Banco Central: trabalhadores devem ser punidos para proteger investidores
A política monetária atua como um mecanismo de disciplinamento social que mascara, sob a linguagem técnica da “estabilidade”, a reprodução das hierarquias próprias do capitalismo dependente.

Reprodução/Foto: Pedro Ladeira/Folhapress.
A decisão, em 5 de novembro, do Comitê de Política Monetária (Copom - a diretoria colegiada do Banco Central que decide a política monetária do país) de manter a taxa Selic em 15% é frequentemente apresentada como um ato de prudência técnica, um gesto necessário para “ancorar expectativas” e assegurar a convergência da inflação para a meta oficial. Contudo, por trás da linguagem neutra da credibilidade e da estabilidade, encontra-se uma escolha profundamente política que expressa, com clareza notável, a estrutura de classes e a subordinação internacional, algo característico da economia brasileira, uma economia de capitalismo dependente.
O efeito mais imediato e evidente de uma taxa de juros tão elevada é a proteção dos interesses dos credores, bancos, fundos de investimento, rentistas e investidores estrangeiros. Uma Selic em patamar tão alto assegura rendimentos elevados e praticamente sem risco para os detentores de títulos públicos. Em um país com dívida pública amplamente indexada à taxa básica, cada ponto porcentual acrescenta bilhões aos cofres dos que vivem de renda financeira, transferindo valor da sociedade para os segmentos mais abastados.
A própria ata do Copom, divulgada em 11 de novembro, deixa transparecer esse compromisso ao mencionar a necessidade de preservar uma postura de “cautela” diante da incerteza externa. O que se formula como prudência técnica é, na prática, a reafirmação da prioridade absoluta de manter os ativos brasileiros competitivos no circuito global de capitais. Quando o Comitê fala em volatilidade internacional, risco geopolítico ou incerteza fiscal doméstica, está explicitando para seu público fundamental, o mercado financeiro, que o Banco Central manterá a rentabilidade dos títulos públicos protegida a qualquer custo.
Essa lógica se reforça quando a ata menciona a necessidade de preservar um diferencial elevado em relação aos juros internacionais, garantindo fluxo de capital para dentro do país. É o clássico dilema das economias periféricas, juros altos não por necessidade macroeconômica doméstica, mas para satisfazer movimentos especulativos globais e estabilizar uma moeda estruturalmente fragilizada.
Aumentar o desemprego e disciplinar a classe trabalhadora
Mas há um segundo objetivo, muito menos discutido de maneira explícita, para o qual a taxa de juros em níveis elevados é empregada: disciplinar a classe trabalhadora.
Cada vez que o Copom menciona “mercado de trabalho apertado”, “inflação de serviços” ou o risco de “pressão salarial”, está descrevendo o conflito de classes embutido no processo inflacionário. Na prática, o regime de metas de inflação opera, sobretudo na periferia, como um mecanismo institucionalizado de contenção do poder de barganha dos trabalhadores. Seu funcionamento está centrado apenas no controle da demanda agregada via aumento do desemprego, com o objetivo de interromper qualquer possibilidade de aumento generalizado dos salários e, assim, proteger as taxas de lucros dos empresários. A política monetária atua como um mecanismo de disciplinamento social que mascara, sob a linguagem técnica da “estabilidade”, a reprodução das hierarquias próprias do capitalismo dependente.
Em um contexto em que o desemprego se aproxima de níveis relativamente baixos, a política monetária se converte num dispositivo de coerção silenciosa. Ao esfriar a atividade econômica para conter supostas pressões inflacionárias, o Banco Central reduz o poder reivindicatório dos trabalhadores e limita sua capacidade de pressionar por melhores salários, jornada digna e condições de trabalho adequadas. O resultado é conhecido, a pressão organizada dos trabalhadores se torna insuportável para os grandes conglomerados empresariais. Portanto, com os juros elevados, os sindicatos são enfraquecidos, negociações coletivas dificultadas, salários comprimidos e uma vasta massa de trabalhadores precarizados. Tudo isso para preservar a taxa de lucro das empresas e a rentabilidade dos detentores de ativos financeiros.
