Pé-de-Meia deverá ser incluído no piso constitucional da educação
O chamado Pé-de-Meia está em conflito com a política de corte de gastos do governo Lula. Só no último ano o Ministério da Educação sofreu um congelamento de R$15 bilhões e o Arcabouço Fiscal pode impedir a continuidade da política pública.

Reprodução/Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
O Pé-de-Meia é, em síntese, mais uma política pública que tem como objetivo combater a evasão dos estudantes de baixa renda do Ensino Médio, através de um auxílio financeiro de R$ 200 por mês – além do valor de R$ 1000 ao concluir cada ano do Ensino Médio.
No último dia 11 de junho, o governo Lula anunciou através da Medida Provisória Nº 1.303 a inclusão do Pé-de-Meia no piso constitucional da educação, piso este que determina o destino mínimo de 18% da receita líquida de impostos ao setor da educação. Ou seja, além das inúmeras despesas já comuns atendidas pelo piso constitucional, também deverá ser incluído o programa do Pé-de-Meia.
Agora que o programa está dentro do piso constitucional da educação, nada impede que o programa sofra cortes nos próximos meses e que tenha sua continuação comprometida. Um programa que, mesmo que possua limitações claras, em caso de interrupção, poderia provocar um aumento ainda maior da evasão escolar.
O chamado Pé-de-Meia das licenciaturas possui o mesmo problema, já que as bolsas estão atreladas à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e que podem eventualmente ter seu orçamento cortado pelo Novo Teto de Gastos.
Além do risco do próprio pé-de-meia ter sua verba completamente ou parcialmente cortada, há também a possibilidade de redução de investimentos no setor da educação em si. Isso porque caso se pague apenas o mínimo do piso, que é de 18%, o investimento em outros programas e outros gastos comuns, que já fazem parte do orçamento para o piso, podem ficar comprometidos.
O piso do orçamento da educação que via de regra já é aquém do necessário, com a inclusão do Pé-de-Meia, pode deixar outros investimentos cruciais de lado, ou acabar colocando em risco o pagamento do próprio programa quando as metas fiscais de déficit zero exigirem mais congelamentos ou cortes de verba.
Quando foi anunciado em 2023, levantou-se questionamentos sobre como o programa seria mantido diante da política econômica do governo petista, o qual vem reduzindo bruscamente os investimentos públicos para atingir as metas fiscais de déficit zero.
Os mesmos questionamentos surgiram com o anúncio do Pé-de-Meia das licenciaturas. Semelhante ao do Ensino Médio, tem como objetivo dar auxílio financeiro para os ingressantes nos cursos de graduação em licenciaturas, para tentar promover a formação de mais professores e mitigar o “apagão de professores” do ensino básico no Brasil.
A conta do Arcabouço Fiscal – ou Novo Teto de Gastos – começou a aparecer já no começo de 2024, quando o governo anunciou um congelamento de R$ 15 bilhões, sendo R$ 1,28 bilhões da verba do MEC. Aproximadamente R$ 500 milhões deste montante seria para pagar o Pé-de-Meia. Além disso, para o programa funcionar, eram necessários R$ 8 bilhões, porém havia apenas R$ 6,1bi.
Para conseguir atingir as demandas de verba para o Pé-de-Meia, o governo decidiu jogar por “fora” das regras fiscais. Em síntese, o governo autorizou uma transferência de R$ 6 bilhões do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC) para o Fundo do Pé-de-Meia e, no fim do ano, também autorizou a transferência de mais R$ 4 bilhões do Fundo Garantidor de Operações (FGO), usado no Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), para o mesmo fim. É importante salientar que ambos os fundos são privados.
Apesar do uso dos fundos ter sido aprovado pelo Congresso, ele não passou pelo Orçamento. Isso porque a transferência se deu de forma direta entre os fundos privados e o Fundo do Pé-de-Meia, ou seja, essa verba passou por fora das regras fiscais impostas pelo Novo Teto de Gastos.
No começo do ano de 2025, o Tribunal de Contas da União (TCU) criticou o fato da verba ter passado por fora do orçamento e mandou suspender os pagamentos do Pé-de-Meia que vinham dos fundos privados. Isso fez com que o programa ficasse impossibilitado de acessar os R$ 10 bi somados que vinham do FGEDUC e do FGO, restando apenas um pouco mais de R$ 1 bilhão do caixa do Fundo do Pé-de-Meia que, apesar de não paralisar o funcionamento do auxílio, é insuficiente para sua continuação durante todo o restante do ano.
A Advocacia Geral da União (AGU) recorreu à decisão do TCU de suspensão da verba e conquistou a liberação novamente. O Tribunal considerou o pedido da AGU, apesar da falta de previsão orçamentária, pois acredita que a continuação do programa é de “vital importância para os estudantes brasileiros.”
Entretanto, o Tribunal de Contas exigiu que o programa estivesse incluso dentro do orçamento de 2025 em um prazo de até 120 dias. Foi quando no último dia 11 de junho, o governo Lula anunciou através da Medida Provisória Nº 1.303 a inclusão do Pé-de-Meia no piso constitucional da educação, piso este que determina o destino mínimo de 18% da receita líquida de impostos ao setor da educação. Ou seja, além das inúmeras despesas já comuns atendidas pelo piso constitucional, agora fará parte destas despesas também o programa do Pé-de-Meia.
Os “Pé-de-Meias” são insuficientes e limitados
Ambos os programas são significativos, mas possuem limitações quando o objetivo é acabar com a evasão escolar ou, no caso do Pé-de-Meia das licenciaturas, promover a formação de qualidade de mais professores no Brasil.
