Um resgate crítico da Tropicália: O que deve fazer o artista brasileiro?
Diante de debates recentes sobre o que acontece na arte brasileira, resgata-se a Tropicália e seu contexto histórico numa tentativa de esboçar parte de uma resposta, através de análises de discussões e fenômenos semelhantes da nossa história.

Apresentação da banda "Os Mutantes", 1969. Reprodução/Foto: Correio da Manhã/Arquivo Nacional.
Por Eduardo Zago Braga
A arte brasileira vive, mais uma vez, um momento de crise e disputa. Em meio a debates sobre sua forma, seu conteúdo e sua função social, este artigo de opinião resgata a Tropicália — movimento cultural nascido sob a ditadura empresarial-militar — para pensar o papel do artista hoje. A partir de uma leitura histórica e crítica, o texto discute o que deve fazer uma arte que, sem fugir da realidade, se comprometa com a transformação social.
As seguintes seções seguem uma linearidade temporal: na seção “Uma brevíssima história da arte brasileira”, pretende-se traçar uma contextualização de como foi construída a arte brasileira que precedia a Tropicália; em “É proibido proibir”, sobre a Tropicália em si, o contexto de sua época e críticas que o movimento recebeu; na última, procura-se compreender como os aprendizados que a Tropicália nos trouxe podem nos ajudar, mesmo que minimamente, numa conjuntura atual onde mais uma vez nós questionamos forma, conteúdo e propósito da arte brasileira, por vezes em debates que se esquecem de resgatar esses marcos históricos.
Uma brevíssima história da arte brasileira
No período pré-colombiano, as terras de Pindorama eram habitadas por muitos povos indígenas. No litoral, destacava-se a nação Tupinambá, que apresentava por si só uma complexidade: compondo-a, vários povos tupinambás se dividiam pelo território. Relata-se o seu ritual da antropofagia, que consistia em matar os mais fortes do povo conquistado e, em seguida, se alimentar deles: a crença seria de que aquele que se alimenta, honrosamente, adquire os atributos do conquistado, do qual tinha sua força reconhecida. Essa antropofagia, canibalismo entre humanos, é hoje compreendida de maneira descontextualizada e generalizada entre os múltiplos e diversificados povos indígenas que habitam e habitaram o Brasil. Apesar de ter se tornado um nocivo estereótipo, o conceito da antropofagia no Brasil mais tarde seria protagonista de um imenso marco na Arte Moderna Brasileira.
Com a colonização do Brasil por Portugal, a dominação político-econômica instaurava também uma dominação da superestrutura, como sobre o modo de praticar arte e religião no Brasil. Aliás, a classe dominante ditava a ideologia do tempo. O genocídio indígena incluiu, portanto, não só a morte e perseguição de um povo, mas também de sua cultura, em todos os aspectos.
Desta maneira, o “povo brasileiro” que se formava e se miscigenava entre colonizadores, indígenas, imigrantes e escravizados, estava sempre subordinado à classe dominante. E isso incluía, tal qual como antes, uma subordinação da arte brasileira à arte europeia. Por isso, passamos no Brasil por diversos movimentos artísticos que se iniciaram na Europa e, depois, foram trazidos às Américas.
A arte europeia, que já havia passado por diversos movimentos e estilos, chega ao Brasil aos moldes já do Quinhentismo e passa pelos períodos Barroco, Rococó e Neoclassicismo.
Já no período do Romantismo, também importado, tivemos uma subdivisão: a primeira geração romântica, indianista e nacionalista de Iracema e da Canção do Exílio já começava um resgate histórico dos povos indígenas para uma primeira tentativa na cultura de se ter a criação de uma imagem e identidade nacional que, embora fosse ainda ufanista e acrítica em conteúdo e mimética à Europa em forma, se fazia necessária para a consolidação da independência política brasileira de Portugal; a segunda, ultrarromântica, individualista e escapista; e a terceira, condoreira, que, embora ainda idealista, já representava uma transição ao Realismo, denunciava a escravidão e anunciava uma esperança de liberdade.
