A obra do escritor comunista Dalcídio Jurandir (1909-1979) é declarada patrimônio cultural imaterial do Pará
Apesar do reconhecimento institucional do “Romancista da Amazônia”, a maioria dos livros do autor estão fora de circulação. O governo de Barbalho não prevê qualquer medida para valorizar a obra, consolidando suas ações higienizadas em meio ao desmonte das políticas culturais do Estado.

Por Teylor Lourival
Dalcídio Ramos Pereira nasceu em janeiro de 1909 e passou sua infância na Vila Cachoeira, hoje município de Cachoeira do Arari – onde a população cobra a construção de uma casa-museu do escritor, já que a cidade inspira o nome de seu primeiro romance –, localizado na Ilha do Marajó. Filho de pai intelectual e branco, aprendeu a ler com a mãe, negra, ainda em Cachoeira, e ao mudarem-se todos para a capital paraense onde Dalcídio passou a estudar e se destacar nas escolas e liceus.
Não sem miséria e dificuldades, viveu o restante da vida adulta entre a Ilha de Marajó, Belém e Rio de Janeiro, exercendo principalmente o ofício da palavra. Foi na então capital federal que conheceu o Partido Comunista Brasileiro, e com ele foi preso duas vezes na década de 1930 por conta de sua militância política na Aliança Nacional Libertadora. Esteve presente, aliás, como orador no primeiro comício da ANL na capital paraense, em 1936. Dirigente partidário até, pelo menos, os anos cinquenta, foi enviado para a União Soviética junto a uma delegação especial de operários e intelectuais em 1952 e produziu nesta viagem um extenso diário de relatos e impressões das diferenças entre o Brasil capitalista e a URSS socialista. Foi também ao Chile em 1953, onde participou do Congresso Continental de Cultura, sendo este apenas um exemplo do que Dalcídio construiu durante toda a vida, tais entidades de classe e eventos como congressos de escritores, federações de artistas, associações culturais, entre outras.
Diferente de diversos outros escritores, Dalcídio, o “Romancista da Amazônia”, não teve um florescer, um ápice e um declínio em sua literatura, mas sim uma consistência que ao longo de cinco décadas de escrita ininterrupta pariu muito mais do que os seus dez principais romances que compõem o “Ciclo do Extremo-Norte”. É também autor de crônicas, contos, romances operários, ensaios críticos e filosóficos, peças jornalísticas e inúmeros materiais de formulação política e de agitação e propaganda em sua militância no PCB, onde transparecia de forma nítida sua erudição e internacionalismo, dominando autores literários e políticos de diversas partes do mundo, sabendo com maestria analisar o imperialismo, vinculando a solidariedade às principais lutas globais à realidade de quem o lia no Brasil.
Sua obra de estreia, “Chove nos campos de Cachoeira” (1941), considerado o primeiro romance amazônico moderno, já estava finalizado há mais de dez anos quando conseguiu ser publicado após vencer em primeiro lugar um concurso literário nacional com votos de Oswald de Andrade e Rachel de Queiroz, sendo imediatamente um sucesso de público e crítica. Obras como “Três casas e um rio” (1958), “Belém do Grão-Pará” (1960) e “Ribanceira” (1978), compõem o “Ciclo do Extremo-Norte”, denominação do próprio autor para sua série de dez romances que apresentam um personagem heróico, Alfredo – que não está presente apenas em “Marajó” (1947), a terceira obra da série –, um menino de 10 anos, fruto da realidade amazônica, que navega nas águas literais e figuradas desta, interagindo com dramas característicos da formação social da região, provocando reflexões tão específicas quanto universais, traduzindo na literatura a realidade do Pará e tocando nas questões da alma humana.
