Renascimento de uma nação: Israel e a indústria cinematográfica americana
Conforme se agrava a ofensiva genocida em Gaza, parte de Hollywood se posiciona contra a ocupação. Entretanto, essas posições críticas não dão o tom geral da longeva relação entre o cinema estadunidense e o sionismo.

Ator Javier Bardem utiliza keffiyeh durante os Emmys em protesto pela Palestina. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Por Tavinho
Em meio à ofensiva genocida de Israel contra o povo palestino em Gaza, a indústria cultural encontra cada vez mais casos de celebridades que buscam utilizar de seu reconhecimento público para denunciar os crimes israelenses e se solidarizar com o povo palestino. Nos Emmys de 2025, atores e atrizes de Hollywood romperam o silêncio conveniente da indústria, denunciando diante das câmeras o genocídio em Gaza. Hannah Einbinder, da série Hacks (2021), gritou “liberdade à Palestina” no palco, fala que foi censurada pela transmissão oficial, mas amplificada nas redes. Já Javier Bardem surgiu no tapete vermelho com uma keffiyeh e exigiu boicote diplomático e comercial a Israel.
Bardem e sua esposa, Penélope Cruz, têm um histórico de anos na solidariedade à Palestina. Em 2014, o casal de atores, junto ao cineasta Pedro Almodóvar, capitaneou os esforços de redigir uma carta assinada por dezenas de atores, diretores, músicos e escritores espanhóis, condenando o bombardeio por terra, mar e ar contra a população civil palestina na Faixa de Gaza. Na ocasião, Bardem já declarava que “é vergonhosa a postura ocidental de permitir tal genocídio”.
Ainda, mais de setecentos trabalhadores do cinema e televisão, incluindo os atores Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Riz Ahmed e Susan Sarandon, assinaram uma carta aberta exigindo que a SAG-AFTRA se manifeste contra o que eles descrevem como a “repressão macartista” aos membros que apoiam os direitos palestinos.

Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Riz Ahmed e Susan Sarandon assinaram a carta aberta endereçada à SAG-AFTRA. Foto: Reuters / AP.
A carta, intitulada SAG-AFTRA & Sister Guild Members for Ceasefire, pede que o sindicato condene publicamente a violência em Gaza, pressione por um cessar-fogo permanente e forneça ajuda humanitária à região. A carta é divulgada em um contexto em que Olivia Colman, Javier Bardem, Mark Ruffalo entre mais de 1.300 trabalhadores da indústria cinematográfica se recusaram publicamente a colaborar com instituições de cinema israelenses, cúmplices no genocídio de Gaza.
Além disso, o evento Together for Palestine tornou-se o maior concerto de arrecadação para a causa palestina no Reino Unido. Organizado por Brian Eno e dirigido artisticamente pela artista palestina Malak Mattar, o espetáculo reuniu 69 artistas e ativistas. A noite foi marcada por apresentações e discursos contundentes, como o de Benedict Cumberbatch, que afirmou: “O silêncio é cumplicidade”. Florence Pugh, Benedict Cumberbatch, e Richard Gere também participaram do evento, ressaltando a urgência de responsabilizar Israel por seus crimes.
Conforme se intensifica a massificação da exposição de Israel enquanto ocupação colonial, ente genocida, e violador contumaz das normas do direito internacional, a conscientização de setores da cultura como Hollywood é uma consequência de um movimento importante de mobilização em solidariedade ao povo palestino. Entretanto, essas demonstrações não dão a tônica geral do que é a postura da indústria cinematográfica dos EUA com Israel. Essa é a tese de Tony Shaw e Giora Goodman em Hollywood and Israel: a History, que demonstram que a relação do cinema estadunidense com o sionismo é muito mais intrincada e complexa.
Hollywood e Israel
Nos anos 1940 e 1950, enquanto o Estado de Israel ainda era uma promessa política, Hollywood já começava a moldar sua imagem para o público ocidental. Produtores judeus americanos, muitos deles imigrantes ou filhos de imigrantes europeus, viam no projeto sionista uma extensão de sua própria narrativa de sobrevivência e reconstrução.
Filmes como The Juggler (1953), dirigido por Edward Dmytryk, foram pioneiros ao retratar Israel como um espaço de cura e renascimento. Rodado em locações israelenses, o filme mostrava um sobrevivente do Holocausto encontrando redenção em Tel Aviv – uma metáfora direta, que alinhava a Nakba e a imposição da ocupação do território palestino à ideia de justiça histórica ao povo judeu.
Mas foi Exodus (1960), de Otto Preminger, que consolidou o imaginário sionista em Hollywood. Baseado no best-seller de Leon Uris, o filme transformou a luta pela criação de Israel em uma epopeia heroica, com Paul Newman encarnando um carismático Ari Ben Canaan. A obra foi amplamente promovida por organizações sionistas nos EUA e recebeu apoio logístico direto do governo israelense, evidenciando uma colaboração que extrapolava o campo artístico.

