

Além destes casos, há inúmeras outras dúvidas sobre a possibilidade de progressão de carreira, transferência para outras unidades e estabilidade.

Por trás das promessas de aumento de recursos

Os Hospitais Universitários (HUs) foram criados para serem agentes nucleares de três políticas de Estado - ciência, educação e saúde. O caráter de autarquia das universidades, sua autonomia administrativa, científica e pedagógica, fez com que esses hospitais florescessem ao ponto de se tornarem referências dentro das suas regiões. Essa referência, no entanto, deixou de ser apenas científica e pedagógica na medida em que a estrutura de atendimento de saúde que deveria ser provida pelo Estado foi continuamente sabotada pelas reformas administrativas iniciadas já na década de 1990, que marcaram o crescimento da iniciativa privada no âmbito da assistência de saúde.

Depois, nos anos 2000, em um contexto onde a assistência provida pelos governos estaduais e municipais se mostravam expressivamente inaptas, os Hospitais Universitários acabaram adquirindo importância essencial para compor o quadro assistencial público nas suas regiões, precisando dar uma resposta em termos de escala, para a qual não foram projetados.

A partir do final da década de 1990, esse problema de política pública passa a ser compreendido como um problema de eficiência gerencial. Ao invés de destinar mais verbas para construir novos hospitais, além de expandir as redes de atendimento primário e secundário, se decide que os hospitais universitários não conseguem atender às demandas estabelecidas porque a gestão pública não é eficiente o bastante. A tese é de que as regras de transparência, impessoalidade, moralidade, publicidade, etc., tornam a organização dos hospitais morosa e burocrática, incapaz de alcançar os padrões de produtividade que a iniciativa privada performa.

As autarquizações surgem como soluções de "meio-termo" para esse problema. Não são totalmente privatizações, uma vez que com as autarquias o controle e a responsabilidade pelo serviço ainda é dos funcionários públicos que a compõem. Mas, ao mesmo tempo, como tem sido a regra, com as autarquias cria-se a possibilidade de que a gestão do serviço seja terceirizada para Organizações Sociais (as famosas OS), como fundações privadas sem fins lucrativos. Tais fundações fazem contratos com as secretarias de saúde dos Estados e Municípios, e recebem uma verba para custear as atividades dos hospitais por determinado período de tempo, atendendo a certos critérios, metas, etc. A grande questão é que enquanto entes privados, as fundações não precisam se submeter às regras de transparência e responsabilidade fiscal que regem os órgãos públicos. Portanto, a contratação de funcionários pode ser feita sem concursos públicos, as compras, os contratos e os convênios não precisam obedecer às mesmas leis de licitação e prestação de contas. Tudo isso é propagandeado como uma grande oportunidade para otimizar os recursos direcionados aos hospitais, desburocratizando a gestão e aumentando a oferta e a qualidade dos serviços.

Na prática, no entanto, o que acontece é que quando as regras da gestão pública não mais se aplicam na sua totalidade, os hospitais passam a funcionar como grandes balcões de negócios onde grandes e pequenos interesses privados podem prosperar às custas do dinheiro público dos repasses do SUS. É expressivo como um grande número de médicos das universidades públicas são sócios ou fazem parte do grupo de conselheiros das fundações privadas que são contratadas pela secretaria de saúde do Estado para gerir os hospitais autarquizados. Isso aconteceu no caso da FAMEMA, em Marília, e também no da Unesp de Botucatu. No caso da Unicamp isso é quase explícito. A Fundação da Área da Saúde de Campinas - FASCAMP é forte candidata a assumir o papel de gestora da autarquia, tendo inquestionável capacidade técnica e organizacional para disputar essa função no âmbito do Estado. No entanto, ocorre que a FASCAMP conta, nos seus grupos de conselheiros fiscais e de curadoria, com diversos médicos que são os principais idealizadores e defensores da autarquização, como demonstrado anteriormente.

Em outro registro, a flexibilidade de gestão das fundações permite que elas estabeleçam estratégias em conjunto com a iniciativa privada. Isso acontece frequentemente nos hospitais públicos de "porta dupla", onde a estrutura construída com o dinheiro público do SUS é negociada em esquemas complexos com médicos privados, empresas e planos de saúde. A capacidade de atendimento da "porta pública" do hospital diminui para dar lugar à "porta privada", expandindo os leitos em geral, mas diminuindo aqueles destinados ao atendimento público, gratuito e de qualidade.

Há 30 anos que as autarquizações são alardeadas e vendidas como soluções de gestão na área da saúde. E temos exemplos evidentes de que, tal como a privatização de serviços públicos estratégicos, não é verdade que a gestão privada entrega maior eficiência. As décadas de experiências de autarquização nos mostram que a transparência dos gastos públicos se torna menor. Os regimes de trabalho e a remuneração das trabalhadoras dos hospitais, em todos os níveis, pioram consideravelmente; a qualidade do atendimento e dos procedimentos utilizados no cuidado decai. Os hospitais deixam de ser uma extensão proporcionada para a população pelo trabalho coordenado da comunidade universitária e passam a ser um negócio privado, no qual as leis do mercado tendem a precarização dos serviços. As únicas pessoas que ganham com as autarquizações são aquelas empregadas pelas Fundações para postos de gerência, com salários às vezes até maiores que os do teto do funcionalismo público, e os "médicos-empresários" que se aproveitam do novo funcionamento de gestão para impulsionar seus negócios através de vendas de serviços, convênios, contratos, etc.

Próximos passos

O Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp - STU convocou os trabalhadores a lutar contra “O projeto que transfere a gestão de todo o complexo da Saúde da Unicamp para a Secretaria de Estado tira a autonomia da universidade e coloca nossos hospitais sob a mira da política privatista do governador Tarcísio.”

O sindicato ainda disponibilizou uma agenda de luta, visando barrar esse projeto. No dia 02 de dezembro haverá pressão no CONSU que pautará o tema, e no dia 3, participarão da Audiência Pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP).