BRF: de “campeã nacional” a escândalos sem fim

Péssimas condições de trabalho, desrespeito a direitos básicos, condenações judiciais pela morte de trabalhadores. O histórico da BRF é de completo descaso com seus trabalhadores, e tudo isso usando dinheiro público.

19 de Julho de 2025 às 21h00

Reprodução/Foto: Cristiano Estrela / Agencia RBS.

Uma funcionária do grupo BRF entrou em trabalho de parto durante o expediente na unidade de Lucas do Rio Verde no Mato Grosso e foi impedida de procurar ajuda médica, o que acabou resultando na morte dos bebês, duas meninas gêmeas. O caso aconteceu em abril de 2024 e em decisão judicial, a 2ª Vara do Trabalho de Lucas do Rio Verde condenou a empresa ao pagamento de uma indenização de R$ 150 mil pelo ocorrido.

Foi destacado na decisão o fato de a trabalhadora ter sido impedida de buscar ajuda médica, além de negligência ao não providenciar assistência adequada dentro da própria unidade, fato comprovado a partir dos testemunhos de outros trabalhadores do setor médico da empresa, que declaram não ter sido acionados em momento algum pelos responsáveis.

A funcionária, que é uma mulher negra de 32 anos natural da Venezuela que estava no oitavo mês de gravidez, cumpria uma jornada de mais de oito horas diárias quando sentiu as dores do parto e buscou ajuda, mas não foi autorizada a deixar seu posto de trabalho para não prejudicar a produção. Com a piora dos sintomas, a mulher deixou o frigorífico por conta própria e tentou pegar um ônibus, mas, com o agravamento da sua situação, acabou dando à luz e as crianças não resistiram.

Com depoimentos colhidos no curso do processo, constatou-se que, embora houvesse um protocolo a ser seguido, foi ignorado, bem como não foi chamado o Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (SESMT).

Na sentença se apontou que imagens das câmeras de segurança mostraram que o parto aconteceu nas dependências da empresa, e não do lado de fora como a defesa havia tentado sustentar. O parto durou cerca de 3 horas e o serviço de saúde não foi acionado em momento algum.

O caso coloca em evidência os limites da lógica neoliberal que predomina no Brasil há pelo menos 30 anos, e remonta ao próprio surgimento da BRF como uma das “campeãs nacionais”.

Em 2009, a Sadia acumulou prejuízos insustentáveis, a empresa experimentou um prejuízo de cerca de R$ 2,5 bilhões depois de ter apostado em operações de câmbio, comprando dólares. À época, com a crise global de 2008, o dólar disparou de preço.

Com a política das “campeãs nacionais”, o governo do PT, durante o segundo mandato do presidente Lula, articulou a aquisição da Sadia pela Perdigão, com a criação da gigante BRF utilizando créditos subsidiados do BNDES, o que se concretizou em 2011 com a aprovação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia cujo objetivo é prevenir práticas anticoncorrenciais.

Após a operação, a BRF já nasceu como a maior empresa de alimentos industrializados do país e a 10ª maior das Américas. Dados de 2015, portanto 7 anos após a operação, apontavam que produtos da BRF estavam presentes em 90% de todos os domicílios do Brasil, sendo responsável por 20% do comércio de aves do mundo.

Acontece que essa operação de crédito se deu às custas dos trabalhadores, sem contrapartida, sem melhoras efetivas e duradouras das condições de trabalho. Uma parte dos recursos provinha do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que são recursos oriundos do FGTS ao custo de 3% ao ano + a TR (que é de aproximadamente 2%). Outra parte dos recursos vem do Tesouro Nacional por meio da emissão de títulos da dívida pública, que na época da operação contava com uma taxa base de juros em torno de 12%. Com os recursos levantados, o Tesouro repassa ao BNDES, que empresta ao custo de 7,5%, o que significa que o governo toma dinheiro com um custo maior do que o que empresta.

Essa estratégia de estimular empresas nacionais a se tornarem grandes competidoras no cenário internacional é comum internacionalmente. Envolve a destinação de recursos públicos para garantir o sucesso de grupos privados. Acontece que envolve altas taxas de juros sustentadas para controlar o consumo das classes trabalhadoras, bem como para captar os recursos necessários. Ainda, destaca-se a precária condição de trabalho a que são submetidos os trabalhadores dessas empresas beneficiadas.