No período seguinte, Realismo, as obras negaram irrevogavelmente o escapismo romântico. No romance deste período, o Naturalismo de O Cortiço representava finalmente as classes mais baixas, renegadas nos períodos anteriores. Enquanto isso, por outro lado, o Parnasianismo dos ourives dos versos pregava o purismo, a arte pela arte, num escapismo, mas que não era o romântico egoico, e sim um escapismo das especulações formais da linguagem. Disputando espaço na poesia, depois surge também o Simbolismo, sinestésico e metafísico.
É neste contexto que surge o Modernismo, remodelando tudo o que se pensara sobre arte, em forma e conteúdo. Na Europa, devastada por guerras e diante do caos da decadência da noção positivista de progresso, o Modernismo europeu questionava a forma da arte: se a humanidade é tão cruel, dizima a si mesma e ao mundo, é tão irracional, por que então a arte teria que ser tão bem regrada, pura, racional, bem pensada e bem comportada? Questionando a forma e sendo um imenso avanço experimental, surgiram no Modernismo Europeu notáveis vanguardas, como Impressionismo, Expressionismo, Surrealismo, Dadaísmo, Fauvismo, Futurismo e Cubismo. Com a exceção do Futurismo Italiano, o objetivo geral era, de maneira crítica, romper com a identidade nacional, que levava a guerras e destruição, e alçar a uma expressividade cosmopolita, de ampla liberdade artística de exprimir conteúdo das mais inovadoras formas.
Entretanto, ao trazer as vanguardas europeias mecanicamente ao Brasil, como se costumava fazer desde o Quinhentismo, surgem no Modernismo irremediáveis contradições: como poderiam os brasileiros superar uma identidade nacional que ainda não estava bem estabelecida? Como os artistas brasileiros poderiam rejeitar um progresso que ainda não viera? É assim que surge uma dicotomia que toma diferentes formas, de nacional-estrangeiro, arcaico-moderno, caipira-europeu.
Nessa contradição, surgem algumas correntes que disputavam o que deveria ser o Modernismo no Brasil. Dentre elas, o Movimento Verde-Amarelo, o qual tinha Plínio Salgado como líder, antes mesmo do Integralismo, embora já com suas visões fascistas tradicionalistas e retrógradas. A vertente “vencedora”, entretanto, que viria a ser reconhecida por vezes enquanto a própria primeira geração modernista brasileira em sua totalidade é a antropofágica, que incluía inclusive militantes do PCB. Oswald de Andrade, seu maior expoente teórico, escreve em 1928 (ano de outras notáveis obras modernistas, como Macunaíma e Abaporu) o Manifesto Antropofágico, que ditou como seria o entendimento dos modernistas sobre a contradição em se importar o Modernismo ao Brasil.
A solução dos antropofágicos, assim como os tupinambás, seria deglutir o novo e o diferente, as antíteses, e nisso criar algo próprio. E isso, então, criaria a identidade nacional, apta a estar na “modernidade” dos avanços técnicos das vanguardas europeias, mas se reafirmando enquanto uma arte brasileira de fato. Não seria meramente um equilíbrio passivo entre as antíteses como na dialética serial de Proudhon. É uma dialética de fato, em que a nova arte não é caipira, nem europeia, na medida em que experimentalmente combina forma e conteúdo de ambas. É o indígena “homem mau” anterior à Terra sem Mal, que não mais se subordina à catequese, mas sim se alimenta de seus inimigos para se fortalecer.
Como apontado por críticos literários, inclusive marxistas, a primeira geração modernista foi importantíssima para a construção teórica e prática de uma identidade nacional, além da significativa experimentação formal. Entretanto, os modernistas como Oswald se distanciaram dos interesses do povo, recebendo patrocínio da burguesia industrial e retratando os anseios da elite cafeeira. Além disso, representavam a cultura indígena por meio de símbolos folclóricos e estereotipados do imaginário colonialista europeu. Era, de fato, a construção de uma identidade nacional que se distanciava dos idealismos românticos. Entretanto, era uma identidade nacional da pequena burguesia. Assim, até o surgimento da poesia concreta, a Antropofagia dos modernistas esfriava nos debates da arte brasileira.
