A mobilização dos moradores da Penha e do Alemão na denúncia do terrorismo de Estado

Enquanto o Estado desumaniza o povo negro periférico, moradores dos complexos, sobretudo as mulheres, demonstram a força da organização da classe trabalhadora, que desde o início pressionou incansavelmente pelo fim da chacina.

24 de Novembro de 2025 às 21h00

Familiares protestam em frente ao Instituto Médico Legal (IML) — Reprodução/Foto: Mariana Bispo/TV Globo.

Com o número oficial de 121 mortes, superando o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, a chacina promovida nos Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro não apenas reflete a política de extermínio implementada pelo atual Governador Cláudio Castro (PL) e seu partido, mas um sistema marcado, em seu cerne, pelas desigualdades de raça e classe.

Como se não fossem humanos, os assassinados pela coordenação do Comando de Operações Especiais (COE), pela PM e equipes da CORE tiveram seus corpos descartados nas matas da localidade do Complexo da Penha, sendo apenas retirados pelos próprios moradores. Houve relatos de ao menos um corpo decapitado, de vítimas com tiros na nuca, em aparente execução, e de mãos sem digitais.

Para além do luto, as famílias precisaram lidar também com diversos obstáculos impostos ao tentar reconhecer e liberar os corpos de seus entes queridos encaminhados ao Instituto Médico Legal (IML).

A luta pelo direito ao reconhecimento das vítimas

Como parte da mobilização de denúncia do massacre ocorrido, moradores e familiares das vítimas recolheram cerca de 70 corpos na área de mata da favela, segundo relatos locais. Os corpos foram enfileirados pelos próprios moradores, em um processo de reconhecimento informal dos familiares, na Praça São Lucas, no Complexo da Penha. Dessa mobilização inicial, surgiram imagens tragicamente históricas e que vêm sendo fortemente exploradas pela grande mídia na divulgação da brutalidade que o Governador e seu Secretário de Segurança, Victor Santos, classificaram como uma “vitória”.

Os trabalhadores que residem nas favelas desses complexos sofreram com 15 horas de puro terrorismo de Estado. A operação policial foi iniciada às 6h da manhã e teve seu encerramento, de acordo com a própria Polícia Militar, por volta das 21h. Durante todo esse tempo, milhares de moradores, dentre os mais de 280 mil que vivem no Complexos da Penha e do Alemão, não conseguiam sair de suas casas.

Outros milhares foram colocados sob o risco do fogo cruzado pela necessidade de chegarem a seus trabalhos e tiveram encontraram dificuldades também na volta às suas casas pela permanência dos confrontos; estudantes deixaram de ir às aulas porque a escolas e universidades, bem como 6 unidades de saúde básica que atendem a região dos Complexos, foram obrigadas a suspender suas atividades.

Contudo, o que se via na cobertura de jornais da mídia burguesa sobre a manifestação dos familiares em frente ao Instituto Médico Legal (IML), ocorrida dois dias após a chacina, eram elementos que destacavam, de forma negativa,  os impactos sobre o trânsito de uma manifestação que durou menos de meia hora e foi reprimida com truculência policial.

Esse ato marcou um novo momento da luta dos familiares das pessoas vitimadas na chacina quando, por mais uma vez, tiveram que lutar por maiores informações para garantir o reconhecimento e a liberação dos corpos. De acordo com os parentes das vítimas, o IML teria informado que encerraria os trabalhos naquele momento e, portanto, ninguém poderia fazer mais o reconhecimento naquela tarde. Diversos parlamentares também já haviam tido suas entradas bloqueadas em meio à busca por informações sobre as vítimas.

A partir disso, iniciou-se a manifestação que fechou o trânsito como forma de amplificar a denúncia do ocorrido naquele local. A manifestação foi liderada por mulheres que, ajoelhadas e de mãos dadas, formavam um cordão humano na Avenida Francisco Bicalho, no Centro do Rio de Janeiro, e pediam a liberação dos corpos. A PMERJ reagiu jogando spray de pimenta nas manifestantes, mas também em jornalistas e parlamentares que acompanhavam o ato e registravam sua dispersão truculenta.

Outro relevante ato de denúncia da chacina foi realizado pelos moradores e organizações populares do Complexo da Penha, no dia 31 de outubro, reunindo milhares de pessoas na Vila Cruzeiro, uma das favelas que compõem o Complexo.

Além do elevado número de corpos recebidos em um curto período de tempo, o que sobrecarregou momentaneamente as capacidades do IML em garantir os reconhecimentos, houve um outro ponto que dificultou o andamento do trabalho: a Polícia Civil anunciou que os exames seriam realizados pelos peritos legistas do estado, negando, dessa forma, até mesmo o auxílio da Polícia Federal.