Exodus (1960), dir. Otto Preminger. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Nesse sentido, Exodus não apenas popularizou a causa sionista, mas também estabeleceu um modelo narrativo de Israel como bastião regional da liberdade, cercado por inimigos árabes bárbaros e sem escrúpulos. Essa fórmula se tornaria recorrente nas décadas seguintes.
O filme Raid on Entebbe, lançado em 1977, é mais um marco na consolidação da mitologia israelense em Hollywood. Produzido apenas meses após a operação real, o filme dramatiza o resgate dos reféns israelenses em Uganda com uma urgência quase documental, mas profundamente ideológica.
A Operação Entebbe, também conhecida como Operação Thunderbolt, foi uma ação militar israelense realizada em 4 de julho de 1976 no aeroporto de Entebbe, em Uganda. Na ocasião, um avião da Air France que ia de Tel Aviv para Paris foi sequestrado por quatro militantes solidários à Palestina: dois da Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP) e dois do grupo Revolucionários das Células Alemãs.
O avião, com 248 passageiros e 12 tripulantes, foi desviado para Entebbe, onde receberam apoio do líder ugandense Idi Amin. Os sequestradores exigiam a libertação de dezenas de prisioneiros palestinos detidos em Israel e outros países.
A produção do filme contou com apoio informal de autoridades israelenses e foi recebida com entusiasmo por organizações sionistas nos Estados Unidos, que a promoveram como símbolo da coragem e da competência militar de Israel.
A narrativa é construída com clareza moral: os sequestradores palestinos e alemães são retratados como fanáticos, enquanto os soldados israelenses encarnam a racionalidade, a bravura e o sacrifício. A figura de Yonatan Netanyahu, irmão de Benjamin Netanyahu, é centralizada como herói trágico – sua morte na operação é apresentada como martírio nacional. O filme não apenas glorifica a ação militar em território estrangeiro, mas também reforça a ideia de que Israel tem o direito e a capacidade de agir unilateralmente em defesa de seus cidadãos, mesmo em solo estrangeiro. A estética televisiva da produção, longe de limitar seu impacto, contribuiu para sua ampla difusão e assimilação como verdade histórica.
Quarenta anos depois, 7 Dias em Entebbe (2018), dirigido pelo diretor brasileiro José Padilha, tenta revisitar o mesmo episódio com uma abordagem mais despolitizada, psicologizante e introspectiva. No entanto, essa tentativa de ‘complexificação’ de Padilha é cuidadosamente controlada, e não é em nada menos apologética a Israel que o filme anterior. A obra introduz dilemas políticos internos – como os debates no gabinete israelense sobre os riscos da operação – e humaniza a cúpula dirigente israelense, enquanto retrata os sequestradores, especialmente os alemães, como idealistas desorientados, às vezes insanos. Ainda assim, a estrutura narrativa converge para a mesma conclusão: a operação é necessária, legítima e bem-sucedida.

