Burkina Faso aprova criminalização das relações entre pessoas do mesmo gênero

A alteração no Código das Pessoas e da Família foi ratificada de forma unânime pela Assembleia Legislativa de Transição e estabelece penas de 2 a 5 anos de prisão, além de multa.

12 de Setembro de 2025 às 21h00

Capitão Ibrahim Traoré, presidente em exercício em Burkina Faso. Reprodução: Redes Sociais.

Por Guilherme Sá

Burkina Faso aprovou, no último dia 1º de setembro, uma mudança em seu Código das Pessoas e da Família que inclui a criminalização das relações entre pessoas do mesmo gênero. A medida, que havia sido proposta pelo Conselho de Ministros em julho de 2024, foi ratificada de forma unânime pela Assembleia Legislativa de Transição e estabelece penas de 2 a 5 anos de prisão, além de multa. A medida segue uma tendência regional de endurecimento em relação ao tema, com o vizinho Mali aprovando uma legislação semelhante em maio deste ano.

Em declaração ao canal RTB (Radiodiffusion Télévision du Burkina), o Ministro da Justiça, Edasso Rodrigue Bayala, descreveu as relações homoafetivas como “comportamento bizarro” e que “A partir de agora, a homossexualidade e as práticas semelhantes são proibidas e punidas por lei”.

O Ministro da Justiça de Burkina Faso, Edasso Rodrigue Bayala, no cargo de junho de 2023. Reprodução/Foto: Lefaso.

Além desta, outras mudanças no Código da Família incluem a diminuição da idade legal para o casamento de 20 para 18 anos, incluindo a possibilidade de ser concedido o direito a partir dos 16 anos, e novas medidas relacionadas à concessão de nacionalidade burkinabé à estrangeiros através de casamentos e outras ligações com o país.

Herança colonial: as raízes históricas da criminalização no continente

Com cerca de 30 dos 54 países contando com leis que criminalizam e/ou aplicam punições às pessoas LGBTI+, a África vive um novo espectro de endurecimento da repressão e perseguição. Este fenômeno, entretanto, está longe de ser parte de um excepcionalismo africano.

No período pré-colonial, diversas sociedades africanas já praticavam relações entre pessoas do mesmo gênero, porém sob estruturas culturais e cosmológicas próprias, que diferem significativamente das concepções ocidentais modernas de orientação sexual. Entre os Azande, povo que habitava a região do atual Sudão do Sul, guerreiros solteiros frequentemente mantinham matrimônios temporários com jovens do sexo masculino – uma prática socialmente reconhecida e regulada, que incluía o pagamento de um dote às famílias dos rapazes. Já no Antigo Egito, evidências arqueológicas e iconográficas revelam que relações entre pessoas do mesmo sexo eram integradas à esfera social e religiosa.

Evidências similares emergem também em diferentes contextos da cultura swahili, na África Oriental, onde registros históricos e etnográficos atestam a ocorrência de relações homoafetivas permeando desde as elites políticas e religiosas até estratos populares. Tais manifestações integravam-se a visões de mundo fluidas sobre gênero e espiritualidade, nas quais identidades e papéis sociais não obedeciam rigidamente a binários ocidentais, mas respondiam a lógicas comunitárias, espirituais e políticas específicas a cada grupo.

Baseando-nos nestes exemplos, frutos de décadas de pesquisas históricas e arqueológicas, a efetiva criminalização dessas relações, bem como o controle da família e dos direitos reprodutivos dos povos africanos, é consequência direta não de uma suposta incompatibilidade da “natureza” africana com as relações homoafetivas, como argumentam governos e figuras conservadoras em África e fora dela, mas sim do colonialismo.

Sob o domínio da Coroa britânica, valores morais vitorianos foram transpostos para a lei por meio de instrumentos como o Código Penal Indiano de 1860 e o Código Penal de Queensland de 1899, que definiam relações “contra a ordem da natureza” como crime. Este código, replicado em dezenas de colônias, desde a Nigéria até o Quênia, tornou-se a base jurídica para a perseguição.

Paralelamente, os franceses, embora não criminalizassem a prática em sua metrópole desde a Revolução, em muitas de suas colônias mantiveram ou reintroduziram leis punitivas, alegando respeitar “costumes locais” – um movimento cínico que, na prática, servia ao controle social das populações colonizadas. Portugal, por sua vez, exportou para suas colônias, como Angola e Moçambique, leis que proibiam “vícios contra a natureza”.

Para além do objetivo de imposição dos valores judaico-cristãos, a criminalização tinha como claro objetivo político e econômico a desagregação completa das sociedades africanas, rompendo com estruturas familiares e os papéis de gênero que não se enquadravam no modelo patriarcal do Ocidente, que afetavam mercados e a exploração do continente, especialmente mais tarde a partir da expansão do capitalismo financeiro.

Todo este arcabouço ideológico do colonialismo legou não apenas a ideia difundida e tornada senso comum de que os povos africanos seriam “depravados” e o colonialismo estaria de bom grado levando a “salvação”, mas também as estruturas de um complexo aparato de controle social, que caiu nas mãos das burguesias locais.

A imposição e o incentivo de valores já existentes entre alguns desses povos colonizados solidificaram uma sociedade radicalmente falocêntrica que, em larga escala, deixou marcas nas formas de expressão do poder político. Ao longo das primeiras décadas do século XX e principalmente após as independências políticas na década de 1960, assim, a homofobia foi amplamente utilizada para ridicularizar oponentes ideológicos, em especial nos contextos das diversas guerras civis.