As redes de apoio na luta contra a violência de Estado

Enquanto os familiares passavam por todas as consequências do luto e dos trâmites desgastantes em frente ao IML, integrantes da Rede de Proteção de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência do Estado (RAAVE) se somaram no apoio jurídico, psicossocial e material – incluindo a distribuição de café e suco – para familiares que estavam desamparados nas calçadas, impedidos de entrar na instituição enquanto aguardavam por informações.

Como divulgado pela Agência Brasil, as cem mães que constituem a organização são bolsistas de extensão pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atuando em mais de dez núcleos na região metropolitana do estado, ressaltando a importância da constância na luta. Foram elas que, em muitos momentos, direcionaram os familiares das vítimas do massacre, explicando como funcionava o processo no IML, assim como o transporte do corpo para aqueles habitantes de outros estados.

Para a Folha de S.Paulo, o advogado Guilherme Pimentel, atual coordenador da RAAVE, enfatiza que a organização defende a criação de uma política pública baseada nos "Pontos de Acolhimento, Justiça e Cuidado", espaços esses onde seriam promovidos cafés da manhã, saraus e rodas terapêuticas com essas famílias. São esses os ambientes que favorecem não apenas o cuidado mútuo, mas também o debate contínuo sobre a violência que atravessa essas comunidades.

Desde o início, os militantes de direitos humanos presentes, além de defensores públicos e parlamentares, destacaram a necessidade de amplificar a pressão sobre os órgãos de Estado para a garantia de liberação de informações e de acesso aos corpos das vítimas da chacina. A luta das famílias e das redes de apoio transformava, por diversos meios, a dor em um eco que passava a reverberar por todo o Brasil. Diversos atos foram organizados em denúncia da chacina por todo o país no mesmo dia 31 de outubro em que o ato no Complexo foi organizado pelos moradores.

Após as repercussões dessas ações em frente ao IML, propagadas por mídias digitais e na imprensa, foi realizada uma reunião puxada pelas presidências das Comissões de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e da ALERJ e, posteriormente, a convocação daqueles que ainda não tinham feito o reconhecimento dos corpos de seus entes queridos em meio ao caos.

Naquele mesmo dia, as ministras Macaé Evaristo (Direitos Humanos e da Cidadania) e Anielle Franco (Igualdade Racial) foram ao Complexo da Penha para ouvir os moradores em reunião na sede da Central Única de Favelas (CUFA), localizada no Complexo da Penha. Somaram-se também a essa reunião representantes de várias comunidades e parlamentares federais, estaduais e municipais.

Casos como esse escancaram a desumanização e a criminalização dos trabalhadores que residem nas favelas e periferias do país pelo Estado burguês e pelos aparelhos de propaganda da burguesia, a mídia hegemônica, que, antes mesmo da apuração de quaisquer informações, já anunciavam a versão oficial das polícias, que tratava todas as vítimas como bandidos. Enquanto isso, aos policiais eram reservados os espaços de humanização, com repetitivas exposições de nomes, histórias familiares e de suas carreiras.

Longe do cenário em que pessoas tiveram suas casas invadidas, assim como seus psicológicos afetados, na internet e na TV, as vítimas fatais, eram privadas pelo Estado burguês do princípio constitucional (e liberal) da presunção de inocência. As vítimas eram, de imediato, julgadas e condenadas pela grande mídia, que, sob o verniz de “imparcialidade”, as tratou como bandidas – e, como decorrência, passíveis de serem exterminadas –, antes mesmo do reconhecimento dos corpos e da checagem dos mais de 100 mandados expedidos pela justiça. Dessa forma, buscava-se a naturalização dos assassinatos em um país que sequer adota pena de morte.

Tal situação configura um cenário em que ao mesmo tempo em que se direcionam investimentos para a militarização da segurança, são deixadas de lado políticas públicas para essa parcela grande da população atingida pela violência, decorrida do acirramento da política de “guerra às drogas” no país.

Esse massacre foi pontual pela sua extensão, mas não pela sua determinação. Não à toa, os familiares – e em especial as mães – de vítimas de outras operações se colocaram como agentes do processo de acolhimento às vítimas da violência de Estado. Muitas dessas pessoas que trabalharam no acolhimento também foram vítimas das consequências, por exemplo, da Chacina do Jacarezinho, realizada em 2021 e comandada pelo mesmo Governador

A própria existência de organizações populares que dão suporte jurídico, psicossocial e material às vítimas vivas, que carregarão consigo por toda a vida o peso da barbárie e do terrorismo de Estado – sendo o caso da RAAVE apenas um entre diversas organizações de direitos humanos atuantes no país –, demonstra que os episódios de violência contra a classe trabalhadora moradora das favelas não são casos isolados, mas demonstrações permanentes da violência de Estado e do controle social imposto pela classe dominante às parcelas mais pobres do proletariado brasileiro.