Ofensiva genocida no Sudão acende alerta regional

Após mais de 500 dias de cerco, El Fasher foi tomada pelas RSF, desencadeando um terrível massacre contra civis. Com apoio dos Emirados Árabes e inação dos EUA, o ataque expõe o caráter genocida da disputa imperialista por recursos do Sudão.

12 de Novembro de 2025 às 20h45

Refugiadas chegam ao Chade através do Sudão. Reprodução: ONU News.

Por Guilherme Sá

Sob cerco há mais de 500 dias e abrigando milhares de refugiados, a cidade de El Fasher, na região de Darfur, no Sudão, foi tomada pelas Forças de Apoio Rápido (RSF na sigla original) no último dia 26 de outubro numa violenta ofensiva. O ataque ocorreu logo após as negociações entre as RSF e as Forças Armadas Sudanesas (SAF na sigla original) por um cessar-fogo falharem em Washington, nos EUA, devido a veemente recusa dos Emirados Árabes Unidos (EAU), que participava do processo, em dar continuidade ao diálogo.

O que se seguiu à queda da cidade, no entanto, foi uma carnificina: nos dias seguintes, vídeos, imagens e relatórios mostraram que soldados das RSF, munidos de armamentos fornecidos pelos Emirados Árabes, estão cometendo um verdadeiro massacre contra a população, marcado por estupros, execuções, tortura e a queima de cadáveres.

Longe de ser uma exceção, o terror vivido em El Fasher representa o resultado de décadas de marginalização dos povos da periferia do Sudão e a instrumentalização de grupos armados para atender os interesses das elites militares do governo central. Nessa lógica, a crise humanitária que se instalou há mais de dois anos, quando do início da guerra civil no país, parece caminhar para níveis irreversíveis, configurando um verdadeiro genocídio.

A queda de El Fasher acontece meses depois de as SAF recuperarem Cartum, que estava sob domínio das RSF desde o começo da guerra. O grupo paramilitar havia desmoralizado o exército com sua velocidade ofensiva e poderio militar vindo do exterior, tomando centros vitais como Sinjah e Wad Medani em curto espaço de tempo e formando alianças com grupos rebeldes em Kordofan.

Mapa do conflito em abril de 2025. Na legenda, as Forças de Apoio Rápido (RSF), o Exército Sudanês e por último Milícias e Grupos Rebeldes aliados dos principais beligerantes ou autônomos. Fonte: Thomas Van Linge / Economist

Originadas a partir das estruturas das milícias Janjaweed, as RSF contaram com vasta experiência militar adquirida tanto nos massacres promovidos contra os povos não arabizados em Darfur, quanto atuando como mercenários no Iêmen, onde foram contratados pela coalizão dos EAU na guerra contra os Houthis.

Nesse contexto, El Fasher permaneceu como último reduto da resistência contra as RSF em Darfur, devido principalmente à resistência dos Zaghawa, povos não arabizados que foram alvo do genocídio promovido pelo governo central (com atuação das forças paramilitares que hoje formam a RSF), ainda na década passada, quando Omar al-Bashir estava à frente do poder.

Concentrando milhares de refugiados e cerca de 260 mil habitantes, El Fasher viveu mais de 500 dias sob um cerco severo, enfrentando a fome endêmica, doenças e o bloqueio frequente de estradas e da chegada de ajuda humanitária.

Mais de 62 mil pessoas foram forçadas a se deslocarem após a tomada de El Fasher. Reprodução/Foto: UM News.

Em setembro deste ano, o chamado Quad, grupo formado por EAU, Arábia Saudita Egito e EUA, apresentou um plano para dar fim ao conflito, propondo uma trégua humanitária de três meses, seguida de um cessar fogo permanente e um período de 9 meses para a transição para um governo civil. Apesar dos aparentes esforços para cessar o conflito, esses países envolvidos nas negociações estão imersos em contradições que evidenciam que a continuidade da guerra os beneficiará em seus próprios projetos de poder.

Para evitar uma derrota e a completa desestabilização do exército, Al Burhan cedeu sua hegemonia política ao longo dos últimos meses para formar uma coalizão que fosse capaz de fazer frente ao poderio militar das RSF, apoiadas tanto pelos EAU quanto pela Rússia, através do antigo Grupo Wagner.

Nesses termos, grupos islâmicos que foram a base do governo de Omar Al-Bashir e perderam influência durante as mobilizações de 2018 voltam ao cenário político, lutando agora ao lado dos mustanfereen, civis que pegaram em armas diante dos horrores cometidas pelas RSF.

Frente a esta rede de alianças e a sede cada vez maior pelo lucro, o envolvimento dos EAU no conflito tendeu a se intensificar, gerando a recusa deste país a aceitar o acordo proposto pelo Quad, poucos dias antes do ataque à El Fasher. Interessado nas terras férteis e nos portos no Mar Vermelho, mas principalmente nas grandes reservas de ouro sudanesas, os EAU têm financiado o movimento com a compra desta matéria prima, além de fornecer armas através de uma complexa rede que passa por Chade, Líbia e Somália.