Sete dias em Entebbe (2018), dir. José Padilha, Foto: Reprodução/Redes sociais.
Apesar da estética mais sofisticada e do ritmo menos frenético, 7 Dias em Entebbe reafirma os mesmos pilares simbólicos do filme de 1977. O filme, como de praxe de Padilha, busca parecer crítico, mas termina por reforçar a narrativa de que Israel age com precisão moral e estratégica, mesmo diante de dilemas éticos. A escolha da Netflix como plataforma de distribuição amplia ainda mais seu alcance, inserindo a operação de Entebbe no repertório global de heroísmo ocidental.
Nos anos 1980, o lobby sionista em Hollywood também passa a alcançar o campo dos filmes de ação. Nesse sentido, Delta Force (1986), com Chuck Norris e Lee Marvin, é uma fantasia militar que celebra a aliança entre os EUA e Israel. Inspirado no sequestro do voo TWA 847, o filme mistura ação explosiva com uma narrativa de resgate que glorifica a intervenção americana em defesa dos cidadãos israelenses.

Delta Force (1986), dir. Menahem Golan. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Embora a produção seja americana, ela incorpora elementos da doutrina de segurança israelense, como a resposta rápida e a eliminação de ameaças com força letal. A estética do filme – marcada por heroísmo unilateral e vilanização dos povos árabes – contribui para a construção de um imaginário em que Israel e os EUA compartilham não apenas interesses estratégicos, mas valores civilizacionais.
Lobby e censura
Com o passar dos anos, a relação entre Hollywood e Israel deixou de ser apenas simbólica e passou a envolver disputas políticas e diplomáticas. O lobby pró-Israel nos EUA – através de grupos articulados como a AIPAC e a ADL – influenciou decisões editoriais, pressionando estúdios e cineastas a evitar críticas ao Estado israelense.
Um exemplo marcante foi a recepção ao filme Munique (2005), de Steven Spielberg. A obra, que retrata a operação de vingança do Mossad após os eventos das Olimpíadas de 1972, foi acusada de “equivocada” por setores sionistas mais radicais, que esperavam uma narrativa mais assertiva e menos ambígua. Spielberg, por sua vez, buscava explorar os dilemas morais da violência estatal, mas acabou sendo atacado por ambos os lados do espectro político.
Inclusive, Steven Spielberg ocupa um lugar ambíguo nessa relação. Judeu, liberal e profundamente ligado à memória do Holocausto, Spielberg sempre buscou humanizar os personagens judeus sem cair em propaganda explícita. No entanto, sua trajetória revela tensões entre um humanismo universal e o nacionalismo judaico.
Em A Lista de Schindler (1993), Spielberg construiu uma obra-prima sobre o holocausto, aclamada em todo o mundo. Entretanto, até mesmo o clássico acaba por reforçar a ideia de que o Holocausto justifica a existência de Israel como refúgio, e é encerrado com uma clara mensagem pró-sionista. Ao final do filme, há uma cena na qual um dos soldados soviéticos que libertaram os judeus de Schindler lhes diz que eles não são bem-vindos na Europa. O grupo então parte a pé, cruzando um campo sob o som de “Jerusalém de Ouro”, canção que se tornou um hino extraoficial da vitória israelense na Guerra dos Seis Dias, em 1967. A combinação da trilha sonora com as imagens sugere um renascimento e aponta para a busca de um novo lar em Israel.
O final de A Lista de Schindler transfere a narrativa para a Jerusalém contemporânea. Os sobreviventes resgatados por Oskar Schindler, acompanhados pelos atores que os representaram, prestam homenagem ao empresário alemão depositando pedras sobre seu túmulo – gesto tradicional judaico de respeito e memória. A cena transformou o local de sepultamento de Schindler, no Monte Sião, em um ponto de peregrinação para turistas e admiradores do filme em todo o mundo.

A Lista de Schindler (1993), dir. Steven Spielberg. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Já em Munique (2005), o diretor tentou ir além da lógica da vingança, inserindo dilemas éticos dos agentes do Mossad. O filme foi baseado em pesquisas e entrevistas, e embora flagrantemente alinhado com Israel em sua tese central, ainda assim foi acusado de “equivalência moral” pelos críticos sionistas.
Spielberg foi aconselhado por figuras do lobby israelense durante a produção de Munique, e que sua tentativa de trazer algum nuance ao retrato dos eventos no filme foi vista como traição por alguns setores, que achavam inaceitável que o diretor tratasse Israel como um tema complexo, e não como um dogma.
Outro caso que exemplifica o tom de censura geral do sionismo envolve o documentário The Gatekeepers (2012), que reúne depoimentos de ex-diretores do Shin Bet, o serviço secreto israelense. A obra, que critica em certa medida a política de ocupação, enfrentou resistência na distribuição americana, apesar de seu sucesso em festivais internacionais.
Um rosto para esse projeto: Arnon Milchan
Se Hollywood tornou-se, ao longo das décadas, um braço cultural e ideológico de Israel, Arnon Milchan é personificação explícita dessa simbiose. Empresário multimilionário, produtor de sucessos como O Rei da Comédia (1982), Uma Linda Mulher (1990) e Clube da Luta (1990), Milchan não é apenas uma figura influente na indústria cinematográfica – ele é também um ex-agente do serviço secreto israelense, envolvido em operações de aquisição de tecnologia militar para a ocupação sionista.

