A fraude do Universidade Gratuita e das “comunitárias”: a herança da ditadura no ensino superior de Santa Catarina

O programa Universidade Gratuita, carro-chefe da propaganda do governador Jorginho Mello (PL), se consolidou como o programa de bolsas mais fraudado da história de Santa Catarina. Mas o problema vai muito além das fraudes. A raiz está no próprio modelo privatista e elitista do ensino superior catarinense, herdado diretamente da ditadura militar.

19 de Julho de 2025 às 15h00

Governador de SC, Jorginho de Mello (PL). Reprodução/Foto: Roberto Zacarias / SECOM.

Por Pablo Mucelini (editor da Chapecó Crítica)

O programa Universidade Gratuita, carro-chefe da propaganda do governador Jorginho Mello (PL), se consolidou como o programa de bolsas mais fraudado da história de Santa Catarina. Dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC) revelam que cerca de 18 mil alunos, 44% dos beneficiários, apresentam indícios de irregularidades. Entre eles, 858 estudantes oriundos de famílias com veículos de alto padrão, empresas robustas e imóveis de até 48 milhões de reais. Já a Polícia Civil de Santa Catarina, através do diretor alinhado ao governador, fala em 300 fraudes. Mas o problema vai muito além das fraudes. A raiz está no próprio modelo privatista e elitista do ensino superior catarinense, herdado diretamente da ditadura militar.

O aluno como produto, o ensino como negócio

O governo poderia fortalecer a UDESC, que é pública, gratuita e tem custo de ensino por aluno 16% inferior ao custo médio por aluno do programa. Mas escolheu transferir mais de R$ 1,2 bilhão para essas instituições ditas comunitárias. Pior, o desempenho médio das comunitárias no ENADE é 20% inferior ao da UDESC. É a explícita promoção de um modelo de ensino mercantilizado, onde o aluno é cliente e o diploma é mercadoria. O acesso, além de restrito à uma minúscula parte da classe trabalhadora, se dá mediante riscos e endividamento. Tudo sob a fachada de política pública.

Milhares de estudantes acreditaram que teriam direito à bolsa, matricularam-se, e agora enfrentam dívidas de até R$ 50 mil, relativas a um único semestre. O programa foi arquitetado para que a análise das bolsas ocorresse apenas após o aluno já ter acumulado parcelas em aberto. Um sistema pensado para repassar dinheiro público a instituições privadas, e não para “realizar sonhos”. Na UNESC, por exemplo, 44% dos estudantes são bolsistas do programa. A universidade está vivendo de bolsa, enquanto gasta R$ 5 milhões por ano em propaganda.

Para disfarçar a essência do programa, os políticos catarinenses fingem que o problema central são as fraudes. Fazem vídeos indignados, organizam audiências públicas e atacam os fraudadores, ou criticam detalhes do programa como se tudo fosse um “erro técnico” e não uma política deliberada de privatização do ensino, e que por isso abriu tanto espaço para fraudes.

As fraudes sempre foram facilitadas, até hoje as universidades não checam as informações declaradas pelos alunos, apenas em caso de denúncias, e com grandes limitações. O resultado são distorções absurdas, como bolsistas que ostentam um padrão de vida elevado enquanto declaram renda de 20 reais por mês.

Herança da Ditadura

O escândalo reabre uma ferida antiga: o modelo de universidades comunitárias, vigente até hoje em Santa Catarina, é filho direto dos acordos MEC-USAID, firmados nos anos 1960 entre o regime militar brasileiro e o governo dos EUA. Esses acordos visavam um objetivo claro: conter a influência socialista e fortalecer uma formação voltada para o mercado. O ensino superior foi moldado para servir à industrialização dependente e periférica, sem pesquisa de ponta, sem autonomia, sem soberania.

