Fim da ocupação das FAR em Cartum expõe desafios para estabilidade do Sudão
A disputa interimperialista encontra no cenário de guerra no Sudão um terreno fértil para seus interesses estratégicos, aprofundando a violência e a exploração contra a classe trabalhadora sudanesa.

General Abdel Fattah al-Burhan em chegada ao palácio presidencial, em 26 de março de 2025, recapturado após quase 2 anos sob controle das FAR. Reprodução: Redes Sociais.
Por Guilherme Sá
Liderado pelo general Abdel Fattah al-Burhan, o Exército sudanês retomou o controle do palácio presidencial e do principal aeroporto da capital Cartum no último 26 de março, após quase dois anos sob domínio das Forças de Apoio Rápido (FAR). A tomada do símbolo do poder nacional marca um avanço tático no conflito que, desde 15 de abril de 2023, já deixou milhares de mortos e gerou a maior crise de deslocados do mundo, com milhões de sudaneses forçados a fugir.
As Forças de Apoio Rápido (FAR), atualmente comandadas por Mohamed Hamdan Dagalo (Hemedti), foram formalizadas como força paramilitar em 2013 durante o governo de Omar al-Bashir, mas suas origens estão profundamente ligadas às estruturas de segurança criadas pelo regime sudanês desde a década de 1990.
Bashir chegou ao poder em 1989 através de um golpe de Estado apoiado pela Irmandade Muçulmana, sob a liderança ideológica de Hassan al-Turabi. O episódio ocorreu em um contexto de instabilidade pós-queda do ditador Jaafar Nimeiry (1969-1985), cujo governo autoritário havia tentado, sem sucesso, impor a sharia em todo o território sudanês, exacerbando as tensões com as regiões do sul, há anos vítimas da completa negligência por parte do governo central, reiniciando uma guerra civil que perdurou por décadas.
Apesar de al-Turabi ter sido o mentor intelectual do golpe, Bashir consolidou seu próprio projeto de poder, rompendo com a Irmandade Muçulmana em 1999. Além disso, seu governo distanciou-se da agenda fundamentalista após os ataques de 11 de setembro de 2001, quando a pressão do imperialismo estadunidense aumentou devido aos vínculos históricos do Sudão com a Al-Qaeda.
Com a resistência das guerrilhas e o governo de Omar al-Bashir desgastado com os conflitos, a assinatura do Acordo de Paz Abrangente (CPA) em 2005 encerrou a guerra entre o governo central e o sul do Sudão, que conquistou a independência em 2011, após um referendo.
É dessa forma que os conflitos na região do Darfur, iniciados em 2003 em razão da secular negligência do governo com a população e disputas étnicas exacerbadas por políticas de institucionalização do islã, tornaram-se o principal centro irradiador da violência no país.

Mapa político do Sudão. Destaque para a região do Darfur, que representa 1/5 de todo território sudanês.
Desde os anos 1990, o regime de Bashir, através da Frente Islâmica Nacional em aliança com a Irmandade Muçulmana, desenvolveu uma estratégia sistemática de recrutamento de tribos árabes nômades para atacar comunidades não arabizadas em Darfur, particularmente os grupos Fur, Masalit e Zaghawa.
Essas milícias, que mais tarde ficariam conhecidas como Janjaweed (“demônios a cavalo”), tiveram suas origens facilitadas pela política de terras implementada ainda durante o governo de Jaafar Nimeiry. O Unregistered Land Act de 1971, representou uma ruptura radical com o sistema tradicional de posse de terras, transferindo o controle dos territórios dos chefes tribais para o Estado. Essa medida, aparentemente técnica, teve profundas consequências sociais, criando um terreno fértil para conflitos futuros ao desestabilizar o equilíbrio secular entre comunidades.
A brutalidade das ações dos Janjaweed – caracterizadas por massacres em massa, violência sexual sistemática e a implementação da tática militar conhecida como Combing Process (“Processo de Penteamento”) – levou à formação de dezenas de grupos armados de resistência, que enfrentaram durante anos a repressão.