Ainda que as obras deste ciclo sejam inteiramente ambientadas neste espaço, sua literatura passa ao largo de ser regionalista, conforme aponta a pesquisadora Alinnie Santos (UFPA), ressaltando o papel da natureza e dos dramas dos sujeitos que habitam a Amazônia na construção da obra do autor, sem escantear seu caráter mais amplo:
“Dalcídio é regional porque sua obra é ambientada na Amazônia? Toda a obra de Machado de Assis é ambientada no Rio de Janeiro e ninguém ousa chamá-lo de regional. Mas o Dalcídio, por estar numa região periférica e ter seus romances ambientados nesta região, é visto como regional. Mas ele “imprime a verdade regional na amplitude universal”. Os dramas dos personagens podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo (...), mas se ele está aqui recriando a realidade amazônica na literatura, então mesmo com a amplitude universal, os rios, a natureza e a Amazônia estão presentes na sua ambientação, seus enredos e narrativas.”
Dalcídio Jurandir, um homem negro que recebeu a alcunha racista de “índio sutil”, já era reconhecidamente o maior escritor da Amazônia quando recebeu em 1972, sete anos antes de morrer, das mãos de Jorge Amado – que o apadrinhou e acompanhou no grande circuito literário desde a década de 40, junto de Graciliano Ramos e Cândido Portinari, com quem se correspondia frequentemente – o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, à época a maior honraria da entidade. Ainda que se possa dizer que, apesar das premiações, por diferentes motivos Dalcídio tenha ficado à margem da torre de marfim da literatura brasileira, sua obra não fica à sombra de quaisquer escritores brancos e liberais com quem compartilhou época e sua “literatura amazônica” não perde em nada para a escrita citadina de seus contemporâneos. Diz o próprio Dalcídio, sobre sua obra, em 1960:
“Todo meu romance distribuído em 10 volumes é feito da maior parte da gente mais comum. Tão ninguém é a minha criatura, da grande Marajó, ilhas e baixo Amazonas. Fui menino de beira de rio, do meio do campo, banhista de igarapé. Passei a juventude no subúrbio de Belém entre amigos, nunca intelectuais, nos salões da melhor linhagem que são os clubinhos de estivadores e gente das oficinas, das doces e bravinhas namoradas que trabalhavam na fábrica. Sempre fiz questão de não arredar pé da minha origem, e para enterrar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. A esse pessoal miúdo que tento representar em meus romances, chamo de Aristocracia de Pé no Chão”

Dalcídio recebe de Jorge Amado o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 1972. Foto: Reprodução.
Apesar da importância deste tardio reconhecimento institucional da obra de Dalcídio, a maioria dos livros do autor seguem fora de circulação ou têm suas edições históricas vendidas a peso de ouro. O presidente da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir, seu neto, Roberto Gomory, em entrevista exclusiva ao jornal O Futuro, relata que nos últimos trinta anos houve tentativas contratuais com diferentes editoras e algumas poucas novas edições foram feitas, ainda muito aquém da envergadura da obra e do autor. Em 2004, foi firmada uma parceria com a Casa de Rui Barbosa – que detém hoje o acervo documental do escritor –, mas em grande medida isso fez com que a obra de Dalcídio ficasse restrita a círculos universitários.
Em primeira mão para o nosso jornal, Roberto afirma que há uma parceria em andamento com a Imprensa Oficial do Estado do Pará para republicar localmente todo o Ciclo do Extremo-Norte, em edições históricas e trabalhadas com esmero. Sendo assim, até o primeiro semestre de 2026, o público-leitor paraense poderá ter, após algumas décadas, uma grande adição às suas coleções.
Entretanto, para o próximo período, a tarefa principal da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir é mais ambiciosa: levar o conjunto da obra de Dalcídio para editoras que sejam capazes de sustentar a demanda de distribuição a nível nacional e internacional. É necessário, então, que a obra de Dalcídio esteja nas prateleiras, nas grandes livrarias, nos centros urbanos, no Programa Nacional do Livro Didático, sob o trabalho de uma editora que seja capaz de furar as bolhas universitária e regional, numa empreitada que faça jus ao legado literário de Dalcídio, conforme aponta Roberto.
Entretanto, no âmbito estadual, a despeito de tentativas esparsas e diálogos incipientes realizados com a família do autor, o governo do Estado do Pará e, atualmente, de Helder Barbalho (MDB), não parece ser capaz de dar consequência a este resgate histórico e não prevê qualquer medida objetiva para valorização da obra do escritor, consolidando uma série de ações higienizadas e insuficientes em meio ao desmonte das políticas culturais do Estado.
