O 'Maior São João do Cerrado', maior festa junina fora de época do país, se afasta de suas raízes nordestinas e periféricas

A festa popular foi vítima de uma negociação de portas fechadas do Governo Federal, que caminha junto a política implementada pelo Governo do DF ao longo dos anos.

20 de Maio de 2025 às 0h00

Reprodução/Foto: Jornal de Brasília.

Por Mateus Filgueira

O Distrito Federal é uma das cidades mais desiguais do Brasil. Segundo levantamento realizado do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua de 2021, o Índice de Gini – onde quanto mais próximo de 1, menos igualdade – do DF (Distrito Federal) é de 0,566, sendo a 4ª unidade federativa mais desigual do país.

Brasília foi construída por trabalhadores de diversas localidades do país, os quais foram conhecidos pejorativamente por “candangos”, com destaque para os migrantes originários do nordeste brasileiro. O Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (Iped-DF) de 2021 apontou que 54,1% dos moradores atuais do DF vieram de estados do nordeste.

Trabalhadores fazem fila para se cadastrar na construção de Brasília. Reprodução/Foto: Arquivo Público do DF.

A segregação de Brasília remonta à sua construção. Enquanto Brasília levantava monumentos arquitetônicos e propagandeava ser uma cidade que, teoricamente, integra paisagem aos prédios e facilitava a circulação de pessoas (com prédios sem muros, grades ou cercas), a realidade é que Brasília foi sustentada por migrantes com jornadas de trabalho que chegavam a 16h por dia, conforme estudo do Memorial da Democracia. Não suficiente, as “cidades dormitórios”, onde se estabeleceram os operários, eram afastadas da região central onde se encontravam os prédios públicos, administrativos, sedes de empresas e casas de banqueiros e grandes empresários. Ceilândia, por exemplo, região administrativa mais populosa do DF, onde 70% da população é nordestina, se encontra há mais de 30 km de distância do Plano Piloto.

Não à toa, O Maior São João do Cerrado, como é chamado a maior festa junina fora de época do país, é realizada em setembro em Ceilândia; a região, por sua formação política, econômica e social foi declarada em 2019 como a ‘Capital da Cultura Nordestina no Distrito Federal’; também foi em 2019 que Sol Nascente – hoje a maior favela do Brasil – foi desmembrada de Ceilândia.

No começo de maio, Edilane Oliveira, produtora e idealizadora do projeto, em live no instagram, anunciou que O Maior São João do Cerrado ganharia uma repaginada, começando mais cedo (em maio), se tornando a maior festa junina do centro-oeste. A medida faz parte de uma parceria entre o Ministério da Cultura e o Ministério do Turismo do Governo Federal.

Nas redes sociais do evento, a repercussão ganhou desaprovação do público que reivindica o retorno da festa a suas origens nordestinas e periféricas que são parte constitutiva da cultura brasiliense. “São João do Cerrado é na Ceilândia, assim como a Via Sacra é em Planaltina e a festa do Morango em Brazlândia!”, como afirma o morador Paulo Henrique em um dos posts da festa. DiCastro Sidney, também nas redes sociais apontou que “esta tradição ceilandense será apenas mais uma festa na esplanada para atrair pessoas de fora, turismo e assim gerar dinheiro pro GDF, porém, perderá sua característica principal: a alegria do povo nordestino da Ceilândia. A festa que atraia a família, até pessoas de mais idade que moram na Ceilândia e que agora ficam órfãos”.

Na edição de 2023, uma das maiores, foram gerados 1,5 mil empregos diretos e mais de 5 mil indiretos. Agora, os trabalhadores terão que se deslocar de suas casas para trabalhar há horas de distância em um evento pensado para um outro público que sequer foram e apoiaram as outras quase 20 edições passadas. O morador Leandro Dias, em resposta a produtora Edilane, afirmou: “um evento que nasceu com o povo ceilandense não pode mudar assim, o público que fez a festa ser o que é hoje merece um espaço digno desse evento na Ceilândia!”.

Essa mudança n’O Maior São João do Cerrado é a perpetuaçao do apartheid e da gentrificação que sustenta o Distrito Federal desde sua criação e que retira toda e qualquer cena cultural com visibilidade e investimento das periférias e jogam para o Plano Piloto, mudando o público e o caráter popular na construção destes eventos. O Maior São João do Cerrado, que dessa vez foi vítima de uma negociação de portas fechadas do Governo Federal, caminha junto a política implementada pelo Governo do DF ao longo dos anos.

Carnaval de Brasília antes de sua inauguração, em 1960. Reprodução/Foto: Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro.

Carnaval de Brasília antes de sua inauguração, em 1960. Reprodução/Foto: Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro.

Um exemplo é o carnaval de Brasília. “Se hoje um milhão de brasilienses e turistas invadem as ruas de Brasília para brincar o Carnaval, é porque um grupo de pioneiros deu o pontapé para iniciar a festa do Momo, quando a cidade mal tinha comemorado seu primeiro ano de vida”, é o que diz matéria da Agência Brasília. Há uma década não há desfiles de escola de samba em Brasília; o Ceilambódromo, um dos palcos dos bailes populares e de apresentação das agremiações foi fechado, dispersando mais de 40 mil pessoas de todo o DF que se reuniam para ver o desfile em Ceilândia e que por falta de infraestrutura foi fechado e reestruturado como uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Quem é morador de Brasília sabe das poucas aberturas culturais gratuitas no DF. Quando existem, se concentram no Plano Piloto, tem consumações exorbitantes e difícil acesso devido ao transporte precário e com horários reduzidos. O GDF, sob Ibaneis Rocha (MDB), ao invés de investir no acesso a cidade, cultura e lazer para as periferias, opta por justamente o contrário: retira cada vez mais as produções artísticas da periferia e se coloca contra a mobilidade urbana ao privatizar a Rodoviária do Plano Piloto, por exemplo. Sol Nascente, ao lado de Ceilândia, em diversos pontos carece de transporte, creches, escolas, postos de saúde, e até saneamento básico, mas para Ibaneis Rocha, Sol Nascente precisa de um novo batalhão de Polícia Militar para mais violência policial e zero impacto positivo concreto na segurança pública.

Sol Nascente (DF). Reprodução/Foto: GDF.

Mas apesar das investidas, a cultura periférica do DF resiste. Um exemplo é a ELAFAV e a Sul Zulu - Casa do Hip-Hop Sol Nascente que desafiam o abandono cultural e fomentam a cultura preta, periférica, principalmente em Ceilândia e Sol Nascente. Em Taguatinga a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive vem, por uma década, lutando por direitos à cidade e à cultura. As feiras locais - Ceilândia, Guará, Sobradinho, São Sebastião, etc - e os comércios informais (como as barraquinhas em praças), são também símbolos de resistência e mantém vivas as heranças candangas-brasilienses e nordestinas, a despeito do Governo do Distrito Federal (GDF).