Novas ameaças ao Líbano em pressão por desarmamento

Sob nova ofensiva israelense e pressionado por ultimato dos EUA, Líbano vive uma escalada militar que expõe a fragilidade do cessar-fogo. Mais de 300 baixas civis marcam o prelúdio de uma possível escalada, sob a justificativa de desarmamento do Hezbollah.

13 de Novembro de 2025 às 0h00

Soldado substitui a bandeira do Hezbollah pela do Líbano. Reprodução/Foto: Reuters.

O Líbano se encontra novamente sob intensa pressão militar imperialista, com a escalada de ataques aéreos israelenses e ultimatos sequenciais dos Estados Unidos para que o governo imponha o desarmamento do Hezbollah. Esta nova onda de agressões, que tem ceifado vidas e destruído infraestrutura, não é apenas uma retaliação, mas sim um prelúdio, conforme alertado por um oficial israelense ao Canal 12: os ataques diários são “apenas uma prévia do que está por vir” se Beirute não desarmar a resistência.

Desde o cessar-fogo assinado em novembro de 2024, que encerrou 66 dias de um conflito brutal, o Líbano tem sido palco de violações quase diárias. Mais de 300 pessoas foram mortas por ataques israelenses no período pós-cessar-fogo, incluindo civis e crianças. A escalada recente, com ataques descritos como os mais pesados desde o acordo, atingindo o sul e a região de Bekaa, demonstra que a “paz” é, na verdade, uma trégua frágil e unilateralmente desrespeitada.

Bombardeios israelenses intensos no sul do Líbano, 06 de novembro. Reprodução/Foto: AFP via Getty Images.

A ofensiva, entretanto, não é novidade. Em 30 de julho, a Reutersnoticiava que a posição oficial dos Estados Unidos era a de que as forças de ocupação israelenses não sairiam do território libanês até que o Hezbollah fosse desmantelado, como extensamente depreendido da postura do embaixador americano na Turquia e enviado especial dos EUA para a Síria, Thomas Barrack.

A atual continuidade dos ataques israelenses, que já mataram mais de 300 libaneses desde o cessar-fogo, expõe quão grave é a violação do acordo. No entanto, a postura americana tem histórico, e não é uma novidade do governo Trump. Em um evento promovido por uma think-tank sionista em Washington, o ex-embaixador israelense nos EUA, Michael Herzog confirmou a existência de “acordos paralelos” sigilosos com o governo dos EUA, sob a administração Biden, que garantiram a Israel a plena “liberdade de ação contra ameaças” no Líbano.

Essa admissão demonstra que a Casa Branca deu “luz verde” para que Israel continuasse a bombardear o Líbano, ignorando o suposto papel de “garantidor” da paz e do cessar-fogo que os EUA sob o governo Donald Trump propagandeia. A violação do acordo, portanto, não é apenas um excesso de Israel, mas uma política de intervenção imperialista coordenada com Washington, que permite a Tel Aviv manter sua ofensiva militar em múltiplas frentes sob o pretexto de desmantelar a estrutura do Hezbollah.

Reprodução/Foto: Getty Images.

A criação do Hezbollah está intrinsecamente ligada à invasão israelense do Líbano em 1982, uma ofensiva militar apoiada pelo imperialismo que catalisou profundas transformações políticas e sociais no sul do país e, especialmente, entre a comunidade xiita libanesa. O grupo, portanto, não surgiu como uma organização espontânea ou isolada, mas como uma resposta orgânica e estratégica à ocupação israelense e ao vácuo de poder e representação que afetava a comunidade xiita libanesa.

Antes da invasão, os xiitas libaneses eram uma comunidade historicamente marginalizada, tanto política quanto economicamente. Embora o movimento Amal representasse parte dos interesses xiitas, sua postura moderada, conciliadora, e sua disposição para negociar com o governo libanês e com Israel geravam insatisfação entre os setores mais politizados da sociedade civil libanesa, que via no colaboracionismo com a entidade sionista uma das causas do sofrimento do povo libanês e da comunidade muçulmana no país, especificamente.

A entrada das tropas israelenses em território libanês, com o objetivo de expulsar a OLP – que, à época, ainda não havia declinado à tática da luta armada nem aceitado a Resolução nº 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que legitima a “solução” de dois Estados – e estabelecer um governo títere em Beirute, intensificou esse sentimento de revolta. A invasão prolongada, os bombardeios e os abusos contra civis criaram um ambiente fértil para o surgimento de uma resistência disposta a combater com armas a ocupação.

Libaneses após os massacres de Sabra e Shatila, 1984. Reprodução/Foto: Bill Foley / AP.

O Hezbollah emergiu nesse contexto como uma coalizão de jovens clérigos, militantes adeptos do Islã político e estudantes influenciados pela Revolução Islâmica do Irã. O apoio iraniano foi decisivo: a Guarda Revolucionária estabeleceu presença no vale do Bekaa e forneceu treinamento, armas e orientação ideológica. O grupo não apenas adotou uma postura de resistência armada contra Israel, mas também articulou uma visão teológica baseada no modelo iraniano do governo islâmico, embora adaptado às realidades libanesas.

O manifesto de 1985, publicado anonimamente, é um marco na definição da identidade do grupo. Nele, o Hezbollah se apresenta como “a vanguarda de uma revolução islâmica” e declara sua lealdade ao aiatolá Ruhollah Khomeini, líder supremo do Irã. Um trecho emblemático afirma: “Somos filhos da Umma islâmica e seguidores da liderança sábia e justa do Imam Khomeini.” A declaração aponta não apenas a inspiração iraniana, mas também a estratégia de construir uma identidade libanesa segundo princípios do Islã. O manifesto também exige a expulsão das forças israelenses e francesas, e rejeita o sistema político sectário libanês, considerado corrupto e ilegítimo.