O principal articulador desse processo foi Rudolph Atcon, famoso “consultar” estadunidense que orientou a criação do art. 4º da Lei 5.540/68, criando os regimes de “Fundação de direito público” e de “autarquias de regime especial”, onde se encaixaram as universidades ditas comunitárias. Assim, foi estruturada esta rede de faculdades com foco em formação técnica rápida, sem pesquisa e sem autonomia, subordinadas aos interesses das elites regionais.

Santa Catarina foi o primeiro estado a implementar esse modelo, dando origem a instituições como Unochapecó, Univali, Unesc, Unisul, FURB, UNC, Uniplac entre outras ao longo dos anos 60 e 70. Embora se apresentem como “comunitárias”, sob o frankenstein jurídico de Entidades Públicas de Direito Privado, operam como universidades privadas, com gestões capturadas por elites políticas e econômicas locais. Não há democracia interna. Não há estabilidade para os funcionários denunciarem fraudes. Chapas docentes opositoras às reitorias são perseguidas, censuradas e até demitidas para manter o controle dessas instituições nas mãos das oligarquias regionais. O índice de rotatividade dos professores gira em torno de 20% ao ano nas universidades que disponibilizam dados, impedindo pesquisas de longo prazo e desenvolvimento da senioridade dos pesquisadores.

Carminatti e Uczai: silêncio conveniente

Esse teatro é sustentado não apenas pela direita, mas também pela esquerda liberal. O PT de Santa Catarina evita qualquer confronto com a gestão das comunitárias. A deputada Luciane Carminatti, presidenta da Comissão de Educação da Alesc, não tem uma única crítica estrutural ao programa. Em vários vídeos publicados e em suas falas na Câmara, ela se limita a falar em datas de concessão, canais de denúncia e critérios de seleção.

A razão é simples: Carminatti, assim como o deputado federal Pedro Uczai, maior liderança petista do estado, são parceiros históricos das comunitárias. Ambos fizeram carreira política dentro dessas instituições e mantêm base eleitoral ligada às suas estruturas administrativas. Por isso não podem tocar no ponto principal e óbvio dos problemas do ensino superior catarinense: o modelo está todo errado. O mesmo caminho é adotado pela majoritária do movimento estudantil, controlada pela UJS (PCdoB), aliados históricos do PT.

Nenhum parlamentar, de esquerda ou de direita, ousa denunciar a relação promíscua entre o governo estadual e essas universidades. Nenhum questiona a decisão do governo de gastar mais por aluno com um ensino de pior qualidade. Nenhum propõe a estatização das comunitárias, a única medida realmente transformadora, capaz de devolver essas instituições à sociedade e livrá-las do controle das oligarquias locais. Elas são públicas, foram criadas com dinheiro público, e portanto devem servir ao povo.

O caminho é estatizar

A esquerda catarinense precisa romper com esse pacto de silêncio. Defender um ensino superior popular e soberano exige enfrentar o poder das elites regionais que hoje transformam o conhecimento em negócio.

Estatizar essas universidades não é uma proposta utópica. É uma necessidade histórica. A estatização de faculdades privadas foi parte vital da construção do sistema de ensino superior brasileiro até os anos 70. O neoliberalismo inverteu o processo, operando a privatização ou, no caso de SC, o uso da fachada de comunitárias para entregar o controle dessas universidades à burguesia regional. Estatizá-las permitiria:

● Garantir estabilidade aos professores e técnicos-administrativos, que hoje têm medo de denunciar fraudes e esquemas de corrupção;
● Acabar com a perseguição a chapas opositoras nas eleições para reitoria, criar eleições onde hoje não há;
● Trazer pesquisa, extensão e compromisso social para regiões onde hoje domina a lógica empresarial da formação técnica.
● Abertura de Restaurantes Universitários, Hospitais Universitários, e outros serviços voltados ao bem estar da comunidade interna e externa

Se queremos universidades que sirvam à classe trabalhadora, não basta corrigir fraudes. É preciso arrancar essas instituições das mãos da burguesia local. E isso só será possível com pressão popular, organização de base e luta consequente pela estatização das comunitárias.