Aracaju aprova "intervalos bíblicos" nas escolas em movimento nacional de intervenção religiosa

O que a lei faz, na verdade, é abrir caminho para que instituições religiosas (em sua maioria evangélicas) tenham espaço garantido para adentrar os espaços educacionais, levando intervalos bíblicos e momentos de intervenção ou estudo religioso para o ambiente escolar.

17 de Setembro de 2025 às 15h00

Foto de 2024. Líderes de diversas denominações evangélicas e entidades eclesiásticas lotaram auditório em apoio à, na época, pré-candidata à prefeita da capital.

Por Fábio David

Silenciosamente, a prefeita de Aracaju aprovou o projeto de lei que institui "intervalos bíblicos" e, consequentemente, o proselitismo religioso dentro das escolas municipais. A medida foi apresentada no Diário Oficial do Município no dia 7 de agosto, e assinada pelo secretário municipal de Governo, o pastor e esposo da prefeita, Itamar Bezerra, e também pela secretária de Educação, Edna Amorim.

A Lei modificada nº 6.175/2025, de autoria do vereador Pastor Diego (UNIÃO), dispõe sobre a "garantia da liberdade de reunião religiosa entre alunos durante o intervalo escolar nas instituições de ensino do município de Aracaju". Esse discurso, no entanto, já é garantido constitucionalmente, caso a reunião seja estimulada pelos próprios alunos de forma natural ou espontânea. O que a lei faz, na verdade, é abrir caminho para que instituições religiosas (em sua maioria evangélicas) tenham espaço garantido para adentrar os espaços educacionais, levando intervalos bíblicos e momentos de intervenção ou estudo religioso para o ambiente escolar.

Isso se materializa quando a justificativa de "convívio pacífico entre as crenças", dada pelos propagadores da lei, não ouviu nem obteve outras opiniões e interpretações sobre a medida, que foi sancionada sem nenhuma discussão com professores ou membros da comunidade escolar e nem com o Conselho Municipal de Participação e Promoção da Igualdade Racial (Comppir), favorável ao veto integral do projeto e que produziu um parecer jurídico expondo que a ação ultrapassa a liberdade individual e cria uma parcialidade religiosa em um ambiente que deveria ser neutro e plural.

Elisângela dos Santos, líder do Comppir, confirmou o envio do parecer ao Ministério Público e que o projeto em questão fere as diretrizes da Educação e a função social das escolas, além de ofender o princípio de laicidade e neutralidade do Estado.

Permitir a realização de encontros religiosos institucionalizados nos intervalos escolares, na avaliação do jurista responsável pelo parecer, poderia abrir espaço para o proselitismo religioso, proibido pela LDB, e criar situações de constrangimento, preconceito ou coerção indireta sobre estudantes que não compartilham das mesmas crenças, visto que também estarão presentes no mesmo ambiente.

Além disso, existe um processo de "adultização precoce" relatado no documento, já que dentro do espaço estudantil que, durante os intervalos, deveria promover atividades de lazer, descontração e descanso garantidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, estaria promovendo ações do universo adulto.

Concomitantemente, o parecer afirma que o projeto pode ferir a autonomia pedagógica, devido ao favorecimento indireto de religiões que já são hegemônicas na cidade, em detrimento de religiões de matriz africana, que são historicamente perseguidas e difamadas em todo o país. Afirma também que alunos que pertencem a essas crenças, como o candomblé, a umbanda e outras, poderão se sentir constrangidos e deslocados quando inseridos nessa dinâmica promovida pela lei, provocando grandes riscos de preconceito ou racismo religioso que afetarão o cotidiano e o convívio social desses jovens.

Sobre quem propôs a lei

Pastor Diego em sessão na câmara municipal de Aracaju (CMA). Reprodução/Foto: Gilton Rosas.

Pastor Diego (UNIÃO) é vereador e vice-presidente da Câmara Municipal de Aracaju desde 2024. Ele se coloca como um bolsonarista e defensor assíduo da valorização e propagação irrestrita dos valores cristãos. No dia da aprovação do projeto de intervenções religiosas em intervalos escolares, o parlamentar produziu um vídeo de comemoração e, na legenda, declarou: “Com nosso projeto aprovado, você pode orar, ler a Bíblia e manifestar sua crença sem medo de constrangimento ou impedimento por parte da escola ou de qualquer órgão público.” Essa declaração, no entanto, disfarça a verdadeira motivação do projeto, classificando-o apenas como uma "liberdade de manifestação de crença" nas escolas.

Por outro lado, o vereador também foi fortemente crítico aos desfiles de 7 de setembro ocorridos na Avenida Barão de Maruim, dentro da capital Sergipana. Em sessão da CMA, ele fez menção a um desfile que utilizou uma música de Lady Gaga e afirmou que o momento não deveria ser um espaço para a expressão cultural ampla e criativa, mas sim apenas para valorizar a moralidade conservadora e supostos símbolos nacionais e regionais.

Momentos como o desfile cívico, que anualmente se tornaram palcos de demonstração criativa de diversos grupos e escolas — muitas vezes coordenados por membros da comunidade LGBTQIA + —, trouxeram apresentações que diversificaram e expandiram a pluralidade cultural e apresentativa da data. Essa criatividade, segundo o vereador, deve ser controlada, censurada e produzida em outras datas específicas.

Publicação feita na rede social do vereador Pastor Diego sobre o 7 de setembro. Reprodução: Redes sociais.

Tendência de intervalos bíblicos pelo Brasil

Segundo pesquisa produzida pela UOL, vereadores em cerca de 13 capitais brasileiras colocaram em debate a necessidade de uma influência religiosa (quase sempre evangélica) nas escolas, seja por meio de "intervalos bíblicos" ou pela possibilidade de usar a Bíblia como material de apoio. Uma lei com esse teor, inclusive, foi aprovada em abril na cidade de Belo Horizonte.

Segundo a autora do projeto, Flávia Borja (DC/MG), o tema surgiu porque “a Bíblia é o livro mais lido, mais vendido e mais publicado em todo o mundo". A vereadora nega que a lei seja inconstitucional, baseando-se em um dos artigos que diz que nenhum aluno é obrigado a participar das atividades. Contudo, essa justificativa ignora que a medida possui poder de persuasão, influência ou exclusão sobre alunos que professam diferentes crenças, ou que não têm nenhuma.

A iniciativa em Belo Horizonte não é um caso isolado e aponta para um movimento político articulado. Em Manaus, por exemplo, um vereador também apresentou, em maio de 2025, um projeto com a mesma justificativa para autorizar legalmente o "intervalo bíblico" em escolas públicas e privadas. Na Câmara Municipal de Recife, a proposta também foi aprovada, com votos de parlamentares inclusive até do PT e do PSB, que se alinharam à extrema direita pela proposta. Essas ações, apresentadas como uma "prática voluntária" promovida por estudantes, demonstra que o movimento não é local, mas sim parte de uma estratégia nacional para a promoção de ideias de intervenção cristã/evangélica no âmbito educacional.

Ademais, diversos vídeos têm se popularizado nas redes sociais, alguns deles gravados em Pernambuco, onde alunos se reúnem em escolas para praticar atividades de fé e pregação, configurando, na prática, um trabalho religioso fora do ambiente de religiosidade. Isso gerou uma investigação do Ministério Público de Pernambuco quanto à presença de “cultos bíblicos” dentro das escolas. Outro levantamento trazido pela UOL revelou que essa ação é comum em diversas instituições de ensino públicas em cerca de 19 estados brasileiros. Notícias e ações como essas têm gerado polêmicas e questionamentos quanto à laicidade do Estado e ao expansionismo ideológico da extrema-direita para os setores estudantis.

Enquanto isso, leis como a 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio, de modo transversal e a lei 3459/2000, na qual define a introdução do ensino religioso obrigatório e confessional nas escolas, com professores vinculados a uma determinada religião e uma oferta de turmas de acordo com a variedade de religiões do corpo estudantil são executadas de forma precária e não adaptada as diretrizes colocadas por essas legislações, o que incentiva e abre portas para a intolerância ou distorção didática de outras manifestações religiosas que são minoritárias em território nacional.