A demagogia de Helder Barbalho
Em todos os campos de seu governo, Helder Barbalho trabalha para realizar ações buscando deixar algum legado para Belém após a realização da COP-30 neste município, em novembro de 2025. Naturalmente, a classe trabalhadora não pode esperar nenhuma melhoria em suas condições de vida a partir dessas obras megalomaníacas e dessas medidas de fachada que visam apenas deixar uma boa impressão na burguesia internacional que estará com os olhos voltados para o extremo norte do Brasil.
No campo da cultura, as palavras bonitas do governador Helder em seus pitorescos vídeos nas redes sociais estão ligadas a um movimento institucional vazio de “reconhecimento artístico e cultural”, sem qualquer lastro político ou material para possibilitar ações efetivas de valorização ou execução cultural. Desde 2024, o governo Helder assinou decretos e sancionou PLs que reconheciam como patrimônios culturais e imateriais do Estado do Pará, o Festival das Tribos Indígenas de Juruti “Festribal”, o Bloco Recreativo Carnavalesco Líbero-Musical e Antifóbico “Império Romano”, a cantora Fafá de Belém e a Basílica-Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, além do PL mais recente que elevou a este mesmo patamar a obra de Dalcídio Jurandir.
Como outras “medidas culturais”, o governador se prestou, pessoalmente, ao papel populista de anunciar em suas redes sociais diretamente do Rock in Rio ou do show da banda Coldplay, a realização de megaeventos e mega-festivais em Belém, que virão com tudo que têm direito, de preços abusivos a trabalho análogo à escravidão. Toda a rotina do governador e cada uma destas medidas é fielmente anunciada de forma gloriosa pelo “O Liberal”, jornaleco local responsável pela retaguarda do clã de Barbalho.
Entretanto, ainda que instituir no legislativo o reconhecimento dos patrimônios culturais paraenses seja importante, estas medidas não encontram qualquer indicativo para serem executadas ou fortalecidas. Não há qualquer previsão orçamentária ou plano de investimento público para museus nestas localidades, casas de cultura ou mesmo repasse direto de verbas às iniciativas contempladas com a honraria. Antes pelo contrário, não há sequer indicativo programático ou um calendário para execução cultural a partir da aprovação dos PLs.

Reprodução/Foto: Portal Olavo Dutra.
Esta legislação vazia de Barbalho é interessante para publicar em sua imprensa particular, mas a realidade não falha: apenas três meses depois de declarar o Festival das Tribos Indígenas de Juruti como patrimônio cultural imaterial do Pará, o governo Helder já estava em combate político aberto com centenas de indígenas acampados em frente à Secretaria da Educação no início deste ano contra ataques de seu governo aos povos originários. A demagogia do clã Barbalho não se sustenta quando ele coloca de fora as suas garras e desfere ataques aos servidores, aos povos indígenas e à classe trabalhadora do Estado do Pará.
A verdadeira face do Governo Barbalho na Cultura
No fim de 2024, dois Projetos de Lei foram desenhados pelos aliados do governo para serem votados na Assembleia Legislativa do Pará, o PL 701 e o PL 729, que extinguiriam nada menos que dez secretarias, como a Secretaria da Mulher, a Secretaria da Igualdade Racial e, também, dissolveriam a Fundação Cultural do Pará (FCP) e a Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa), promovendo uma reforma administrativa para desconfigurar a governança, cortar investimentos públicos e abrir espaço para a burguesia abocanhar sua fatia de lucro em cima da privatização e precarização destes serviços.
À época, os PLs vieram junto com uma onda de medidas absurdas de Barbalho no campo da educação, que receberam em conjunto ampla resistência dos servidores de diversas categorias e da população paraense. Vitor Gemaque, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Pará (Sinjor-PA), destaca como os projetos de lei foram desenhados para “destruir de uma vez só os aparelhos de cultura, de comunicação e educação em um projeto neoliberal e antipopular”.

Reprodução/Foto: Bruna Taketa/Amazônia Real.