Todos os anos 480 mil jovens e adolescentes abandonam a escola. Os motivos para a evasão escolar no Brasil são vários, como: trabalho na adolescência para complementar a renda doméstica, gravidez precoce, a incidência na vida do crime etc. O fato é que a grande maioria não vê possibilidade real de futuro através dos estudos.
“Muita coisa me fez abandonar os estudos, não é só questão de dinheiro, mas principalmente o fato de que eu não via possibilidade de me desenvolver.” disse Josué da Silva Oliveira, de 19 anos, que abandonou a escola para conseguir trabalhar. “Não tinha nada interessante, eu não via de que jeito ia conseguir melhorar de vida.” afirma o jovem, em entrevista a CartaCapital.
Embora o incentivo financeiro seja positivo, especialistas apontam que ele talvez não seja suficiente para trazer os jovens de volta à escola.
“Hoje, os estudantes do Ensino Médio estão numa espécie de limbo, porque já está provado que esse Novo Ensino Médio não deu certo (...). Na maioria das vezes não é por vontade própria, mas porque precisam trabalhar, ou porque tiveram gravidez precoce. Se a escola não for atrativa e acolhedora, muito dificilmente será possível reverter esse quadro”, afirma o ex-secretário de Educação da capital paulista, Alexandre Schneider.
É necessário compreender a evasão escolar como um fenômeno maior que não pode ser resolvido com um auxílio financeiro de apenas R$ 200 por mês. A estrutura escolar e a desvalorização dos profissionais da educação entram dentro do rol de problemas que também levam à evasão escolar desses adolescentes.
“Combater a evasão significa necessariamente combater a precarização do trabalho, o avanço do setor privado sobre a educação, o Novo Ensino Médio, o cinicismo e desesperança gerados por um método e conteúdo educacional distante das realidades dos alunos, a lógica de ensino ainda profundamente colonizada, a exploração de crianças para o trabalho, o abuso sexual de menores e a gravidez precoce, a homofobia e a transfobia, a violência doméstica, o bullying, o constante acobertamento dos abusos que os estudantes sofrem dentro do ambiente escolar, etc.” Como afirmamos neste jornal em matéria passada, em agosto de 2024.
Mesmo que este jovem se mantenha na escola, suas perspectivas de futuro ainda continuam difíceis, já que a qualidade do ensino continua a mesma e, com o advento do Novo Ensino Médio, ainda pior.
“A tendência até pode ser redução da evasão, mas o aluno não vai receber uma educação de qualidade. É preciso melhorar as condições das escolas, as condições de trabalho dos professores, estruturar, de fato, a Educação. Me preocupa que só tenha esse programa sendo elaborado para combater a evasão.”, pondera o professor da Faculdade de Educação da USP, Daniel Cara.
O mesmo problema acontece de forma semelhante quanto ao Pé-de-Meia das licenciaturas. O Pé-de-Meia das licenciaturas integra o programa Mais Professores do Governo Federal e consiste num auxílio financeiro de uma bolsa de R$ 1.050 por mês, dos quais R$ 350 serão depositados numa poupança a ser resgatada apenas no final do curso.
O programa apresenta alguns furos, como por exemplo: a inexistência de ações afirmativas para estudantes de minorias sociais e econômicas; a competição por nota de no mínimo 650 pontos no Sistema de Seleção Unificada (SiSU) para concorrer à bolsa, dificultando o acesso a estudantes vulneráveis, mais dependentes de bolsas, mas que acabam tendo as menores notas no SiSU.
Além disso, das 12 mil bolsas ofertadas pelo programa, apenas 6.532 inscritos alcançaram os requisitos para receber o benefício. Isso se explica por diversos motivos. Primeiro pela nota mínima de 650 pontos ser acima da média dos ingressantes em licenciaturas, e segundo porque não podem concorrer à bolsa estudantes matriculados em Ensino à Distância (EaD), que correspondem a 77% das matrículas de licenciaturas no país, segundo o último Censo do Ensino Superior.
Além disso, a bolsa também não abrange estudantes ingressantes por outros vestibulares além do ENEM, o que deixa de lado estudantes que ingressam em universidades que possuem vestibulares próprios como a USP, a Unicamp ou a UNESP.
O Novo Teto de Gastos ameaça a continuação dos programas
Importante salientar que os programas são insuficientes e não apresentam as mudanças estruturais das quais precisam a educação brasileira. Apesar disso eles possuem algum grau de importância para auxiliar os jovens estudantes brasileiros.
Porém, a continuidade dos Pé-de-Meias – tanto do Ensino Médio quanto das licenciaturas – é incompatível com a política fiscal neoliberal imposta pelo Arcabouço Fiscal do governo Lula. Ambos os programas, já frágeis, podem ter seus dias contados com a ameaça do Novo Teto de Gastos.
O jogo que o governo fez por “fora” do orçamento é um alerta de que há uma contradição entre o anúncio de programas de incentivo financeiro – que demandam gastos e investimentos – e uma política econômica de déficit zero que ameaça a continuidade desses programas.
Ambos os programas precisam, pela lei do Arcabouço Fiscal, estarem em consonância com a política econômica. O problema é que essa contradição entre o investimento e o corte de gastos de setores tão elementares, como é a educação, pode provocar um apagão maior ainda de professores e um aumento ainda maior da evasão escolar, caso os pé-de-meias sejam interrompidos pelas metas fiscais do Novo Teto de Gastos.