Arnon Milchan e Benjamin Netanyahu em Jerusalém em 2005. Foto: David Silverman / Getty Images.
Arnon Milchan começou sua carreira como empresário no setor de defesa israelense, atuando como intermediário em compras de equipamentos sensíveis para o programa nuclear de Israel. Durante os anos 1970 e 1980, ele operava como agente informal do LAKAM – uma unidade secreta do Ministério da Defesa israelense – enquanto construía sua reputação em Hollywood.
Essa dupla atuação não era acidental: Milchan via os filmes como uma plataforma estratégica para promover a imagem de Israel no Ocidente, ao mesmo tempo em que cultivava relações com políticos, executivos e militares americanos, campo no qual se consolidou como um dos principais articuladores da aproximação entre estúdios de Hollywood e o governo israelense.
Em meio à ocupação, a Palestina
No âmbito da estreita relação entre o sionismo e a indústria cinematográfica americana, diversos foram os roteiros modificados ou engavetados por medo de represálias. A indústria internalizou uma espécie de “autocensura preventiva”, evitando narrativas que pudessem ser interpretadas como pró-palestinas ou críticas ao sionismo. Nesse contexto, Paradise Now (2005), dirigido por Hany Abu-Assad, surge como uma ruptura significativa.
O filme é um raro exemplo de produção que desafia o consenso ideológico dominante, ao apresentar dois jovens palestinos recrutados para um atentado a bomba em Tel Aviv. Ao invés de demonizá-los, o filme os humaniza, revelando suas dúvidas, angústias e dilemas morais. Essa abordagem confronta diretamente a lógica sionista na produção cinematográfica, que costuma separar os “civilizados” dos “bárbaros” nas representações hollywoodianas do conflito.

Paradise Now (2005), dir. Hany Abu-Assad. Foto: Reprodução/Redes sociais.
O impacto de Paradise Now foi imediato e controverso. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o filme gerou protestos de grupos sionistas nos Estados Unidos, que pressionaram a Academia a alterar sua classificação de “filme palestino” para “filme da Autoridade Palestina” – uma disputa simbólica que revela o desconforto institucional com a legitimação de uma identidade palestina autônoma. Essa reação não foi apenas política, mas também cultural: o filme ameaçava a narrativa dominante ao oferecer ao público ocidental uma janela empática para o sofrimento palestino em meio a uma ofensiva ideológica de Israel de retratar os palestinos como terroristas fanáticos e ignorantes, utilizados como massa de manobra em defesa de interesses antissemitas e contra o ocidente.
À época, Paradise Now não foi amplamente distribuído por grandes estúdios americanos, e, mesmo com aclamação crítica e prêmios internacionais, o filme enfrentou barreiras de visibilidade nos circuitos comerciais, reforçando a dinâmica de Hollywood enquanto operadora de filtros ideológicos que privilegiam as vozes sionistas e silenciam as palestinas.
O contexto de Paradise Now, há 20 anos, não é muito diferente do vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, Sem Chão (2025). O filme, que retrata a luta dos palestinos para proteger suas casas da demolição pelo exército israelense, superou os concorrentes Porcelain War, Sugarcane, Black Box Diaries e Soundtrack to a Coup d’Etat.