Ao mesmo tempo desta profunda imposição do colonialismo europeu, que não foi feita senão sob um banho de sangue de milhões de africanos e africanas, a região sob forte influência islâmica conheceu mudanças ao longo dos séculos.

Introduzido num longo processo histórico através das caravanas transaarianas de mercadores árabes e/ou islamizados, a cultura muçulmana foi recebida inicialmente numa convergência com valores tradicionais locais, sustentando ou tolerando concepções de família distintas. De modo oposto ao colonialismo europeu, os valores islâmicos e suas interpretações jurídicas – bastante plurais e longe de constituir um bloco homogêneo – só foram representar um caráter punitivo e restritivo aos direitos sexuais e reprodutivos na história recente, reflexo do avanço do fundamentalismo expresso justamente por grupos como o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) e o Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), que atualmente ocupam boa parte do território de Burkina Faso.

Controvérsias continentais

Buscando manter o controle social, as classes dominantes vêm conduzindo nas últimas décadas em África um projeto político que reforça papéis de gênero rígidos, a heteronormatividade compulsória e a estrutura patriarcal, mantendo grande parte do continente numa maré conservadora.

Essa repressão institucionalizada tem impactos devastadores e concretos, como ilustrado pela epidemia de HIV/SIDA das últimas décadas. Historicamente, a associação errônea e preconceituosa do vírus às relações entre pessoas do mesmo gênero não apenas estigmatizou ainda mais a população LGBTI+, mas também serviu para mascarar as causas estruturais da disseminação da doença: a profunda desigualdade social, a falta crônica de acesso a serviços de saúde pública, educação sexual abrangente e direitos básicos, como moradia digna e saneamento.

Ao invés de confrontar essas falhas sistêmicas – perpetuadas por um modelo econômico de exportação de commodities e subjugação ao imperialismo, que beneficia a burguesia local –, as classes dominantes encontraram no arcabouço moral um bode expiatório conveniente.

Num dos argumentos mais utilizados por determinadas figuras no poder, as relações homoafetivas são tidas como um produto ocidental, imposta por uma cultura externa. A partir disso, busca-se encontrar coesão política e ideológica com os valores religiosos e culturais de traço colonial para garantir o apoio da população, bem como garantir economicamente a dominância do capitalismo dependente através da reprodução social e do patriarcalismo.

Por outro lado, as democracias burguesas ocidentais, nos marcos do mecanismo de apropriação de pautas históricas defendidas pela população LBGTI+, especialmente através de seus representantes na esquerda liberal e social-liberal, sustentam a ideia de que o continente africano – na maior parte das vezes conjuntamente ao chamado Oriente Médio -, enquanto um grande bloco monolítico, representam o grande mal a ser combatido no que concerne os direitos LGBTI+, transformando a luta pela liberdade destas minorias em expressão do racismo e da xenofobia.

Sem estabelecer uma clara ligação entre o colonialismo e a criminalização das relações homoafetivas em África e, mais do que isso, ignorando um fator ideológico central, de que em países como EUA e Brasil a brutal violência cometida contra a população LGBTI+ é mascarada por uma frágil legislação e discursos institucionais, incorre-se num profundo erro de análise.

Nestas diversas frentes que moldam a problemática da repressão à população LGBTI+ no continente africano, persiste a noção de que estas pessoas não existem ou não são protagonistas da luta por seus direitos, reforçando a ideia de uma África frágil, que necessita de seus “salvadores” brancos e ocidentais. Da mesma forma, a negação da existência e da resistência da população LGBTI+ africana alimenta o discurso conservador, que reafirma a inexistência e acusa os movimentos sociais de serem agentes externos.

Nesses termos, o discurso supostamente anti-imperialista e de resgate dos valores “verdadeiramente” africanos promovido por lideranças e movimentos sociais liberais, correm o risco de desembocarem num afrocentrismo conservador.

Anti-imperialismo e opressão interna 

No contexto atual, a medida aprovada em Burkina Faso insere-se numa complexa teia de interesses. O governo militar do capitão Ibrahim Traoré, que assumiu o poder em 2023, enfrenta uma constante pressão diante do avanço de grupos fundamentalistas, sofrendo derrotas pontuais que tornam o cenário de segurança nacional incerto e volátil. Nesse cenário, nota-se ainda que, segundo o Índice Global de Terrorismo, mais da metade das mortes devido a “terrorismo” no mundo em 2024, foram registradas no Sahel (3.885 de um total de 7.555).

Neste quadro dramático de violência e perseguição dos dissidentes, a criminalização das relações homoafetivas surge numa consolidação de uma base de apoio interna ao apelar a valores conservadores e, principalmente, a uma suposta “defesa da cultura africana” contra influências externas. Não à toa, a medida vem num pacote de mudanças que visam defender a família, mais especificamente a família burkinabé.

Este não é um fenômeno isolado no continente. Uganda decretou em 2023 uma das leis anti-LGBTI+ mais severas do mundo, permitindo a pena de morte em casos considerados “agravados”. Essa escalada repressiva contrasta, por exemplo, com a África do Sul, que possui uma das constituições mais progressistas da região, proibindo a discriminação por orientação sexual. No entanto, mesmo lá, a institucionalidade liberal não se reflete plenamente na realidade, onde a violência homofóbica persiste, mostrando o abismo entre o aparato jurídico burguês e a prática social.