Prefeita Sheila Lemos abandona a Casa dos Estudantes Quilombolas Dandara dos Palmares, em Vitória da Conquista (BA)
Sheila Lemos vira as costas para os estudantes conquistenses, com escolas municipais com estruturas precárias, caos no transporte público.

Reunião ampliada da Associação dos Estudantes Quilombolas e Pré-Vestibular Dandara dos Palmares (AEDP) com movimentos sociais. O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) esteve presente e se solidariza com a luta. Reprodução: Redes sociais.
A Casa dos Estudantes Quilombolas Dandara dos Palmares de Vitória da Conquista (BA) está sofrendo um grande ataque da gestão municipal, da prefeita bolsonarista Sheila Lemos (UNIÃO). No dia 05 de dezembro, a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC), emitiu uma nota em seu site, anunciando que estava encerrando o apoio a Casa dos Estudantes Dandara dos Palmares. Tal notícia pegou de uma ingrata surpresa a Associação dos Estudantes Quilombolas e Pré-Vestibular Dandara dos Palmares (AEDP) e os residentes da Casa. Abrindo uma grande possibilidade da descontinuidade de tão importante mecanismo de inclusão educacional e permanência para estudantes negros, de baixa renda, quilombolas e indígenas.
O contexto
Vitória da Conquista abriga três grandes instituições públicas de ensino superior, a UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), UFBA (Universidade Federal da Bahia - Campus Anísio Teixeira) e IFBA (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia) e tantas outras IES’s privadas. Trata-se de um polo educacional relevante para a região, portanto, recebe todos os anos muitos estudantes de cidades circunvizinhas, da Bahia e até de outros estados próximos. Uma massa de estudantes que necessitam de assistência e permanência para concluírem com êxito, o sonho de gerações de uma graduação ou pós-graduações. Essa cidade, também é destaque por ser a 10ª cidade mais quilombola do Brasil, que abriga 12.057 habitantes de quilombo, segundo o censo de 2022 do IBGE. Há 33 territórios reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, sendo um território, o Beco de Vó Dola, o único quilombo urbano no Brasil, reconhecido pela fundação.
A Casa, foi um aparato idealizado por uma importante militante do movimento negro de Vitória da Conquista, falecida recentemente, com enorme pesar para quem a conhecia e lutava ao seu lado, Elizabeth Ferreira Lopes, a tia Beta. Bem como, a partir do cursinho popular Pré-Vestibular Dandara dos Palmares, com mais de 30 anos de história, que Beta e o movimento negro conquistense também fundou. Neste ano, o cursinho Dandara foi selecionado no edital da Rede Nacional de Cursinhos Populares, o CPOP, programa criado pelo atual governo Lula. A Casa é a primeira experiência de uma residência para permanência de estudantes quilombolas em todo país; existe há 17 anos, no mesmo local, a partir do apoio da administração pública, locatária e mantenedora do imóvel e sofre hoje com sua possível descontinuidade, pois a gestão de Sheila Lemos, cruza os braços.
O abandono de Sheila Lemos aos estudantes
O imóvel, usado para abrigar estudantes de baixa renda, quilombolas e indígenas e que neste ano habitaram 17 estudantes, passou por danos estruturais e sanitários, após fortes chuvas do fim do ano de 2023 e em 2024, chegando a ser considerado inabitável pela Defesa Civíl. Agora, o proprietário do imóvel demonstrou não ter intenção de renovar o contrato de locação com a Prefeitura de Vitória da Conquista, firmadora do contrato e mantenedora do imóvel, cedido para uso da Casa dos Estudantes. De forma oportunista a esta situação, a prefeita Sheila Lemos comunicou o encerramento do apoio a Casa. A PMVC alega irregularidades no contrato com a AEDP, descumprimento da “Lei Miroski”, problemas estruturais do imóvel e pela casa abrigar estudantes de outros municípios.