O Líbano adotava desde sua independência, em 1943, um sistema político herdado do tempo colonial francês conhecido como Pacto Nacional, um acordo informal entre líderes cristãos maronitas e muçulmanos sunitas, que estabeleceu a distribuição dos principais cargos do Estado segundo critérios confessionais: O presidente da república deveria ser um cristão maronita, o primeiro-ministro deveria ser muçulmano sunita e o presidente do parlamento deveria ser muçulmano xiita. As cadeiras no parlamento e nos altos cargos públicos seriam divididas proporcionalmente entre as confissões religiosas.

Com a reconfiguração demográfica, sobretudo após as diásporas árabes impostas pela Nakba e o ímpeto expansionista de Israel, os muçulmanos, principalmente os xiitas, passam a ser sub-representados politicamente pelo Pacto, e as contradições desse sistema político colonial ficavam mais aparentes, à medida que cristalizou desigualdades e marginalizações entre os grupos religiosos.

Hassan Nasrallah discursa no Líbano, 1990. Reprodução/Foto: Associated Press.

Nos primeiros anos, o Hezbollah operava de forma descentralizada, com células autônomas e forte clandestinidade. Contudo, com o tempo, o grupo passou por uma evolução estratégica, reconhecendo a possibilidade tática de atuar dentro do sistema político libanês e de conquistar legitimidade popular por meio da participação eleitoral.

A partir da década de 1990, o grupo começou a participar das eleições parlamentares, e, em 1992, concorreu pela primeira vez e obteve uma bancada significativa. Essa mudança não significou o abandono da resistência armada, mas sim a ampliação de sua atuação para incluir serviços sociais, educação, saúde e representação política.

A evolução política do Hezbollah também se refletiu em sua retórica. Embora o grupo mantivesse sua oposição a Israel e aos Estados Unidos, passou a enfatizar temas de governo, caros ao povo libanês, como as desigualdades, soberania nacional e defesa dos interesses dos oprimidos. A construção de uma rede de instituições paralelas como escolas, hospitais e cooperativas fortaleceu sua base popular e lhe conferiu legitimidade além do campo de batalha.

Durante os anos 2000, o Hezbollah se consolidou como um ator central na política libanesa, participando de coalizões governamentais e influenciando decisões estratégicas do Estado. A guerra de 2006 contra Israel, embora devastadora, reforçou sua imagem como força de resistência vitoriosa. Esse período foi um momento de reafirmação da dualidade do grupo: ao mesmo tempo partido político e milícia armada, capaz de operar tanto nas instituições quanto no campo militar.

No contexto da Operação Tempestade Al-Aqsa, o Hezbollah, na inércia dos esforços oficiais do governo libanês, foi protagonista na articulação regional na imposição de novos fronts à ocupação para lutar. O martírio de Hassan Nasrallah, líder carismático, estrategista político e símbolo da resistência armada libanesa, lamentado por todas as principais organizações palestinas no âmbito da luta contra a ocupação, foi precedido da intensa ofensiva internacional – capitaneada por Israel – pelo desmantelamento do grupo.

Reprodução: redes sociais.

O envolvimento dos EUA na atual ofensiva contra a resistência libanesa transcende o aval tácito aos bombardeios. O enviado especial norte-americano, Tom Barrack, em uma visita a Beirute, emitiu um ultimato: o Líbano tem “uma última chance” para entrar em negociações diretas com Israel e estabelecer um cronograma para o desarmamento do Hezbollah. A alternativa, segundo o relato, seria o abandono do Líbano à sua “sorte”, permitindo que Israel realize o desarmamento “pela força”.

Essa postura americana coloca o Líbano em uma posição impossível, num jogo de cartas marcadas no qual as opções são a guerra civil ou a invasão militar sionista. Por um lado, há a ameaça de engajamento direto com Israel, potência militarmente superior, mais bem armada e financiada e internacionalmente apoiada na região pelo eixo imperialista EUA-OTAN. Por outro lado, o risco de forçar o desarmamento de um ator político e militar que, para muitos libaneses, é a única força de dissuasão contra a agressão israelense empurra o governo libanês às suas contradições de classe. A pressão diplomática, apoiada pela ameaça militar de Israel, transforma a pauta do desarmamento em uma bomba relógio, um instrumento de coerção para a normalização e submissão política.

A campanha pelo desarmamento do Hezbollah, impulsionada por Israel e EUA, se apresenta como um entrave para a soberania e a reconstrução do Líbano. A ajuda internacional e os investimentos, inclusive de países do Golfo, têm sido condicionados à entrega das armas da resistência, enquanto o governo libanês cumpre um papel colaboracionista com Israel, conforme conduz operações de desarmamento nos campos de refugiados palestinos ao sul.

O Hezbollah, por sua vez, rejeita o desarmamento sob pressão, mas se diz aberto a discutir uma estratégia de defesa nacional que incorpore suas armas ao exército libanês, desde que Israel cesse os ataques e retire-se dos territórios ocupados. A resistência, inclusive, prepara um plano de reconstrução de US$ 3 bilhões para as áreas destruídas, contrastando com a inabilidade do governo e a chantagem da ajuda internacional.