Levando em consideração o setor de frigoríficos como o caso da BRF, não é algo novo a precarização dos direitos dos trabalhadores. Pesquisas apontam que a maior parte dos trabalhadores do setor recebe até três salários mínimos (a trabalhadora da unidade de Lucas do Rio Verde recebia menos de R$ 2.000,00), ainda se destacam condições nocivas à saúde, com trocas constantes de temperatura, ruídos intensos, exposição de materiais biológicos de animais e movimentos repetitivos por cerca de oito horas diárias, em um modelo de produção que lembra as linhas fordistas-tayloristas. Dados divulgados em 2015 descrevem que na região sul, por exemplo, 85% dos trabalhadores de frigoríficos sentem algum tipo de mal estar devido às atividades desenvolvidas no trabalho e 20% se afastam em razão de doenças associadas ao trabalho.

Trata-se de um setor que exige alta produtividade, com condições bastante intensas, com uma temperatura média em torno de 12ºC e que os EPIs, mesmo quando corretamente utilizados de forma adequada, não dão proteção completa. As principais doenças associadas são: doenças osteomusculares, traumatismos e lesões, doenças psicológicas e infectocontagiosas, com uma quantidade significativa de caso de LER/DORT (Lesão por Esforço Repetitivo e Distúrbio Osteomusculares Relacionados ao Trabalho).

Durante a pandemia de covid-19 os trabalhadores desse setor foram expostos a intensos riscos de contaminação, com frequentes denúncias de que as regras sanitárias não eram cumpridas, como distanciamento mínimo entre os trabalhadores.

Em 2024, a BRF foi condenada a pagar R$ 450 mil a família de um trabalhador da unidade de Embu das Artes (SP), que veio a falecer em decorrência de contaminação por covid-19 no local de trabalho. A decisão judicial destacou que a empresa negligenciou medidas de proteção no início da pandemia. O trabalhador atuava no setor de distribuição com cerca de 2 mil pessoas em todos os turnos e, segundo testemunhas do caso, a empresa só começou a adotar efetivamente medidas de segurança depois de sua morte, inclusive porque houve um surto da doença na unidade com afastamento de cerca de 800 pessoas.

Ainda em 2020, no auge da pandemia, uma única fábrica da BRF representou cerca de 29% dos casos de covid-19 em frigoríficos do Paraná, segundo dados de agosto daquele ano. Foram 1.138 casos na unidade de Toledo.

Um dos casos que mais ganhou destaque, foi o escândalo da “operação carne fraca”. Em 2017 foi deflagrada uma operação da Polícia Federal nomeada de Operação Carne Fraca, cujo foco era combater esquemas de corrupção envolvendo fiscais do Ministério da Agricultura que recebiam propina para liberar a comercialização de produtos adulterados e com prazo de validade vencido. Inclusive, chegou-se a identificar que parte desses produtos impróprios para o consumo foi destinado a merenda escolar na rede pública do Paraná.

Na unidade da BRF de Lucas do Rio Verde, a mesma em que uma trabalhadora foi tratada com descaso e acabou perdendo as duas filhas em razão de complicações na hora do parto, em 2022 houve uma paralisação que acabou sendo judicializada pela empresa. Em suma, os trabalhadores reivindicavam a anulação de uma cláusula do Acordo Coletivo de Trabalho que havia sido firmado pelo sindicato com a empresa, que previa o fim do vale-alimentação e sua conversão em um abono presença, que deixaria de ser pago em caso de duas ou mais faltas, mesmo que justificadas. Os trabalhadores acabaram conseguindo reverter as medidas autoritárias da empresa, principalmente aquelas que penalizavam aqueles que aderiram ao movimento grevista.

Por fim, neste ano de 2025, foi noticiado, em estado já avançado, negociações para fusão da BRF com a Marfrig. A operação, caso seja concluída, importará na criação de uma empresa ainda maior, dominando ainda mais o mercado de alimentos. Dados de 2019 apontam que ambas as empresas estão na lista das 10 maiores empresas de carne do mundo, sendo a BRF uma das maiores produtoras de aves do mundo.

Fica evidente de todos esses casos, é que a BRF, que nasceu da ação do Estado brasileiro durante a política desenvolvimentista do governo do Partido dos Trabalhadores, financiada com recursos públicos do BNDES, propagandeada como “progresso” para o país, mas que, de fato, significou o investimento público em grandes monopólios privados, sem nenhuma contrapartida aos trabalhadores.