Segundo nota da Associação, as supostas irregularidades no contrato apresentadas pela PMVC, dizem respeito à falta de estatuto social, regimento e atas de posse. Uma grande mentira, rebatida pela AEDP com a apresentação de todos os documentos, na bio do seu Instagram e pelo fato do Cursinho Pré-Vestibular Dandara dos Palmares ter sido contemplada no edital do programa CPOP, há pouco, neste mesmo ano.
Já sobre a “Lei Miroski” ou, Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que rege sobre a necessidade de mecanismos de transparência nas parcerias entre poder público e organizações e entidades sociais, a AEDP na gestão de Herzem Gusmão, em 2017, procurou a administração pública para regularizar sobre os termos dessa Lei e a gestão e a Procuradoria-Geral entendeu que não havia essa necessidade. Mas a Associação, por ter seus documentos em dia, está disposta a regularizar sob os termos do Marco.
Os danos estruturais do imóvel, que a nota da Prefeitura apresenta e reconhecida pela Associação e os residentes, foi comunicada a gestão, em reunião com a própria prefeita Sheila Lemos, em abril deste ano e a resposta dada é que “não havia nada a ser feito” e que a gestão estava de “mãos atadas”.
O encerramento do apoio da gestão municipal reflete significativamente na vida dos estudantes, pegos de surpresa no fim de semestre, voltando para os seus lares sem a certeza de poder retornar no semestre que vêm. Sheila Lemos vira as costas para os estudantes conquistenses, com escolas municipais com estruturas precárias e caos no transporte público. Nega a realidade da posição da cidade de Vitória da Conquista, em ser pólo atrator de quem busca ingressar no ensino superior, mesmo sendo de outras cidades e, principalmente, de quilombos, população negligenciada e atacada pela sua gestão. Esse é um segundo grande golpe aos estudantes quilombolas, que não têm mais escolas, fechadas em muitos territórios, pela sua gestão. Quando a ideologia da meritocracia, defendida por gente da sua laia, encontra a realidade, temos Vitória da Conquista, cidade de oportunidades para o estudante branco e cis, de classe média ou rico, não é a mesma e vira as costas para os estudantes de baixa renda, negros, quilombolas e indígenas. Somente a organização popular e a solidariedade de classe, irá barrar os retrocessos de sua gestão e reabilitar o importante mecanismo da Casa dos Estudantes Quilombolas em Vitória da Conquista.
Entrevista
O jornal O Futuro em compromisso com a luta por uma educação digna e universal, pela luta imediata por assistência e permanência nas escolas e universidades e pela solidariedade a todas as lutas da classe trabalhadora, denuncia essa afronta ao movimento negro e aos povos indígenas e de quilombo. Convidamos o Coordenador Pedagógico do Cursinho Dandara dos Palmares, Robson Dantas e o presidente e residente da Casa dos Estudantes, Paulo Vitor Rocha, para uma entrevista, para divulgar a importância desses dois mecanismos para a região e entender melhor sobre a situação atual.
O Futuro: O Cursinho Dandara dos Palmares carrega uma trajetória de mais de 30 anos, sendo um aparato avançado para sua época de fundação e de relevância social até hoje. Gostaria que apresentasse essa história, resgatando a memória de Tia Beta e que definisse a importância desse Cursinho para a classe trabalhadora conquistense e da região.