Sem Chão (2025), dir. Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham, Rachel Szor. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Produzido entre 2019 e 2023, o documentário Sem Chão acompanha o ativista palestino Basel Adra, que coloca sua própria segurança em risco para registrar a destruição de Masafer Yatta, sua cidade natal, localizada no sul da Cisjordânia. O filme revela, com tom de denúncia, a demolição gradual da região por soldados israelenses, que ocupam o território para a instalação de uma zona de treinamento militar – processo iniciado muito antes dos acontecimentos de 7 de outubro de 2023.
Ao longo da produção, Adra conta com o apoio do jornalista israelense Yuval Abraham, parceria que confere à obra uma perspectiva humana e jornalística sobre o conflito.
Apesar do reconhecimento internacional, Sem Chão enfrentou dificuldades para garantir a distribuição nos Estados Unidos. Para se qualificar ao Oscar, o filme realizou uma exibição especial de uma semana no Lincoln Center, em Nova York, em novembro de 2024. Antes disso, já havia conquistado prêmios de destaque, como o Panorama Audience Award de Melhor Documentário e o Berlinale Documentary Film Award, ambos no Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2024.
Estética da normalização
Nos anos 2000 e 2010, a presença de Israel em Hollywood deixou de ser meramente temática e passou a ser estética. Atores israelenses, diretores e roteiristas passaram a ocupar espaços centrais na indústria, muitas vezes sem que o público percebesse a origem ou as implicações ideológicas.
Em Guerra Mundial Z (2013), estrelado por Brad Pitt, Israel aparece como o único país preparado para enfrentar uma pandemia zumbi global. Embora o filme não trate diretamente da ocupação palestina, ele insere Israel como bastião da racionalidade, da ciência e da segurança — em contraste com o caos que domina o restante do mundo. A muralha de Jerusalém, reconstruída para conter os infectados, funciona como metáfora visual da separação e da defesa nacional. Essa representação, mesmo em um contexto fictício, reforça a ideia de Israel como civilização cercada por ameaças irracionais, legitimando políticas de isolamento e controle sob o disfarce do entretenimento apocalíptico.

Guerra Mundial Z (2013), dir. Marc Forster. Foto: Reprodução/Redes sociais.
A contextualização apresentada sob premissas fictícias no filme, foi amplamente utilizada pelo discurso oficial israelense no contexto da criação do Muro da Cisjordânia. Israel começou a construir o muro em 2002, durante a Segunda Intifada, utilizando-se da justificativa de medida de segurança contra os atentados a bomba terroristas palestinos. Em violação às fronteiras restabelecidas em 1967, os muros foram mais uma iniciativa em que Israel utilizou-se da segurança como pretexto para anexar terras palestinas e consolidar o controle sobre a Cisjordânia.
Em 2004, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu uma decisão declarando que a construção do muro em território ocupado é ilegal. Israel rejeitou a decisão, argumentando que a CIJ não tem jurisdição sobre questões de segurança interna.
Ainda, Guerra Mundial Z é lançado sob contexto de cerco total à Gaza e escalada de violência por parte das forças de ocupação israelenses. Em 2012, Israel assassinou Ahmad Jabari, liderança militar que foi o principal negociador com mediadores egípcios na libertação do soldado israelense Gilad Shalit em troca da libertação de 1.000 prisioneiros palestinos. Já em 2014, após o lançamento do filme, um confronto de dois meses com campanhas de bombardeio e ataques terrestres matou mais de 2.100 palestinos e 73 israelenses.
Mas o filme apocalíptico não é o único caso de promoção estética do sionismo em Hollywood. Gal Gadot, por exemplo, tornou-se um ícone global com Mulher Maravilha (2017). Ex-integrante das Forças de Defesa de Israel, Gadot foi alvo de boicotes em países árabes, mas também foi celebrada como símbolo de empoderamento feminino. A atriz assinou, logo na sequência dos atos de 7 de outubro de 2023, uma carta aberta apoiando Israel nos dias seguintes ao ataque inicial do Hamas. Sobre as suas posições, declarou no início de 2025:
“Quando as pessoas foram sequestradas de suas casas, de suas camas, homens, mulheres, crianças, idosos, sobreviventes do Holocausto, estavam passando pelos horrores do que aconteceu naquele dia, eu não conseguia ficar em silêncio”.
A atriz compareceu recentemente a um evento beneficente organizado pela United Hatzalah of Israel, em Nova Iorque, onde pediu que o público se lembrasse “dos 48 reféns israelenses ainda mantidos em cativeiro em Gaza”.