É proibido proibir
No início do período da ditadura empresarial-militar brasileira, tínhamos a consolidação da Bossa-Nova enquanto uma inovação formal do samba, ainda que representasse a elite da Zona Sul carioca e se distanciasse, portanto, do cotidiano popular e das periferias de onde o próprio samba nascera.
Enquanto no exterior ascendia o Rock, o Brasil importava o modelo com o nome de Jovem Guarda, que disputaria espaço com a Bossa. O Iê-iê-iê que se formava era a importação mecânica da forma, que incluía modernos instrumentos elétricos; enquanto, no conteúdo, trazia elementos fúteis do cotidiano da classe média. Em meio aos horrores da ditadura, a Jovem Guarda não denunciava a realidade presenciada, que inclusive reprimia seus artistas apesar de condecorá-los. Sem um profundo conteúdo político, o movimento se tornava muito popular no país. A música tornara-se uma mera mercadoria.
Goste o artista ou não, ele próprio e a realidade social em que vive se expressam inevitavelmente na arte. Uma obra que cria uma arte de tendência de uma classe em ascensão se torna um clássico, trazendo novos elementos estéticos e/ou de conteúdo. Uma arte que, almejando uma objetividade, se limita à sua realidade é uma mimese conformista e ignorante. Uma arte que tenta fugir completamente de sua realidade é covarde e formalista. Uma verdadeira arte de tendência denuncia a sua realidade, mas apresenta uma alternativa.
Entretanto, não é só pela alienação que a Jovem Guarda atingia seu amplo sucesso. Mais do que por isso, a Jovem Guarda se popularizou por se destinar a um recorte de público específico, a juventude, o que era inédito na cultura brasileira. Durante a ditadura, o Brasil se abria para importar uma burguesia internacional, inclusive dos meios midiáticos. A partir de novos canais de comunicação que se difundiam no Brasil no período devido a essa importação, como gravadoras, rádio e televisão, formava-se uma sociedade de massas. E a Jovem Guarda soube bem lidar com esse novo cenário, potencializando sua popularização.
É no contexto da popularização da Jovem Guarda que surge a Canção de Protesto, que culminaria na denominação de MPB por vezes. As canções de protesto, como pressupõe a denominação, denunciavam a censura, o autoritarismo e a tortura dos trabalhadores durante a ditadura. São emblemáticas desse período várias músicas entendidas como parte de uma significativa resistência da classe artística no período. Os músicos da Canção de Protesto entendiam os novos instrumentos do Rock importado como uma subordinação cultural. Se lutamos tanto para criar uma identidade nacional no Modernismo, seria uma desonra nos entregarmos a essas guitarras. Já somos economicamente dependentes do estrangeiro e internamente reprimidos, a identidade nacional na cultura era a última fronteira a ser defendida. O iê-iê-iê emplacando sucessos com suas músicas de significado supérfluo, ritmos simples e guitarras chamando a atenção seria o símbolo de subordinação ao imperialismo estadunidense e europeu. Tão grande era a importância da pauta para a Canção de Protesto que fizeram a Marcha Contra a Guitarra Elétrica em 1967.