Robson Dantas: Bom, então, eu me chamo Robson Dantas, eu sou professor de matemática no pré-vestibular Dandara dos Palmares. Atualmente, eu assumo a função de coordenador pedagógico e já se passaram 23 anos que eu faço parte desse projeto, que eu tive a oportunidade de conhecer esse projeto e sou muito feliz com isso. E a motivação para a criação do cursinho foi justamente perceber o número reduzido de vagas nas universidades públicas e a consequente dificuldade enfrentada pela população de baixa renda, sobretudo os negros, quilombolas, os indígenas, no que se refere ao acesso às vagas desses cursos de ensino superior, aquele município de Vitória da Conquista. Então a gente entendia que uma parte da população permanecia excluída de um direito social básico, que é justamente a educação, a educação a nível superior. Então, a iniciativa de criação de um cursinho que atendesse a essa população excluída racial e socialmente da sociedade foi por parte da Associação Cultural Agente de Pastoral Negros, os APNs, em que Beta fazia parte. E Beta idealizou esse sonho. E passou a ser uma opção viável aos negros, quilombolas, aos indígenas, às pessoas de baixa renda. possibilitando a complementação dos estudos desse público, com a preparação direcionada para as provas dos vestibulares. [...] Então, atualmente, a gente tem uma única sala e a gente consegue oferecer o curso para 40, 50, a gente já teve a turma até com 52 alunos nesses últimos três anos. Esse último ano a gente conseguiu uma turma de 40, acho que chegou a 45 alunos. Mas a gente tem uma estimativa de que até o momento já passaram pelo cursinho um quantitativo de 4.550, uma estimativa que a gente tem. E desse total, aproximadamente 1.810 já ingressaram em universidade pública. Então, esse aí é o quantitativo que a gente tem das universidades públicas. Então, fora os que adentraram em universidades privadas, que aí a gente não tem, essa contabilidade exata. Mas se a gente for somar, eu acredito que passa além dos 2.000, talvez 2.500 alunos.Então, são 31 anos de serviço prestado à comunidade conquistense e aos quilombos da região de conquista e regiões circunvizinhas. Então, o impacto é justamente você contribuir com a democratização do acesso ao ensino superior. [...]. E, além de tudo, a gente trabalha muito a questão racial [...] trabalhar essas questões raciais, esses debates raciais, a questão histórica e questões atuais também. A gente traz o debate atual desse racismo estrutural existente na sociedade. Então, tudo isso acho que causou um impacto muito grande. A gente traz um reavivamento, um sonho, uma esperança desses meninos de entrar na universidade. E quando eles passam, nossa, eles trazem relatos de felicidade da família, da mãe que chora, do pai que chora, e é uma felicidade muito grande pra gente. E Beta pensou adiante, porque os meninos que vinham do Quilombo para estudar no pré-vestibular e posteriormente passavam para as universidades, que começavam a ocupar as universidades, eles não tinham onde ficar. E aí ela teve o sonho, um outro sonho de criar a Casa do Estudante Quilombola, buscou parcerias e conseguiu realizar esse sonho [...] conseguiu fundar essa Casa do Estudante Quilombola, que existe há 17 anos. É a primeira Casa do Estudante Quilombola do Brasil. Hoje a gente entristece e causa revolta essa falta de apoio da administração municipal de Vitória da Conquista. É muito triste e é revoltante. A gente vê que uma política social está sendo abandonada pela administração pública.
O Futuro: A Casa dos Estudantes Quilombolas é um marco histórico para Vitória da Conquista e um mecanismo significativo para muitas vidas que já passaram por lá e as que lá estão hoje, residindo e construindo sua história. A decisão da Prefeitura de romper o apoio a Casa, rompe com essa história e coloca essas vidas na indefinição de seu futuro imediato. Faça uma retrospectiva da importância desse marco histórico e o contexto atual de negligência da administração pública a essas vidas.