Os EAU temem, ainda, que a ascensão dos grupos islâmicos ligados agora a Al-Bashir criem uma nova zona de confronto ideológico no mundo árabe, uma vez que grande parte destes tem origem ou estão ligados à histórica Irmandade Muçulmana. É nesta toada que os EAU, juntamente com o governo israelense, vem promovendo uma agressiva campanha midiática para associar Al-Bashir e as SAF ao Irã e ao fundamentalismo, apontando-os como “o Hamas do Sudão”.

Hemedti, líder das RSF, discursa em frente ao quartel da Sexta Infantaria em El-Fasher. Reprodução/Foto: Redes Sociais.

Sem Cartum e pressionado internacionalmente pelos contínuos massacres e violações de direitos humanos praticados por seus combatentes, as RSF partiram para romper, assim, o cerco sobre El Fasher, literalmente dividindo o Sudão ao meio.

Através da análise de imagens de satélite, o Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade de Yale (YALE HRL) publicou, dias após o ataque, um relatório que identifica locais de execuções em massa, como o antigo Hospital Infantil e as proximidades do Hospital Saudita, onde objetos com o tamanho e forma de corpos humanos aparecem agrupados junto a manchas de descoloração avermelhada no solo. As imagens mostram ainda veículos das RSF patrulhando um aterro na periferia da cidade onde civis eram sistematicamente executados ao tentarem fugir. O que se seguiu à investida final não foi uma simples conquista militar, mas a implementação metódica de um plano de extermínio.

Em entrevistas publicadas pelo portal Middle East Eye, diversos moradores de El Fasher que conseguiram romper o bloqueio das estradas principais relatam que a Universidade da cidade tem servido como local de execuções e que homens são separados de suas famílias para serem executados.

Em vídeos que circulam nas redes, o Brigadeiro-General das RSF, Al-Fatih Abdallah Idris, reconhecido por cometer crimes de guerra durante o conflito, é visto executando 10 homens. Além disso, em outros vídeos é possível ver carros com soldados perseguindo civis que tentavam fugir da cidade, além de outras execuções de idosos e homens desarmados.

Soldados das RSF perseguem e atiram em civis aos gritos de “Matem os Nuba”, nome pejorativo para os civis negros de El Fasher. Reprodução: Redes Sociais.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 460 pacientes do Hospital Maternidade Saudita foram assassinados durante a invasão à El Fasher, além de diversos profissionais de saúde terem sido raptados pelas RSF. O hospital, único em funcionamento na cidade, relatava a gravidade e lutava contra um surto de cólera e sarampo na região, devido a ausência de acesso à água potável e saneamento básico.

Desde o início do conflito, uma das principais violações cometidas pelas RSF relatadas por organizações e civis é o estupro, assédio e assassinato de mulheres por parte dos soldados. Em El Fasher, segundo a ministra de Estado para o Bem-Estar Social do Sudão, Salma Ishaq, 300 mulheres foram mortas após terem sofrido agressões sexuais e tortura.

Com cerca de 80% das instalações de saúde do país destruídas e uma parcela considerável da população em deslocamento interno (cerca 15 milhões de pessoas), o desastre humanitário vivido no Sudão não tem precedentes, mas continua a ser negligenciado pela mídia ocidental.

Sudaneses que fugiram de El Fasher se concentram no campo de Um Yanqur, em Tawila, em 3 de novembro de 2025. Reprodução/Foto: Redes Sociais.

Enquanto EAU municiam as tropas das RSF com drones chineses, Egito e Turquia seguem aumentando seu engajamento no conflito apoiando Al Burhan e declarando seu governo como legítimo. No entanto, ambos os grupos continuam colaborando para espoliação do país.

Recebendo ouro através de Hemedti, que controla importantes localidades onde ocorre a extração, os EAU também é o maior receptor das exportações de ouro do governo das Forças Armadas. Da mesma forma, a exportação de gado através de Port Sudan continua partindo de ambas as forças.

Ao longo da guerra, o Partido Comunista do Sudão apontou em nota que não há lado a ser apoiado no conflito e que ambos lucram com o sofrimento da população. Ainda, ficam claros os interesses dos países no que se mostra ser uma guerra de espoliação dos recursos do Sudão, sem espaço para uma resolução que de continuidade ao processo revolucionário, iniciado em 2018 com a queda de Al-Bashir e o início das manifestações populares.

Pouco interessados em acabar com a guerra, os atores regionais seguem na busca incessante por projetos de próprios de poder que sustentem sua fatia na disputa interimperialista por recursos. O Sudão, bem como Chifre da África em si, entre numa perigosa zona de não retorno, restando pouco à população sudanesa, podendo contar somente com a solidariedade internacional dos demais condenados da terra.