Após intensa mobilização em frente à ALEPA, o governador anunciou a extinção dos PLs e recuou num covarde e simples vídeo nas redes sociais, como lhe é característico, onde afirmava seu demagógico compromisso com a cultura e seus fazedores, dando louros à sua fiel-escudeira no campo da cultura, a secretária Ursula Vidal, pelas supostas conquistas já alcançadas.
A jornalista Ursula Vidal, atual secretária de cultura, tem a peculiar característica de assumir e ser exonerada do cargo em um vai e vem há quatro anos. A cada eleição, para se candidatar, é exonerada. Como não se elege, volta ao cargo. A cada oscilação política ou manobra do clã de Helder Barbalho, Ursula é realocada como assessora especial em algum gabinete ou nomeada em outro cargo público, o qual exerce por alguns meses e então reassume a Secretaria de Cultura bradando seu compromisso com a pasta, que nitidamente fica deixada de lado cada nova necessidade da política da burguesia tocada pelo governo.
Segundo Ursula, hoje o Pará é “o Estado que mais cresceu no acesso à Lei Rouanet, (...) mais de 270%, saindo de 14 milhões para 55 milhões” e no “O Liberal” ela também faz questão de declarar os valores astronômicos investidos no Estado através da Política Nacional Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo, programas de fomentos à cultura que, segundo ela, somam cerca de 160 milhões no Pará.
Sabemos, contudo, que os mecanismos que constituem a Lei Rouanet desvalorizam o trabalhador e a trabalhadora da cultura, marginalizam e precarizam seu trabalho, despolitizam sua criação e atendem à lógica do lucro. Ao priorizar as parcerias privadas de grandes empresas com grandes artistas e festivais, estes instrumentos nada mais são do que meios de isenção fiscal da burguesia sob o pretexto de fomento cultural, e se “quem paga a banda escolhe a música”, dar na mão do setor privado o direcionamento de verbas para a cultura fortalece apenas a mercantilização da arte e os oligopólios da indústria de eventos.
Se não bastasse, os trabalhadores e trabalhadoras de cultura do Pará, que deveriam ter acesso às verbas desde 2024 para que estes montantes declarados pela secretária circulassem efetivamente nas mãos de seus fazedores e na cadeia econômica do Estado, relatam diversos problemas com a liberação das verbas e falta de transparência nos editais, com excesso de burocratização para dificultar o repasse do dinheiro e punir agentes culturais não-profissionalizados.
Pela verdadeira Memória de Dalcídio Jurandir
O governo Barbalho não está interessado em promover a obra de Dalcídio Jurandir de forma real, sólida, em sua inteireza, nem está interessado em promover quaisquer patrimônios culturais imateriais que tenham consagrado nos últimos meses. Não houve e não haverá quaisquer iniciativas sólidas por parte desse governo burguês que não somente honrem a memória desses fazedores e fazedoras de cultura, mas que objetivamente concretizem a difusão de sua produção, o resgate e a disseminação de suas obras para além da lógica da mercadoria e do lucro.
O caso de Dalcídio é dramático. O Estado do Pará, além de ter alterado o nome da grande avenida na capital que homenageava o escritor, se apropria de seu nome e de sua obra para diversos fins sem qualquer contrapartida financeira de direitos autorais ou consulta à família, que detém o direito sobre sua obra, acervo e patrimônio material e imaterial. O Estado ganha financeira e politicamente ao elevar o nome de Dalcídio, mas não cumpre à altura a tarefa de resgate de sua obra.
O governo Barbalho quer escalar nos ombros de artistas gigantes que o Estado do Pará produziu, para, de lá de cima, higienizá-los, ordenar ataques aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura e agradar os senhores da agenda imperialista na COP-30. Pois saibam, desde já, que não irão esconder o Dalcídio comunista, que escreveu sobre Lenin e Stalin, que escreveu “Linha do Parque”, um romance operário sobre as greves portuárias no Rio Grande do Sul, que rasgou os rios paraenses com as palavras e desaguou em páginas de todo o mundo. E reconheçam, em alto e bom som, que o Romancista da Amazônia é um revolucionário.