Paulo Vitor Rocha: Então, eu sou residente aqui da casa desde 2022, foi quando eu ingressei na faculdade. [...] Eu sou de Condeúba, é a 150 quilômetros daqui, e aí eu pensei, como é que eu vou ficar em Conquista se eu não tenho nenhum amparo, se eu não tenho nenhuma bolsa, se eu não tenho nada para começar? Aí foi quando eu soube da casa do estudante quilombola. A Casa do Estudante Quilombola surgiu em 2008 pela militância, pela atuação dos APNs, dos agentes de pastoral negro aqui em Vitória da Conquista, cuja liderança principal naquela altura era a Beta. Ela já tinha, fruto de muita luta, de muita militância, conseguido o cursinho, o pré-vestibular, que hoje chamam Dandara dos Palmares. E aí tinha aquela questão, o cursinho era para pessoas quilombolas, negras, de baixa renda, muitos destes que vinham de quilombos, de pessoas de regiões de fora da cidade. E aí não tinha como, era difícil esse acesso. Foi a partir dessa sensibilidade, desses estudantes que precisavam acessar o cursinho, mas não tinham como voltar para casa, que Beta começou a articular essa casa. [...] Naquela altura, já era uma casa destinada a estudantes quilombolas. Inclusive, em Vitória da Conquista, tinha quatro estudantes. A maioria eram de outros quilombos, de outras cidades. Então sempre o alvo foi estudantes quilombolas, sem nunca ter sido o pré-requisito, ser de Vitória da Conquista. E assim funcionou dessa forma por 17 anos, até atualmente,quando no ano passado nós procuramos a prefeitura, porque a casa estava com problemas estruturais, as chuvas haviam danificado muito a casa, nunca passou por uma reforma de quando a gente está aqui, e o proprietário [...] falou que não queria mais renovar o contrato e a gente fez um ofício, mandou pra prefeitura pra poder procurar um outro lugar. No entanto, a casa é fruto de um movimento de esquerda. Na época de fundação foi um movimento de esquerda, a coordenação foi um movimento de esquerda que manteve, que articulou, e a gestão atual, como todos sabem, é de extrema-direita. Óbvio que eles não iriam querer manter uma política de um... de um mandato diferente do deles, de uma gestão que foi oposição, inclusive nas últimas eleições, cuja eleição nós articulamos, nós fizemos movimentação em apoio ao oponente da prefeita. Isso só para demonstrar o sentimento, a intuição clara de que isso nada mais é, todo esse processo, toda essa turbulência, nada mais é do que perseguição política. Então, a primeira alegação era de que os documentos estavam incorretos, que é o que a gente está desmentindo ao público. Primeiro, eles afirmaram que nós não estávamos com a ata de diretoria correta, que estava inadimplente, plano de trabalho, estatuto social, que foi o que eles também justificaram. Então, eles falaram dessa documentação e também citou a Lei do Miroski. Essa lei entra em vigor a nível federal e os municípios começam a aderir ela em 2017. que foi este ano de 2017, que nós mexemos também no estatuto da nossa associação, por outras razões, inclusive foi quando a gente mudou o nome da associação, que antes era Zumbi dos Palmares, e aí a gente chegou a discutir com o gestor, naquela altura, Herzem Gusmão, fazer essa mudança, essa adequação à lei do Miroski, mas ele entendeu, a própria procuradoria geral do município, quem mexeu com o nosso estatuto, que mexeu com a nossa documentação, entendeu que não precisava, que o modelo que tinha sido firmado até então era válido e funcionava muito bem. Então, manteve isso, a gente mexeu com a documentação, deu prosseguimento, renovou o contrato, fez tudo o que tinha que fazer e seguiu. E a documentação, eu saliento, a nossa documentação atual está toda correta. Nós temos toda a documentação, inclusive documentação suficiente para que se fosse realmente necessário firmar essa regularização via Miroski, nós tínhamos condições. E assim, parece que eles colocam a venda nos olhos e esquecem do compromisso histórico que Vitória da Conquista tem. São 17 anos que ela dedicou a essa casa, tendo a consciência, os outros prefeitos tiveram a consciência, a sensibilidade de entender que Vitória da Conquista é o terceiro maior município do estado da Bahia. Ela é uma das maiores cidades em população quilombola do país, ela é um polo educacional, ela tem pelo menos três universidades, ela tem dezenas de instituições privadas, de cursos preparatórios. É um polo forte e ela não pode tirar das costas delas essa responsabilidade enquanto prefeita de um município com a amplitude de Vitória da Conquista. O fato é que a gente tem ainda tentado resistir aqui. Foi final de semestre, foi uma loucura intensa conciliar tudo isso com o final de semestre, e muitos precisando dar um descanso pra mente, e ainda que por conta dessa resistência, sem saber se a gente pode ir celebrar o Natal, o Ano Novo, com os nossos familiares, ou se a gente vai ter que ficar aqui, ainda estamos nessa incógnita ainda.