O estado burguês e a favela do Moinho: a luta por moradia digna no coração de São Paulo
Diante das ameaças de remoção, a Associação de Moradores da Favela do Moinho, em articulação com redes de apoio, passou a exigir soluções habitacionais urgentes e compatíveis com a realidade local, dando início a uma série de mobilizações.

Ato do dia 15/04, que teve como destino a Câmara dos Vereadores de São Paulo. Foto: Jornal o Futuro.
A Favela do Moinho — última remanescente no centro de São Paulo — será removida de seu território. Ali vivem mais de 900 famílias de trabalhadores e dezenas de comércios sob o Viaduto Orlando Murgel, entre as linhas 7‑Rubi e 8‑Diamante da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), no bairro Campos Elíseos. A ocupação começou há mais de 30 anos, no terreno onde funcionava o moinho de farinha Matarazzo. Há 16 anos, essa área, de propriedade da União, é alvo de disputa. Desde então, a comunidade enfrenta constantes episódios de tensão, que vão de ameaças de despejo a incêndios criminosos.
Em 2024, o governo estadual pediu à União a transferência do terreno ocupado pela Favela do Moinho, com o objetivo de promover a “maior intervenção urbana” já prevista para os Campos Elíseos. O plano articula três Parcerias Público‑Privadas: Trens Urbanos, Regeneração Urbana e a nova sede do governo paulista — que reunirá 28 secretarias, 36 órgãos, comandos policiais, além de shopping, parque, espaço cultural e trem turístico. Em março de 2025, ocorreu o leilão da PPP Trens Urbanos, que prevê a concessão de 25 anos das linhas férreas e a construção da estação Bom Retiro sobre parte da comunidade.
A remoção da Favela do Moinho é considerada como pré‑requisito para a valorização imobiliária da região, embasada num discurso higienista que liga sua população ao tráfico de drogas e à Cracolândia. Essa narrativa, porém, é rechaçada por lideranças locais e movimentos contrários à remoção, que denunciam o uso da Cracolândia como pretexto para legitimar o processo. O governo, por sua vez, incorpora o discurso de “revitalização do centro”, reforçando sua agenda voltada à segurança pública e à especulação imobiliária. A política de segurança, aliás, é uma das principais vitrines da gestão Tarcísio, que chegou a vincular a Moinho a um suposto bunker do crime organizado — estratégia evidente de criminalização da pobreza e de estigmatização dos territórios populares.
No que se refere ao processo de remoção, as propostas da CDHU estão longe de atender às necessidades reais dos moradores. São apenas duas opções: auxílio-aluguel de R$ 800 ou cartas de crédito de até R$ 250 mil para imóveis no centro e R$ 200 mil em outras regiões, com financiamento em 30 anos e parcelas limitadas a 20% da renda familiar. Esses valores, porém, são insuficientes para a aquisição de moradias na área central. As unidades da própria CDHU na região também não suprem a demanda: apenas 100 estão concluídas, 400 em obras e 560 ainda em fase de projeto, com previsão de entrega a partir de dois anos — prazo incompatível com a urgência das famílias.
Enquanto isso, os moradores ficam sujeitos a um subsídio que não garante sua permanência no centro, correndo o risco de serem deslocados para periferias distantes, cortiços ou áreas de risco — o que pode perpetuar o ciclo da informalidade. Em paralelo, os imóveis ofertados, com cerca de 30 m², desconsideram a diversidade dos arranjos familiares e suas necessidades concretas. Soma-se a isso o impacto social da possível remoção de 38 comércios locais — fontes de sustento para diversas famílias — sem qualquer plano eficaz de compensação ou realocação.
A adesão à proposta, que já conta com 513 famílias segundo a CDHU, não pode ser compreendida fora do contexto de pressão e intimidação denunciado por lideranças locais. Embora os números indiquem uma aceitação significativa, moradores relatam que a escolha se dá sob falta de alternativas viáveis e denunciam que foram coagidos sob ameaça de remoção forçada, sem garantia de realocação. Também salientaram que muitos foram induzidos a inflar a renda declarada para se enquadrarem nos critérios mínimos exigidos pelo programa. Há relatos de funcionários que orientaram moradores endividados ou sem comprovação de renda a fraudar informações, residir temporariamente com parentes e usar o auxílio para quitar dívidas. A própria cláusula contratual, porém, pune a falsificação de dados com ação penal e exclusão do programa, escancarando a contradição entre discurso e prática.