O Combing Process consistia em operações de limpeza étnica meticulosamente planejadas: vilarejos inteiros eram cercados, suas fontes de água destruídas, habitações incendiadas, homens em idade combativa executados sumariamente, enquanto mulheres e crianças eram frequentemente sequestradas e submetidas a violência sexual. Esta estratégia tinha como objetivo claro tornar a região inóspita para o retorno das populações deslocadas.
O balanço humano foi catastrófico: estimativas da ONU apontam para aproximadamente 500 mil mortos (sendo cerca de 200.000 por violência direta) e 2,7 milhões de deslocados internos. O conflito também adquiriu dimensões regionais, com o envolvimento de países vizinhos como Chade e Líbia.
Em 2009, Omar al-Bashir se tornou o primeiro presidente em exercício a ter um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, praticados em Darfur. No entanto, utilizando um discurso de interferência colonialista, o Sudão se recusou e ainda se recusa a cumprir o mandado.

Combatentes do Movimento de Libertação do Sudão. Reprodução: Wikimedia Commons.
Foi neste contexto que o regime de Bashir iniciou em 2013 o processo de institucionalização das milícias Janjaweed, criando as Forças de Apoio Rápido (FAR) sob o comando de Hemedti. Esta formalização representou uma evolução significativa: de milícias irregulares para uma força estruturada com cadeia de comando definida e reconhecimento oficial.
As FAR rapidamente expandiram seu escopo de atuação. Em 2015, foram enviadas para combater na guerra civil do Iêmen como parte da coalizão liderada pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Dois anos depois, estabeleceram uma parceria estratégica com o governo russo e o reconhecido Grupo Wagner para exploração de minas de ouro no Sudão, através da empresa M-Invest – uma clara demonstração de como as FAR haviam se tornado um ator econômico e político independente.
A crise final do regime de Bashir eclodiu em dezembro de 2018, quando protestos massivos contra o aumento do preço do pão varreram o país. A repressão violenta pelas forças de segurança, incluindo as FAR, não conseguiu conter o movimento popular. Em abril de 2019, o ministro da Defesa Awad Mohamed Ibn Auf anunciou a destituição de Bashir e a formação de um governo de transição militar.
Este período de transição, inicialmente sob a liderança conjunta de militares e civis, viu a ascensão de Abdel Fattah al-Burhan – figura central na repressão em Darfur e grande aliado de Omar al-Bashir em seu governo – como principal líder do Conselho Soberano. Apesar de acordos de paz terem sido assinados com alguns grupos rebeldes em Darfur, reconhecendo direitos ancestrais e permitindo o retorno parcial de deslocados, a situação permaneceu instável.
A frágil transição desmoronou em outubro de 2021, quando al-Burhan dissolveu o governo de transição, prendeu o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok e assumiu o controle total do país.
Este golpe dentro do golpe marcou o retorno do poder militar absoluto e aprofundou as divisões no seio das próprias forças armadas, particularmente entre o exército regular e as FAR de Hemedti.
A busca por protagonismo no processo de tomada do poder levou Hemedti a se opor veementemente à proposta de reforma do setor de segurança que previa a incorporação das FAR à estrutura regular do exército. Essa disputa pelo controle das forças armadas acabou por desencadear o conflito aberto em abril de 2023.
Desde o início dos confrontos, estima-se que cerca de 15 mil sudaneses tenham perdido a vida. Os números da ONU revelam um quadro alarmante de deslocamento em massa, com aproximadamente 11,5 milhões de deslocados internos registrados até janeiro de 2025. Outros 3,2 milhões de civis buscaram refúgio em países vizinhos, fugindo da violência generalizada.

Família de deslocados sudaneses aguarda para ser registrada pelo ACNUR na fronteira com o Chade. Reprodução: Redes Sociais.
Os prejuízos materiais são igualmente devastadores, com perdas calculadas em torno de 7 bilhões de dólares devido à destruição sistemática de fábricas, confiscos de propriedades e saques generalizados.