Resgatando elementos da Poesia Concreta, do Cinema Novo e, principalmente, da Antropofagia e de sua dialética, surgia neste contexto conturbado a Tropicália: apesar de estar presente como um movimento mais amplo, nas artes plásticas e na dramaturgia, seu maior expoente foi na música, que se dividia no Brasil entre os estrangeiristas alienados e os nacionalistas críticos e tradicionalistas. A premissa, como quatro décadas antes, era deglutir tudo o que havia, se apropriando das inovações formais estrangeiras, e exprimir uma vanguarda estética com um conteúdo eclético que ainda denunciasse os absurdos da conjuntura — desde a repressão militar até as contradições arcaico-moderno e nacional-estrangeiro que reapareciam no cenário como uma disputa —, ainda que a temática, como no Modernismo, fosse mais ampla e preferisse, num novo paradoxo, cenas inusitadas do cotidiano. A Tropicália era a “Geléia Geral” — a amálgama eclética dos elementos estéticos, nacionais e estrangeiros, que por si só constituía uma estética própria.
Se na Europa renascentista ascendeu uma classe, a burguesia, surgiu então uma arte de tendência que a representasse. E para expressar um novo tema, os anseios dessa classe, uma nova forma que fosse capaz de exprimir inéditos conteúdos era precisa. A mais marcante, ao menos na pintura, foi a construção de uma representação racional da profundidade por meio da perspectiva geométrica. Mas antes, tentava-se expressar o novo conteúdo somente pela forma já consolidada até então e, apenas depois dessa tentativa, veio a forma com recursos inovadores capaz de fato expressá-lo em sua plenitude. E, no surgimento desse conteúdo da classe em ascensão, surgiam críticos aos recursos formais por desvirtuarem a arte com uma linha do tipo “como podem esses ‘artistas’ ousarem chamar isso de pintura se recusam a sua pura bidimensionalidade nata?”.
Diante da repressão militar, a Jovem Guarda se subordinava ao imperialismo, importando acriticamente a forma e adotando um conteúdo escapista. A Canção de Protesto, sua antítese, denunciava a ditadura e, em nome da manutenção de uma suposta tradição brasileira, se opunha a essa importação. A Tropicália, uma síntese, também era crítica à ditadura, mas importava elementos estéticos da produção cultural do topo da cadeia imperialista. Isso, evidentemente, gerou uma primeira forma de reação crítica à Tropicália, pois ela estaria, nesta importação, sacrificando a tradição brasileira e se rendendo covardemente ao imperialismo, tudo em nome da massificação do movimento, como a Jovem Guarda se popularizando. Talvez até de maneira mais grave do que a Jovem Guarda, a Tropicália não somente importava a estética: era uma importação oswaldiana, que misturava elementos nacionais e estrangeiros numa nova forma eclética, comprometendo a “pureza” do que seria a arte verdadeiramente brasileira.
Mas, quanto à forma, não estariam esses bastiões da identidade nacional com o mesmo entendimento dos conservadores que se opunham à Renascença e dos integralistas do Movimento Verde-Amarelo? Mesmo que expressasse uma dura crítica à ditadura e constituísse, portanto, um conteúdo que fugia à classe dominante e representava a classe reprimida, nutrindo sua ascensão, a Canção de Protesto recusava os recursos formais que eram estranhos ao tradicional. E uma arte verdadeiramente de tendência, apesar de inicialmente de fato expressar-se à forma vigente, cria uma nova forma, sem rejeitar recursos formais que permitam uma plena expressão. Portanto, não a Canção de Protesto, mas sim a Tropicália, em forma e conteúdo, que cumpria esse papel. Para além de se aproveitar dos elementos da cultura de massa, que se vendiam e propagavam com facilidade — tornando-se, portanto, um fenômeno de massas como a Jovem Guarda —, a Tropicália foi ainda um movimento que não se rendeu à forma simplista nem ao conteúdo alienado que se propagava sob a cultura de massa até então, colocando nesse canal a cultura popular, que não consiste meramente em signos, muitas vezes estereotipados, de trabalhadores ou da periferia, mas sim de um conteúdo que de fato denuncie a realidade social e represente uma emancipação.