Dados levantados pela própria CDHU expõem a vulnerabilidade local: 47% dos residentes trabalham na informalidade, 61% delas sobrevivem com até dois salários-mínimos, 25,5% recebem menos de um salário e 3,6% não têm renda. Nessa lógica, exigir que famílias destinem 20% da renda mensal ao financiamento habitacional inviabiliza a manutenção digna de quem vive com um salário mínimo — na Favela do Moinho, a média é de apenas 1,2 salário por domicílio. Essa cobrança empurra muitas famílias à inadimplência e, por fim, ao retorno a moradias precárias ou mesmo às ruas.
Em março de 2025, ainda antes do encerramento do prazo para contrapropostas e sem a transferência oficial do terreno, a CDHU condicionou a inclusão dos moradores no programa habitacional à aceitação imediata de seus termos, valendo‑se de presença policial, desinformação e intimidações. Essa estratégia viola as diretrizes da SPU, que atrelou a cessão da área à aprovação de um plano de reassentamento com moradias dignas no centro, e desrespeita o ofício da Defensoria Pública. Esta última exigiu a regularização do contrato com a União, a concessão de subsídio integral (Portaria 1.248/23) às famílias mais vulneráveis e declarou nulos os acordos que ignoram as cláusulas pactuadas com a associação local e a cessão de posse. Ainda assim, o governo estadual ameaça iniciar as remoções em abril – sem formalizar a transferência nem apresentar propostas compatíveis –, pressionando as famílias a aceitarem soluções insuficientes e ferindo direitos patrimoniais e à moradia.
Diante das ameaças de remoção, a Associação de Moradores da Favela do Moinho, em articulação com redes de apoio, passou a exigir soluções habitacionais urgentes e compatíveis com a realidade local, dando início a uma série de mobilizações. Na terça-feira, 15 de abril, moradores, apoiadores e militantes do PCBR se reuniram na comunidade e marcharam até a Câmara de Vereadores, pressionando o legislativo municipal a acolher suas reivindicações e a rejeitar o projeto do governo Tarcísio. O PCBR, que atua politicamente no território desde meados do ano de 2023, esteve presente em todo o processo, sempre em contato com a Associação de Moradores e com os movimentos que orbitam essa luta.
No dia seguinte, 16 de abril, a tensão aumentou: dez viaturas da Polícia Militar e uma equipe da Companhia de Engenharia de Tráfego invadiram a favela e removeram os cones que bloqueiam o acesso principal — ação interpretada como medida coercitiva. A operação contou com sobrevoos constantes de helicópteros e presença ostensiva da ROTA, que cercou as residências de lideranças comunitárias em uma prática descrita por testemunhas como intimidação sistemática, reforçando o clima de medo e insegurança entre os moradores.
Em 18 de abril, o cenário se agravou. Por volta das 13h, segundo a Folha de S. Paulo, a Polícia Militar invadiu novamente a comunidade, ordenou o fechamento de comércios e utilizou spray de pimenta contra moradores. Em resposta, barricadas em chamas foram erguidas sobre os trilhos da CPTM, interrompendo a circulação de trens. Após negociação entre lideranças locais e a PM, os moradores concordaram em desobstruir a linha mediante o compromisso da retirada das forças policiais do entorno.
As mobilizações continuam. Nos dias seguintes, os moradores do Moinho voltaram às ruas em protesto contra a pressão estatal e em defesa de soluções habitacionais que respeitem sua história e suas necessidades. Reivindicar gratuidade não é privilégio, mas o reconhecimento de uma trajetória coletiva de resistência e pertencimento territorial, marcada pelo investimento de gerações de trabalhadores que ali construíram suas vidas. Como afirma uma carta da comunidade: “nossa presença é resistência” em um território historicamente atravessado pela expulsão sistemática dos trabalhadores pobres.
A luta da Favela do Moinho, no entanto, não é um caso isolado. Ela revela, de forma contundente, a precarização das condições de vida enfrentadas pelos segmentos mais vulneráveis da classe trabalhadora em um cenário onde a moradia é reduzida a mercadoria e a cidade se estrutura segundo a lógica seletiva e excludente do mercado imobiliário. A omissão sistemática do Estado em garantir o direito constitucional à moradia digna evidencia a contradição entre o que está previsto em lei e a realidade concreta dos territórios populares, onde esse direito permanece apenas como “palavras ao vento”. Diante desse quadro, é na organização coletiva, na ação política e na construção de um projeto de classe que se encontra a potência necessária para romper com a lógica da espoliação — reafirmando a moradia como um direito inalienável e reivindicando a cidade como espaço de reprodução da vida, e não do lucro.