Pressões externas revelam falta de soberania monetária
Além de expressar o conflito distributivo interno, a decisão do Copom revela, com nitidez, a posição subordinada do Brasil no sistema capitalista global. As economias dependentes, caracterizam-se por estruturas produtivas fragmentadas, inserção subordinada no comércio internacional e uma profunda vulnerabilidade financeira que reduz drasticamente sua autonomia de política econômica. Nesse contexto, a política monetária deixa de ser um instrumento de desenvolvimento interno e se converte em um mecanismo de gestão da dependência.
Em países como o Brasil, a liberdade formal do Banco Central é severamente limitada pela mobilidade internacional do capital e pela fragilidade histórica da moeda doméstica. O real, como moeda periférica, não cumpre funções internacionais relevantes, não é reserva global de valor, não é meio de pagamento fora das fronteiras e não serve como denominador de contratos financeiros internacionais. Isso obriga o país a aceitar, quase passivamente, a hierarquia mundial de moedas, em que o dólar e, em menor grau, o euro, define o padrão global de segurança monetária.
Nesse sentido, as economias periféricas só conseguem atrair capitais quando oferecem remuneração suficiente para compensar o risco percebido pelos investidores globais. Assim, a taxa Selic elevada é justificada como necessária não apenas para conter pressões inflacionárias, mas para manter um diferencial significativo em relação aos juros praticados pelos Estados Unidos. Em outras palavras, o Brasil precisa pagar caro para ser escolhido como destino de capital financeiro volátil, reforçando o mecanismo de subordinação que caracteriza sua condição dependente.
A vulnerabilidade cambial, fruto dessa posição assimétrica, atua como uma camisa de força. Sempre que o banco central estadunidense eleva seus juros, aumenta a atração do capital mundial para os Estados Unidos, drenando recursos das economias periféricas. Diante disso, o Banco Central brasileiro tende a subir a Selic não porque a inflação doméstica o exige, mas porque precisa defender o câmbio para evitar desvalorização abrupta, choques de preços e riscos de instabilidade financeira. A política monetária, assim, passa a responder prioritariamente aos ciclos internacionais e não às necessidades dos trabalhadores brasileiros.
O resultado é que a política monetária se orienta fundamentalmente por critérios de credibilidade financeira internacional, e não por objetivos de garantir um mercado de trabalho aquecido com aumentos reais nos salários. As prioridades do país são invertidas, proteger o câmbio torna-se mais urgente do que proteger empregos; atrair capital especulativo torna-se mais importante do que fomentar inovação; satisfazer investidores estrangeiros torna-se mais decisivo do que garantir direitos sociais. Trata-se de uma lógica de funcionamento típica das economias dependentes, em que a soberania formal convive com uma profunda submissão estrutural.
Essa subordinação aparece também na estrutura produtiva. A economia brasileira é marcada pela especialização em bens primários, dependência de tecnologia externa, de capitais externos e até de insumos importados para parte significativa de sua atividade produtiva. Qualquer oscilação cambial se transforma rapidamente em pressão inflacionária, levando o Banco Central a reagir com a única ferramenta que domina, a elevação de juros. Em vez de reduzir a vulnerabilidade estrutural, a política monetária reforça o ciclo, juros altos atraem capital especulativo, apreciam artificialmente o câmbio, prejudicam empregos e aprofundam a dependência de importações, criando novos motivos para elevar juros no futuro.
Enquanto o país permanecer preso a essa estrutura, moeda frágil, inserção internacional subordinada, dependência tecnológica e captura do Estado por frações rentistas, sua política monetária continuará sendo menos um instrumento de soberania nacional e mais um mecanismo de reprodução da dependência.