Nesta conjuntura, antes e durante a ditadura, o PCB assumiu ainda um posicionamento político etapista, que não sustentava uma revolta armada e fortalecia a burguesia brasileira para possibilitar uma revolução nacional-popular. A Canção de Protesto, dialogando em maior parte com os intelectuais, se colocava também nessa posição, embora de maneira mais difusa por, evidentemente, se tratar de um amplo movimento artístico e não de um partido centralizado. Enquanto isso, os tropicalistas tomavam uma posição, embora ainda mais difusa, alinhada às guerrilhas na resistência e emancipação da classe trabalhadora.
Os tropicalistas, como os modernistas, retratavam o Brasil como um absurdo, uma contradição arcaica-moderna. Para as críticas dos comunistas aos tropicalistas feitas ainda da época da ditadura, esse retrato era representado, pela Tropicália, sempre de maneira atemporal, como se esse absurdo fosse a característica definidora de um Brasil imutável. Isto, por parte dos tropicalistas e na visão dos intelectuais comunistas, seria uma denúncia vazia, por não apresentarem à classe trabalhadora o que os comunistas esperavam de uma arte de tendência emancipadora. A questão é que os críticos comunistas ainda não reconheciam criticamente seu etapismo e, portanto, não eram capazes de reconhecer a Tropicália enquanto arte de tendência quando eles mesmos estavam mais alinhados à também etapista Canção de Protesto. Tempos depois, os comunistas etapistas, que não eram a totalidade dos comunistas brasileiros mas incluíam o PCB, fazem a autocrítica e reconhecem o próprio etapismo. Hoje, a estratégia dos comunistas com uma leitura acertada da conjuntura, como o PCBR, não é fortalecer a burguesia para sustentarmos uma revolução nacional-popular. Mas a visão que se consolidou sobre a Tropicália ainda foi essa crítica que não reconhecia o próprio etapismo como um erro de estratégia e que, portanto, não era capaz de fazer uma crítica qualificada à altura de um reconhecimento do que de fato representou a Tropicália. Por isso, revisita-se aqui a questão.
Essa incompreensão inicial em relação à Tropicália pode ser melhor analisada à luz de uma tradição marxista que preza pela liberdade formal como parte da função crítica da arte. Álvaro Cunhal já afirmava que “a arte revolucionária não é a que repete palavras de ordem, mas a que traduz profundamente os conflitos sociais e aponta caminhos, mesmo que o faça de forma inovadora, simbólica ou indireta”. A Tropicália, ao optar por uma linguagem estética experimental e pela apropriação das formas culturais da indústria midiática, não se isentava da crítica social — apenas a realizava por meio de uma síntese formal nova. Walter Benjamin reforça essa visão ao afirmar que a arte verdadeiramente transformadora é aquela que modifica os próprios meios de produção culturais. A Tropicália, nesse sentido, não só expressava contradições sociais, mas subvertia os mecanismos de sua própria difusão — e por isso mesmo escapava às categorias rígidas da crítica da época, mais preocupada com a fidelidade ao conteúdo nacional-popular do que com a eficácia estética e política de novas formas.
Mais do que todos os outros citados movimentos aqui, do Quinhentismo à Canção de Protesto, a Tropicália sofreu um fim precoce. Iniciou-se em outubro de 1967, diluindo-se já a partir de dezembro de 1968, com o exílio de seus precursores, que não a tempo foram capazes de possibilitar uma continuidade plena do Tropicalismo, que sempre foi um movimento difuso e multifacetado. Neste pouco tempo, nunca chegou à redação de um manifesto que definisse objetivamente suas estratégia e tática. Isto sim é uma crítica feita ainda àquela época que segue válida ao se analisar o movimento, que ainda reproduziu vícios de seus predecessores. Por tão difusa e confusa que se tornou a Tropicália, outra crítica que se torna válida é que, apesar de ter se utilizado de canais de massa, o movimento não teve pleno êxito em qualquer público, nem na elite intelectual, nem para a população em geral. Nem os críticos negam, entretanto, a importância do movimento como um marco na cultura brasileira, sendo uma vanguarda tanto em conteúdo quanto em forma e que deixou um imenso legado que perdura até hoje sobre o debate a respeito do que é uma arte verdadeiramente brasileira, que antropofagicamente cria sua identidade.
