A contradição das Energias Limpas e o potencial perdido da Caatinga
Resultados de 4 estudos demonstram que a Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, é capaz de capturar grandes quantidades de gases do efeito estufa. Mas tanto o bioma quanto a população vêm sofrendo com os impactos de empreendimentos de energias renováveis.

Foto de placas fotovoltaicas em primeiro plano e cataventos de usina eólica em segundo plano. Reprodução/Foto: Ulgo Oliveira.
Dissemina-se no discurso midiático, governamental e em setores da direita não negacionista a ideia de que a crise climática pode ser resolvida com o simples desenvolvimento de tecnologias de energia renovável. No entanto, superar essa visão requer entender que, por um lado, toda fonte energética gera impactos - diretos ou indiretos, como os efeitos rebote - e, por outro, a mera busca por eficiência se mostra insuficiente quando as soluções permanecem atreladas a uma lógica produtivista e lucrativa, que é um dos pilares do problema.
Embora as emissões de gases do efeito estufa sejam as principais responsáveis pelas mudanças climáticas em escala global, seu perfil varia conforme a região. Diferentemente dos países do Norte global, o Brasil tem suas emissões majoritariamente ligadas ao desmatamento, às queimadas e ao avanço da agropecuária – atividades que, combinadas, respondem por 70% do total nacional, seja pela liberação de carbono do solo ou pelas emissões de metano. Para além desse cenário já conhecido, um novo vetor de impacto ganha força: a expansão da infraestrutura para energias renováveis. A instalação de parques eólicos e usinas fotovoltaicas na Caatinga, dominada por empresas multinacionais, têm alterado as condições ambientais da região de forma severa.
A reportagem de Afonso Bezerra, publicada no Brasil de Fato, sintetiza quatro estudos científicos que revelam a extraordinária eficácia da Caatinga no sequestro de carbono, colocando-a como um bioma crucial no equilíbrio climático brasileiro. O primeiro estudo, da UNESP (Universidade Estadual Paulista), demonstra que a Caatinga é responsável pela captura de 50% de todo o gás carbônico do país - desempenho superior até mesmo ao da Floresta Amazônica -, com maior eficiência durante os períodos chuvosos.
Essa característica é confirmada pelo segundo estudo (Costa & La Scala Jr., 2015-2022), que atribui o diferencial da Caatinga à sua "forte resposta ao aumento da disponibilidade de água". O terceiro, ainda em fase de conclusão na UEFS, já corrobora esse comportamento, enquanto o quarto, do Observatório da Caatinga (UFCG), conclui que a preservação do bioma é fundamental para assegurar processos naturais essenciais, como a oferta de água, a regulação do clima e o sequestro de carbono, uma vez que "áreas preservadas da vegetação conseguem devolver mais vapor de água para a atmosfera e capturar mais gás carbônico".
A pesquisadora Moema Hofstaetter, do Observatório da Energia Eólica da UFC, quantifica essa capacidade: aproximadamente 2,5 toneladas de carbono por hectare/ano, mesmo na estiagem. No entanto, é fundamental destacar que essa capacidade de armazenar carbono é um serviço ecossistêmico inestimável, e não uma mercadoria a ser comercializada em mercados de crédito. Apesar de sua importância, menos da metade da extensão do bioma está protegida por lei.
Nesta toada, constata-se que a Caatinga é o bioma mais desmatado do Brasil em termos percentuais. Dados do MapBiomas mostram que, nos últimos 40 anos, ele perdeu 9,25 milhões de hectares, o que equivale a aproximadamente 10% de sua área total. Essa devastação acelerada não apenas ameaça os serviços ecossistêmicos únicos que o bioma presta, como coloca em risco a própria capacidade do país de cumprir suas metas climáticas.
Os impactos ambientais dessa expansão são profundos. A instalação de uma usina solar exige não apenas o desmatamento, mas também o envenenamento do solo para impedir o rebrotamento da vegetação, o que contamina as nascentes. O professor Washington Rocha alerta que a exposição do solo, num bioma de chuvas irregulares, acelera a desertificação. A fauna sofre diretamente: espécies nativas são espantadas, desequilibrando a dinâmica ecológica, e aves são vítimas do "efeito lago", confundindo os painéis com água, colidindo contra eles e sofrendo queimaduras graves.
Para além dos danos ambientais, os impactos sociais são severos. Carlos Magno, do Centro Sabiá, relata adoecimento e assédio financeiro em comunidades próximas a parques eólicos, onde contratos abusivos são impostos sem consulta livre, prévia e informada. A "Síndrome da Turbina Eólica", estudada pela Fiocruz e UPE em 2023, afeta a saúde mental de 70% dos moradores entrevistados, que desejam se mudar devido a insônia, irritabilidade, dores de cabeça e ansiedade provocadas pelo ruído e infrassons. Dados mostram que 66% fazem uso de medicamentos para dormir, 54% relatam perda auditiva e 41% sofrem com alergias e dermatites causadas pela poeira das hélices. Até os animais ficam inquietos. Como resume a pesquisadora Moema Hofstaetter, "o discurso é de progresso, de energia limpa, mas o resultado é perda de biodiversidade, perda de modos de vida, de cultura, de água, de comida".
A contradição atinge até a lógica operacional do sistema. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) desliga parques solares no pico de produção (entre 10h e 16h) por excesso de oferta e falta de demanda. No entanto, por volta das 18h, quando a população demanda mais energia, as termelétricas que são altamente poluentes precisam ser acionadas. Esse desperdício de energia limpa, que poderia ser armazenada, evidencia um planejamento irracional.
Enquanto a Absolar defende a energia solar como essencial para a transição energética e a redução de emissões, a realidade é de aumento do desmatamento. Seu argumento de alívio sobre os recursos hídricos é parcialmente válido, mas é minado pelo lobby de Data Centers, que demandam quantidades exorbitantes de energia e água para operar.
Todas essas contradições comprovam que o capitalismo verde é uma falácia. Energia é desperdiçada, biomas são destruídos, comunidades são adoecidas e, paradoxalmente, as empresas solares ainda pretendem cobrar do governo e consequentemente dos trabalhadores, via tarifas pelo tempo que ficam inoperantes. Fica claro, portanto, que não há transição energética genuína dentro da lógica do capitalismo. A verdadeira solução para a crise climática exige não apenas mudar a fonte da energia, mas transformar radicalmente o sistema econômico que explora pessoas e natureza em nome do lucro, demonstrando que não existe transição energética sem o fim do capitalismo.