Enchentes na Amazônia escancaram omissão do poder público
Com casas submersas e vidas ceifadas, a nova temporada de cheias em Porto Velho (RO), Manaus (AM) e Rio Branco (AC) expõe a repetição de tragédias anunciadas.

Baixo Madeira em Porto Velho (RO). Reprodução/Foto: Laércio Cavalcante / MAB.
As águas voltaram a subir na Amazônia, inundando comunidades, tirando vidas e escancarando a negligência do poder público. Em Porto Velho, o Rio Madeira alagou 29 comunidades; em Manaus, as cheias causaram mortes; no Acre, mesmo com o nível atual do Rio Acre abaixo da cota de alerta, os efeitos da enchente de março ainda deixam rastros de destruição. Técnicos já mapearam os riscos, mas ano após ano, o roteiro se repete — não por acaso natural, mas por um projeto político que transforma a omissão em lucro e condena populações inteiras ao abandono.
O Serviço Geológico do Brasil (SGB) anunciou em março, que Manaus, Manacapuru, Itacoatiara e Parintins (AM) enfrentariam novas inundações, e na mesma situação já se encontrava famílias em Rio Branco e Porto Velho. O alerta técnico prevê cheias com 75 dias de antecedência, mas mesmo assim as prefeituras e governos não agem previamente e quem paga são os ribeirinhos e trabalhadores da cidade. Sempre é a mesma história, o estado não age, o rio transborda e o pobre perde tudo.
No ano passado, os rios Amazonas, Madeira e Acre registraram níveis críticos durante uma seca histórica — contraste que evidencia o avanço da crise climática, marcada por extremos cada vez mais frequentes.
Porto Velho
Em Porto Velho (RO), o Rio Madeira chegou a 16,73 metros em abril e alagou 29 comunidades. A culpa não é só da chuva. Barragens como a de Samuel, construída nos anos 1980 sob a promessa de “desenvolvimento”, alteraram o curso natural das águas. O represamento desregula o fluxo dos rios, amplifica as cheias e sufoca a vida ribeirinha. Moradores relatam que antes da construção da barragem, o rio subia e descia naturalmente. Na comunidade Terra Firme, famílias passaram semanas retirando água com baldes. Enquanto isso, crianças brincam em ruas alagadas, cercadas por lixo e fezes. Há denúncias de que caminhões-pipa só aparecem para distribuir água quando há câmeras filmando.
Enquanto o governo de Rondônia culpa a burocracia, famílias do Baixo Madeira seguem cozinhando arroz com água do rio. Nas comunidades de Calama, Demarcação e Rio Preto, o avanço das águas destruiu roçados, isolou casas e deixou moradores à própria sorte — sem kits emergenciais, alimentos ou medicamentos. “Nem um saco de farinha mandaram”, denuncia Marivani Reis, coordenadora do Movimento de Mulheres Ribeirinhas, em entrevista ao Rondônia Plural. O impasse? Uma disputa entre a prefeitura de Porto Velho e o dono de uma embarcação sobre os custos do transporte.
Em contrapartida, as verbas prometidas pelo Estado nunca se concretizam. “Dizem que a ajuda tá na SEAS, mas aqui só vem mosquito e fome”, relata uma moradora de palafita, que usa trapos para conter a água que invade sua casa. Na prática, o socorro virou mais uma promessa vazia.
Rio Branco
Mesmo com o Rio Acre em Rio Branco registrando 9,13 metros em 10 de abril (abaixo da cota de alerta de 13,50 m), os estragos da enchente de março, quando o rio ultrapassou o nível crítico, ainda trarão consequências por meses devido a omissão do governo. Naquele período, mais de 300 mil pessoas ficaram sem água potável por 11 dias após o colapso das estações de tratamento (ETA I e II), que não recebiam manutenção regularmente.
Em dezembro de 2024, diante do risco de um novo desabamento na Estação de Tratamento de Água I (ETA I), a Defesa Civil Municipal havia recomendado que a prefeitura decretasse emergência.
As duas únicas estações de tratamento pararam devido à forte correnteza, deixando comunidades inteiras sem acesso à água potável. Moradores denunciam que precisaram improvisar poços artesanais para sobreviver. Nas escolas, as aulas foram canceladas; nos postos de saúde, filas se formaram por suspeitas de leptospirose. Diante do colapso, a única resposta do governo do Acre foi decretar estado de emergência — uma medida que, na prática, não levou comida, remédio nem ajuda para reconstruir as casas destruídas.