A situação humanitária se agrava com as constantes inundações que atrasaram as colheitas e aprofundaram a crise alimentar. A infraestrutura do país foi severamente afetada, a exemplo do rompimento da barragem de Arbaat, que inundou 24 vilarejos e cidades no norte do Sudão.
A ajuda internacional enfrenta obstáculos quase intransponíveis devido à dificuldade de estabelecer corredores humanitários seguros, deixando populações inteiras sem acesso a alimentos e medicamentos.
No setor educacional, mais de 19 milhões de crianças permanecem fora das escolas, interrompendo seu desenvolvimento e futuro. Em julho de 2024, a ONU alertou que 14 milhões dessas crianças necessitavam urgentemente de assistência humanitária para sobreviver. Paralelamente, organizações de direitos humanos documentaram o recrutamento forçado de menores pelas FAR, que são utilizados em diversas funções no conflito.
A violência sexual segue sendo utilizada como arma de guerra por ambos os lados do conflito. Apenas em 2024, cerca de 4 mil mulheres relataram agressões por parte tanto do exército regular quanto das FAR. Na capital Cartum, foram registrados mais de 100 casos específicos de escravidão sexual.
Essas práticas brutais ecoam os métodos empregados durante o genocídio em Darfur, quando milhares de mulheres e jovens foram sistematicamente violentadas por forças governamentais e milícias Janjaweed.
A escalada de violência contra civis e militantes de oposição tem se intensificado de forma alarmante. Em 23 de junho de 2024, Amal El Zein, integrante do Bureau Político do Partido Comunista Sudanês (PCS), foi detida de forma arbitrária pela Inteligência do Exército sudanês, conforme divulgado em nota pelo partido.
O caso não é isolado. No início de outubro de 2023, Mohiuddin Al-Jallad, membro do Comitê Central do mesmo partido, foi alvo de um ataque violento. Membros das Forças de Apoio Rápido (FAR) atiraram em sua perna, deixando-o gravemente ferido. No dia seguinte, um grupo armado ainda invadiu e saqueou sua residência, em um claro ato de intimidação política.
O PCS, historicamente uma das maiores organizações do continente africano e alvo de grandes operações de repressão ao longo da segunda metade do século XX, promove a oposição a ambos os atores do conflito, apelando para que organizações de base e iniciativas como as Cozinhas Takaful, que atuam em bairros no auxílio da população, sejam priorizadas na retomada do espírito revolucionários das revoltas de 2018, processo interrompido pelo conflito.

Pessoas no campo de deslocados de Gomgoi coletam água. Reprodução: ACNUR.
A guerra no Sudão se intensifica sob a sombra do crescente envolvimento de potências estrangeiras, que transformaram o conflito interno numa arena de disputa por recursos e influência geopolítica. A disputa interimperialista encontra neste cenário um terreno fértil para seus interesses estratégicos, aprofundando a violência e a exploração da classe trabalhadora sudanesa.
A China consolida-se como principal parceiro comercial do Sudão, relação que remonta aos anos 1990. Durante anos, Pequim foi o maior investidor no setor petrolífero sudanês, tornando-se acionista majoritária da Greater Nile Petroleum Operating Company, que controla os campos estratégicos de Heglig e Unity. O volume comercial entre os países saltou de 800 milhões de dólares em 2000 para 8,5 bilhões de dólares em 2010, com a China ocupando espaços antes dominados por potências ocidentais. O modelo chinês inclui empréstimos através do Eximbank e perdão de dívidas, seguindo um padrão já conhecido em suas relações com países do continente africano.