(Da esquerda para a direita) Os empresários Sunny Sassoon e Rick Caruso, que presidiram o evento da United Hatzalah, com Gal Gadot, o homenageado Yuval Raphael, o fundador e presidente do United Hatzalah, Eli Beer, e o atual presidente da United Hatzalah, Mark Gerson. Foto: HATZALAH UNITED.
Gal Gadot ainda esteve envolvida em polêmicas no âmbito da campanha para o filme Branca de Neve (2025), no qual contracenou com Rachel Zegler, que tem sido voz de denúncia aos crimes em Gaza contra os palestinos. A atriz israelense afirmou que há “muita pressão sobre as celebridades para se manifestarem contra Israel”, e que isso prejudicou a bilheteria do filme. A imagem pública de Gadot – disciplinada, patriótica, carismática – reforça inconscientemente a estética do sionismo moderno: jovem, progressista, militarizado.
Outro caso de ícone de promoção do discurso oficial pode ser encontrado no cineasta Quentin Tarantino, aclamado diretor de filmes como Kill Bill (2003) e Era uma vez em Hollywood (2020). Casado desde 2018 com a cantora e atriz israelense Daniella Pick, Tarantino é uma figura central na promoção de relações públicas de Israel em Hollywood. Diversas foram as vezes em que o diretor declarou que “vive uma vida maravilhosa” em sua casa no bairro de Tel Baruch, ao norte de Tel Aviv, que estava aprendendo hebraico, que Israel foi o país que melhor lidou com a pandemia de COVID-19, entre outros.
Para além dos elogios difusos e das declarações corriqueiras sobre sua vida ‘maravilhosa’ em Israel, Tarantino é um apoiador das forças armadas da ocupação. Em 13 de outubro de 2023, imediatamente após os acontecimentos da Operação Tempestade Al-Aqsa, o diretor de Pulp Fiction visitou bases militares israelenses no sul de Israel para ajudar a “impulsionar a moral em meio à guerra com o Hamas”, como foi divulgado pela Think Tank sionista Stand With Us.

Tarantino com soldados das forças de ocupação em uma base ao sul de Israel, 13 de outubro de 2023. Foto: Reprodução / redes sociais.
Enquanto Gadot e Tarantino ganham cada vez mais espaço diante dos holofotes, recentemente, a atriz mexicana Melissa Barrera, estrela dos dois últimos filmes da franquia Pânico, foi demitida da próxima sequência após compartilhar nas redes sociais postagens críticas ao governo de Israel e ao que ela descreveu como “genocídio e limpeza étnica” em Gaza. A produtora Spyglass, responsável pelo longa, justificou a decisão afirmando ter “tolerância zero com o antissemitismo”, citando que suas postagens “cruzavam a linha do discurso de ódio”.
Sionismo na sua televisão
Nessa batalha ideológica, as séries de televisão e plataformas de streaming representam a nova trincheira. O avanço da tecnologia e a massificação do entretenimento sob assinatura permitiram que narrativas pró-Israel alcançassem públicos antes inacessíveis – e a Netflix tornou-se o principal vetor dessa expansão.
A representação de Israel nas séries de produção americana está profundamente entrelaçada com os interesses geopolíticos do Estado israelense, especialmente no que diz respeito à segurança nacional, à legitimação do Mossad e à normalização da ocupação militar.
Séries israelenses são adaptadas para o público americano, mantendo a estrutura ideológica intacta. Hatufim (2010), por exemplo, foi transformada em Homeland (2011), série de sucesso produzida pela Fox 21 Television Studios nos EUA. Embora a versão americana se afaste do contexto israelense, ela preserva a lógica da paranoia de segurança, da vigilância constante e da justificação da tortura como método legítimo.

