Bets seguem inabaladas apesar de CPI apontar crimes e endividamento
Apesar das denúncias contundentes e da vasta documentação apresentada, a rejeição do relatório final em uma sessão esvaziada mostra a influência do setor sobre o parlamento brasileiro, beneficiando o lobby desse setor bilionário.

CPI das bets. Reprodução/Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas Esportivas, conhecida como CPI das Bets, rejeitou, por 4 votos a 3, o relatório final que pedia o indiciamento de 16 pessoas, incluindo influenciadores digitais e empresários ligados ao setor. A rejeição do parecer da relatora, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), marca a primeira vez em uma década que um relatório de CPI é derrubado no Senado, um fato que, por si só, já aponta para a força do lobby das empresas de apostas no Brasil.
O objetivo da CPI era investigar a crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras e a possível prática de crimes como lavagem de dinheiro, evasão fiscal e organização criminosa. Apesar das denúncias contundentes e da vasta documentação apresentada, a rejeição do relatório final em uma sessão esvaziada mostra a influência do setor sobre o parlamento brasileiro, beneficiando o lobby desse setor bilionário, em detrimento dos interesses do povo.
Um dos pontos de maior destaque do relatório é a identificação de um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro e operação ilegal de plataformas de apostas estrangeiras, supostamente orquestrado por uma máfia chinesa. A investigação, que teve início com o Delegado Erick Sallum da Polícia Civil do Distrito Federal, revelou a atuação de diversas pessoas e empresas de fachada no Brasil, criadas com o único propósito de viabilizar o funcionamento de cassinos online ilegais, como o popular “Jogo do Tigrinho”.
Essas plataformas, como www.9F.com e www.PPBet.club, operavam sem a devida autorização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), explorando apostas e remetendo os valores obtidos ilegalmente para o exterior através de fraudes documentais e financeiras.
O modus operandi do esquema envolvia a criação de empresas de fachada, com advogados brasileiros cooptados para abrir empresas com CNPJs regulares, mas sem atividade real, servindo como "testas de ferro" para os controladores estrangeiros. Casos como OkpaymentS, FDG Entertainment e PlayFlow Processadora de Pagamentos Ltda. foram citados. Em alguns casos, contratos eram assinados com documentação falsa, inclusive via plataformas digitais. As empresas de fachada abriam contas em fintechs desreguladas como ANSPACEPAY, VOLUTI e IUGU, aproveitando brechas na regulamentação para gerar links de pagamento via PIX, integrados aos sites de apostas. Os apostadores transferiam valores via PIX, acreditando estar participando de jogos legítimos, mas os valores iam diretamente para contas em paraísos fiscais como Curaçao, Ilhas Virgens e Georgia, através de operações cambiais fraudulentas. Para justificar essas remessas, eram usadas Autorizações de Câmbio (ACAMs) com CPFs de pessoas mortas, com 549 casos identificados.
A elaboração de uma estrutura em camadas, ou "matrioskas", em referência às bonecas russas que se encaixam uma dentro da outra, dificultava a responsabilização, envolvendo bancos tradicionais, instituições de pagamento nacionais, empresas de fachada e os sites de apostas ilegais, que garantiriam o caráter oculto de seus beneficiários finais. O relatório, que corrobora com outras investigações de mídia, aponta que uma suposta “máfia chinesa” estaria entre os grandes operadores desse esquema.
O endividamento das famílias brasileiras
Como O Futuro já divulgou em outubro de 2024, a consolidação das bets enquanto estrutura regulamentada no Brasil, mesmo que não houvesse irregularidades, já acarretaria no aumento do endividamento do povo brasileiro, com fluxo de suas receitas para empresas internacionais.
Há projeções de que o mercado de apostas online no Brasil pode movimentar R$ 270 bilhões em 2025. Esse volume é equivalente a 84% do varejo de carne bovina em 2024, demonstrando a magnitude do redirecionamento de gastos das famílias brasileiras para as plataformas de apostas. As propagandas massificadas têm levado uma parcela significativa da população a comprometer seu orçamento: 29% dos domicílios já reservam parte do valor do fim de semana para apostas, e 18% chegam a cortar gastos essenciais como carne ou almoço fora com as bets. Para as famílias de menor renda, que ganham até dois salários mínimos, o gasto médio mensal com apostas é de R$ 87, um valor que representa um impacto significativo no orçamento dessas famílias.
Apuração da Agência Pública mostra o impacto das apostas sobre os beneficiários do Bolsa Família. Estima-se que entre 1,8 e 3 milhões de pessoas que recebem o benefício já apostaram. Em agosto do ano passado, R$ 3 bilhões oriundos do Bolsa Família foram direcionados às bets, o que motivou uma investigação da Polícia Federal, ainda não concluída, mas que apura possíveis fraudes em nome de beneficiários.
O lobby das bets
No recente embate entre o parlamento e o governo federal, em que houve a derrubada do decreto do presidente Lula (PT) que previa o aumento do IOF, pouco se tratou de outro alvo de Haddad para aumento das receitas do governo: o aumento dos impostos sobre as bets. Em junho deste ano, Haddad e líderes do Congresso haviam chegado a um acordo de aumentar de 12 para 18% o imposto sobre o faturamento das casas de apostas. A resposta veio organizada, com o lobby do setor procurando o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), que recuou no apoio à proposta. A justificativa oficial dos representantes das bets é de que o aumento dos impostos prejudicaria as empresas que atuam de forma legal, em concorrência com as operadoras ilegais.
No discurso oficial, a representante do setor é a Associação Brasileira de Apostas e Fantasy Sports (ABFS). Na prática, em um cenário de arrecadação bilionária, em um fluxo de receita irrastreável, e com grandes remessas sendo transferidas para paraísos fiscais, o poder de influência financeira desse lobby sobre parlamentares torna-se incalculável e com atores de difícil detecção nos corredores de Brasília.
A distinção entre “bets regulares”, que aumentam o endividamento do povo, e “bets irregulares”, que são as não legalizadas, deve ser analisada de forma crítica, já que ambos os grupos têm operações em paraísos fiscais, onde a legislação permite a ocultação dos reais operadores dessas empresas. A rejeição do relatório da CPI das bets, que pedia o indiciamento de figuras proeminentes e a responsabilização de empresas, e que trazia uma apuração contundente sobre a ligação do setor com grupos criminosos internacionais, evidencia mais uma vez a influência do lobby do tigrinho sobre o Estado brasileiro.