Em meio à falta de água que ainda persiste de forma recorrente, a prefeitura do bolsonarista Tião Bocalom (PL), anunciou um novo aumento na conta d’água. Para maio, o Serviço de Água e Esgoto (Saerb), confirmou um reajuste de 4,76% na tarifa: 2,38% aplicado já em maio e mais 2,38% previsto para junho. O valor mínimo, que era de R$37,50, passará para R$38,37. A justificativa? “Manter a qualidade do serviço” após o colapso das estações de tratamento, desligadas durante a enchente. Enquanto isso, são os moradores que pagam pelo prejuízo, improvisando o acesso à água e lidando com os impactos da crise. A prefeitura anunciou que pretende investir R$9 milhões na ETA I — promessa que, até agora, não saiu do papel.
Manaus
Em Manaus as enchentes levaram vidas e alagaram as principais avenidas. No bairro Cidade Nova, zona Norte, um deslizamento matou Sammya Maciel, líder comunitária conhecida como "mãe da Favela Fazendinha", ocorrendo em uma área já mapeada como de alto risco desde 2019. Sammya foi soterrada tentando salvar vizinhos, incluindo uma criança. Moradores denunciam que há 10 anos alertavam sobre rachaduras e infiltrações no barranco, mas a prefeitura nunca instalou contenções ou realocou famílias.
A prefeitura culpa "construções irregulares", mas ignora que 52 mil imóveis na cidade estão em áreas de risco, 17 mil só na zona Leste, onde o poder público ergueu até sede de secretaria em local propenso a alagamentos.
Mais que chuva: enchentes revelam abandono planejado
Após as enchentes, os discursos oficiais se multiplicaram em promessas de reconstrução. No entanto, na prática, o poder público tem atuado mais como agravante da crise do que como agente de solução. A falta de planejamento urbano, a negligência diante de alerta técnicos e os investimentos em infraestrutura voltados ao transporte de commodities, como a soja, em detrimento das necessidades da população, evidenciam a inversão de prioridades.
Não se trata de um desastre natural isolado, mas de um projeto político estruturado. Mesmo com os alertas emitidos com 75 dias de antecedência pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB), as ações do Estado se limitaram à criação de abrigos provisórios e ao envio pontual de caminhões-pipa. Para a população atingida, restam as canoas improvisadas, as casas de parentes superlotadas e a espera de que as águas baixem.
O norte sofre com alagações enquanto governos lavam as mãos
Além dos efeitos da crise climática, que torna as chuvas intensas e rápidas cada vez mais destrutivas, o cenário se agrava com a negligência de prefeituras, governos estaduais e federais, que seguem sem qualquer planejamento eficaz para mitigar os impactos. Falta investimento em ações básicas, como a revitalização de córregos e igarapés, construção de moradias em áreas seguras, sistemas de drenagem e coleta de lixo.
O poder público, por sua vez, prioriza obras inúteis e desconectadas da realidade das comunidades, enquanto ignora as pautas da classe trabalhadora. Mesmo em cidades amazônicas, a preservação das áreas verdes — uma das principais formas de conter alagamentos e enchentes — é negligenciada, com o desmatamento avançando sobre os ecossistemas urbanos.
A política de austeridade fiscal inviabiliza medidas preventivas, e ainda assim, os gastos com reconstrução após tragédias têm sido, nos últimos anos, até sete vezes maiores do que os investimentos em prevenção. Especialistas apontam que ações reativas não bastam: é necessário um compromisso real com a preservação ambiental, a justiça climática e o fortalecimento de políticas públicas estruturantes. Isso, no entanto, é incompatível com o novo teto de gastos do governo Lula-Alckmin e com o capitalismo baseado na exaustão da natureza e na superexploração dos trabalhadores.
Crise climática
Vale lembrar que, no ano passado, esses mesmos rios enfrentaram uma seca histórica. Durante a estiagem, os principais rios amazônicos — como Amazonas, Madeira, Purus e Acre — registraram níveis críticos. O Rio Negro, afluente do Rio Amazonas, atingiu o ponto mais baixo dos últimos 120 anos. No Acre, a seca severa afetou diretamente o Rio Purus e seus afluentes, como os rios Acre e Iaco, impactando metade da população do estado. Em Rondônia, o Rio Madeira teve o menor nível registrado em quase seis décadas.
O fenômeno El Niño agravou a estiagem, mas fatores como o desmatamento, a construção de hidrelétricas e a mineração contribuíram para aprofundar a crise. A alternância entre enchentes extremas e secas prolongadas é mais um reflexo da crise climática em curso, marcada por eventos cada vez mais severos e frequentes.