Hatufim (2010), prod. Gideon Raff. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Essas adaptações não são meramente comerciais. Elas funcionam como pontes culturais, permitindo que o público ocidental internalize valores e perspectivas israelenses sem perceber. A Netflix, ao investir em coproduções e remakes, torna-se uma das principais promotoras dessa difusão ideológica.
Nesse sentido, a série Fauda (2015), criada por Lior Raz e Avi Issacharoff, é o exemplo mais emblemático dessa nova estética. Produzida em Israel e distribuída globalmente pela Netflix, Fauda acompanha uma unidade de elite das IDF especializada em operações secretas em territórios palestinos. A primeira temporada foi filmada em Kafr Qasim durante a ofensiva sionista contra Gaza de 2014, e estreou em 15 de fevereiro de 2015. A narrativa é centrada nos dilemas morais dos soldados israelenses, que são retratados como heróis trágicos, enquanto os palestinos aparecem como fanáticos, manipulados ou criminosos.

Fauda (2015), prod. Lior Raz & Avi Issacharoff. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Após os ataques de 7 de outubro de 2023, os criadores Lior Raz e Avi Issacharoff decidiram reescrever completamente a trama da quinta temporada da série, tornando-a mais sombria, crua e marcada pelo trauma coletivo do país. Ambientada dois anos após os ataques, a quinta temporada acompanhará o protagonista em meio às consequências do trauma nacional. O enredo começa como uma busca pessoal por vingança, mas rapidamente evolui para uma missão clandestina para impedir um novo atentado do Hamas em território israelense.
Dois anos após a Operação Tempestade Al-Aqsa, entretanto, a grande ameaça na região não é o Hamas, mas sim a ofensiva israelense que impõe a fome em toda a Faixa de Gaza, e já assassinou 66.097 palestinos e feriu 168.536.
Série israelense de maior sucesso no Brasil, Fauda não apenas reforça estereótipos, mas também serve como propaganda sofisticada. A série foi elogiada por militares israelenses e usada como ferramenta de relações públicas para melhorar a imagem das IDF no exterior.
O Mossad em alta
Além de Fauda, outras produções distribuídas pela Netflix reforçam a imagem do Mossad como agência eficiente, ética e heroica. A minissérie O Espião (2019), estrelada por Sacha Baron Cohen, dramatiza a vida de Eli Cohen, agente israelense infiltrado na Síria nos anos 1960. Baseada em fatos reais, a série romantiza a espionagem israelense como sacrifício patriótico, ignorando as implicações da atuação sem fronteiras do grupo, em permanente violação às normas do direito internacional e da soberania dos países, sem falar nas políticas da intervenção israelense direta em países vizinhos.

O Espião (2019), prod. Gideon Raff. Foto: Reprodução/Redes sociais.
Outras produções distribuídas pela Netflix que exemplificam o compromisso da empresa em promover a narrativa oficial israelense são Jornada de Heróis (2018), que exalta os valores militares das IDF ao acompanhar ex-soldados em uma missão internacional; Beauty and the Baker (2020), comédia romântica produzida em parceria com a emissora ABC, normaliza a vida dos colonos israelenses ao apagar qualquer referência ao conflito; e Hit and Run (2021) insere o Mossad em uma trama de espionagem global, reafirmando a aliança entre Israel e o Ocidente sob uma estética hollywoodiana que disfarça seu núcleo ideológico.
A glorificação do Mossad é parte de uma estratégia mais ampla: transformar os agentes do sionismo em ícones culturais, aproximando-os dos heróis ocidentais como Jason Bourne e James Bond. A estética é limpa, a moral é clara, e o inimigo é sempre externo – uma fórmula que ressoa com o público global e reforça a narrativa de Israel como vítima resiliente.
O papel da Netflix vai além da distribuição. Como curadora de conteúdo, a plataforma escolhe quais narrativas serão promovidas, quais serão silenciadas e como serão enquadradas. Ao privilegiar séries que exaltam o aparato militar israelense e ignorar produções críticas ou palestinas, a empresa contribui para a hegemonia simbólica do sionismo.
A ausência de contrapontos é notável. Séries que abordam o sofrimento palestino, a ocupação ou os abusos dos direitos humanos raramente recebem destaque ou sequer são adquiridas. Quando aparecem, são marginalizadas ou enquadradas como “controversas”, enquanto produções como Fauda são vendidas como “imperdíveis”.