Gratificação Faroeste: o retorno de uma política que aprofunda o extermínio em periferias

ALERJ reabre um capítulo sombrio da história fluminense. A medida aprovada resgata uma lógica com efeitos devastadores: o aumento da letalidade policial e o fortalecimento de grupos de extermínio dentro das corporações.

7 de Outubro de 2025 às 15h00

Evento para entrega de 500 fuzis para a Polícia Civil. Reprodução/Foto: Reginaldo Pimenta/Agência O Dia.

No dia 23 de setembro de 2025, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovou a volta da chamada Gratificação Faroeste, que prevê o pagamento de um bônus de 10% a 150% sobre os vencimentos a policiais responsáveis pela “neutralização de criminosos” — expressão usada para designar a morte de pessoas consideradas criminosas.

A gratificação foi inserida como emenda pelo deputado Rodrigo Amorim (União), que também atua como relator do projeto de lei nº 6.027/2025, responsável pela reestruturação do quadro permanente da Secretaria de Estado de Polícia Civil. A proposta foi aprovada por 45 votos favoráveis e 17 contrários. No momento, o benefício se aplica apenas aos policiais civis, mas o deputado Marcelo Dino (União), um dos autores do texto, já anunciou a intenção de estender a gratificação aos policiais militares.

A Gratificação Faroeste não é novidade. Ela vigorou entre 1995 e 1998, abrangendo policiais civis, militares e bombeiros, e foi instituída no governo de Marcello Alencar (PSDB). A medida foi revogada por iniciativa do deputado Carlos Minc (PSB), após denúncias de abusos e um aumento expressivo nas mortes decorrentes de ações policiais.

O Relatório do Instituto Superior de Estudos Religiosos (ISER), que embasou a revogação, demonstrou que a gratificação dobrou a média de mortes mensais em ações policiais. O estudo também revelou indícios consistentes de execuções sumárias: “na análise de laudos cadavéricos, verificou-se que o número médio de orifícios de entrada por cadáver foi de 4,26, e 65% das vítimas apresentavam pelo menos um disparo pelas costas”.

O aumento das execuções foi acompanhado pelo crescimento de grupos de extermínio dentro das forças policiais e pelo uso generalizado dos chamados “Autos de Resistência” — registros que alegavam legítima defesa para justificar mortes e impedir investigações. Essa prática foi posteriormente declarada ilegal após condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Nova Gratificação Faroeste tende, segundo especialistas, a produzir efeitos semelhantes aos da lei anterior, reforçando a institucionalização do extermínio como forma de atuação policial.

No Brasil, a letalidade policial está entre as mais altas do mundo. Desde 2018, o país registra anualmente mais de 6 mil mortes causadas por policiais, tendo as pessoas negras e periféricas como principais vítimas.

No Rio de Janeiro, a polícia é uma das mais letais do país. Em 2023, cerca de 20% das mortes violentas no estado foram causadas por policiais — uma em cada cinco. Em 2024, o percentual caiu para 18%, redução atribuída, segundo o Anuário da Segurança Pública de 2025, às medidas adotadas no âmbito da ADPF 635 — decisão do STF que buscou conter a letalidade policial, estimulando o uso de câmeras corporais e o controle das operações.

Com a aprovação da nova gratificação, há o risco de que esses avanços sejam perdidos, impulsionando novamente uma política de mortes promovida pela polícia.

Por essa razão, instituições públicas como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público Federal consideram a medida inconstitucional. Juristas ouvidos pelo O Globo afirmam que a nova gratificação contraria o precedente do STF na ADPF 635 e viola princípios constitucionais como o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana.

Na prática, argumentam, a medida representa um reconhecimento estatal da execução sumária, pois permite que o policial decida quem é criminoso, mesmo sem julgamento. Além disso, constitui um estímulo à pena de morte, vedada pela Constituição.

O deputado Marcelo Dino (União) defende a medida como resposta à suposta “bandidolatria” e afirma que “os bandidos precisam ser abatidos”, argumentando que, “com esse projeto, eles vão temer”. No entanto, não há qualquer evidência científica de que o aumento da letalidade policial reduza a criminalidade.

Pelo contrário, a gestora de segurança pública Jacqueline Muniz, em entrevista ao Brasil de Fato, alerta que a gratificação pode fortalecer a “milicianização” da polícia e prejudicar a solução de crimes. Segundo ela, ao legitimar execuções, o Estado transforma a vida em mercadoria negociável e impede a elucidação de esquemas criminosos, já que as execuções eliminam informações fundamentais — um processo conhecido como “queima de arquivo”.

A aprovação da Nova Gratificação Faroeste pela maioria dos parlamentares da extrema direita escancara a ausência de uma proposta consistente de segurança pública. Em vez de enfrentar as causas da criminalidade, a medida reforça uma lógica de extermínio.

Num momento em que operações como a “Carbono Oculto” expõem conexões entre o crime organizado, o mercado financeiro e fintechs, a ALERJ opta por um projeto que não propõe o fortalecimento da inteligência investigativa, nem o aprimoramento estrutural da Polícia Civil, historicamente sucateada. Longe de desarticular o crime organizado, a proposta tende a ampliar a violência letal contra a população negra e periférica.

A Nova Gratificação Faroeste segue agora para sanção ou veto do governador Cláudio Castro (PL). Diante desse cenário, editoriais ligados à classe trabalhadora apontam caminhos de resistência, como a pressão popular pelo veto, a propositura de ações jurídicas de inconstitucionalidade e a manutenção das estratégias populares de proteção nos territórios negros e de favelas.