O envolvimento chinês, contudo, vai além da esfera econômica. Um relatório da Human Rights First, publicado nos anos 2000, revelou que a China se tornou o principal fornecedor de armas pequenas para o Sudão após 2004, além de enviar aviões militares e veículos pesados. No plano diplomático, Pequim atuou para bloquear sanções do Conselho de Segurança da ONU relacionadas ao genocídio em Darfur, mantendo intactos seus interesses em Cartum. Recentemente, o Partido Comunista Sudanês alertou sobre os riscos da espoliação imperialista, destacando a presença de al-Burhan em fóruns sino-africanos. Além disso, o uso de drones Wing Loong II de fabricação chinesa pelo exército sudanês – tecnologia já empregada em outros conflitos africanos – é um grande sinal do financiamento da guerra, mesmo que a China se posicione formalmente com a típica neutralidade.
A guerra por procuração no Sudão conta com outros atores fundamentais. Os Emirados Árabes Unidos emergiram como principal financiador das Forças de Apoio Rápido, fornecendo armamentos e apoio logístico. Do outro lado, a Turquia mantém uma parceria estratégica com o exército sudanês, fornecendo equipamentos militares como drones, helicópteros, tanques e artilharia. Os interesses do governo de Recep Tayyip Erdoğan na região incluem a expansão de sua influência no Mar Vermelho, simbolizada pela cessão da ilha de Suakin em 2018.

O presidente turco Erdoğan recebendo o líder militar sudanês, general Abdel Fattah al-Burhan, no Complexo Presidencial em Ancara em 13 de setembro de 2023. Reprodução: Getty Images.
Por sua vez, o Egito mantém seu firme apoio ao exército sudanês e al-Burhan, movido por preocupações estratégicas que abrangem tanto a estabilidade regional quanto seus interesses vitais no Nilo. Como principal país rio abaixo, o Cairo acompanha com extrema atenção os desenvolvimentos na disputa pela Grande Barragem do Renascimento Etíope (GERD na sigla original) no Nilo Azul, onde qualquer desequilíbrio no Sudão poderia afetar seu já frágil acordo sobre o uso das águas do Nilo.
Além disso, o Egito teme profundamente o retorno da Irmandade Muçulmana ao poder em Cartum. O governo de al-Sisi, que chegou ao poder após derrubar um governo ligado justamente à Irmandade no Egito, vê com alarme qualquer possibilidade de ressurgimento islâmico na região.
Em outros termos, a Rússia mantém significativos interesses estratégicos, atuando em paralelo ao Grupo Wagner. Antes mesmo do conflito eclodir, o Kremlin assegurou, através de negociações com o governo sudanês, o estabelecimento de uma base naval no Mar Vermelho – objetivo há muito perseguido por Moscou para ampliar seu poderio comercial e militar. O acordo incluía ainda o fornecimento de equipamentos bélicos por um quarto de século.
A exploração de ouro continua sendo um dos motivos do envolvimento russo na região. As FAR financiam seu arsenal através do comércio do metal precioso com Moscou, estabelecendo uma relação de troca direta entre recursos naturais e armamentos.
Enquanto isso, Washington mantém uma posição calculista, utilizando sua influência de forma indireta através de aliados regionais como Arábia Saudita e Egito, enquanto aplica sanções seletivas às FAR e seus líderes. Essa abordagem reflete tanto os limites da capacidade de intervenção dos EUA quanto a complexidade de um conflito onde outras potências já consolidaram posições significativas.
Esta intrincada rede de interesses estrangeiros transformou o conflito sudanês num dos mais complexos e violentos da atualidade, onde disputas locais se entrelaçam com rivalidades geopolíticas globais. Enquanto as potências capitalistas disputam influência e recursos, a população sudanesa enfrenta uma das piores crises humanitárias do mundo, com milhões de deslocados, fome generalizada e completa desestruturação do tecido social.
A tomada de Cartum pelo exército sudanês, longe de representar o fim iminente do conflito, parece indicar mais um recuo das FAR do que uma vitória decisiva para al-Burhan, que vinha perdendo importantes posições no país ao longo dos últimos dois anos. O crescente financiamento de ambos os beligerantes por potências estrangeiras sugere um equilíbrio militar que, a longo prazo, pode desencadear graves convulsões na região.
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