Vale mencionar que os citados movimentos dos meados do século XX no Brasil, apesar de entendimentos por vezes quase inconciliáveis, compartilhavam muitas vezes, em especial após o fim da Tropicália, um tom mais ameno e menos disputista e sectarista do que pode parecer na presente discussão. Ainda, não eram movimentos tão bem delimitados e simples como pode-se parecer pelo modo em que aqui se apresentam no texto. A título de exemplos que contrariam a monotonicidade dos objetivos de cada movimento, Erasmo e Roberto Carlos, expoentes da Jovem Guarda, compuseram e interpretaram “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”, música-tema do recente sucesso do cinema nacional “Ainda Estou Aqui”, que denuncia a ditadura, ainda que sob uma óptica limitada. Os dois também compuseram músicas interpretadas por Gal Costa, musa da Tropicália, e Elis Regina, artista da Canção de Protesto que liderou a Marcha Contra a Guitarra Elétrica, uma passeata que se opunha diretamente à própria Jovem Guarda dos compositores.
O que fazer?
A Tropicália foi, em forma e conteúdo, um grande símbolo de resistência e vanguarda. Mas acabou. Podemos ainda debater essas questões e reconhecer tardiamente o movimento enquanto arte de tendência com um entendimento mais contemporâneo, o que nos permite uma reflexão crítica sobre um dos momentos mais conturbados da história nacional, mas isso não significaria muito sem tentarmos traçar paralelos com a conjuntura atual.
Hoje, temos movimentos culturais tão amplos quanto em aspectos formais, senão mais, e que são também uma forma de resistência da classe explorada, inclusive muito mais difundidos entre a população organicamente, como o Hip Hop, que apesar de ser uma expressão originalmente estrangeira, adquiriu aqui um aspecto próprio de identidade que não é uma mimese. Especificamente no campo da música, ao qual não se limita o Hip Hop, se encaixa também o funk brasileiro sob esses mesmos parâmetros.
No funk, a burguesia se apropria de sua forma para criar obras que esvaziam seu conteúdo político e periférico, convertendo-o em produto de consumo. No entanto, reduzir essa cultura a uma simples mercadoria ignora seu caráter enquanto movimento social, com raízes nas lutas e vivências das periferias urbanas brasileiras. É justamente nesse tensionamento entre arte e estrutura econômica que se evidencia o silenciamento das vozes populares. A cultura popular, que nascia de maneira espontânea e descentralizada, passa a ser moldada por uma indústria que prioriza a rápida circulação e o lucro, como também ocorre com o sertanejo. Este, de origem popular e rural, é cada vez mais capturado por moldes fixos de simplificação sonora, desvirtuando-se de seu papel enquanto expressão da cultura popular no contexto da luta de classes.
No caso do funk brasileiro especificamente, esse processo de apropriação e esvaziamento se intensifica com a remodelação do gênero num novo produto, que combina influências do phonk estadunidense — com graves pesados e tom mais melancólico — e apaga o significado político que o funk carrega em sua origem. A rotulagem desse novo produto como “Brazilian Phonk”, além de obscurecer o funk de fato popular, serve aos interesses da indústria e da elite ao reconfigurar sua estética para torná-lo mais palatável ao mercado. Paralelamente, a burguesia não apenas coopta, mas reprime ativamente o funk periférico em sua forma original, como demonstram os constantes casos de violência e massacres em bailes funk.
É trivial que o posicionamento dos comunistas deva ser contrário à mercantilização e apropriação burguesa da cultura popular, fortalecendo um funk que denuncie criticamente sua realidade e nutra uma emancipação. Mas isso não significa recusar, de forma dogmática, qualquer inovação formal — atitude que remeteria, no limite, à Marcha Contra a Guitarra Elétrica em 1967.
No entanto, é necessário distinguir os diferentes tipos de apropriação. A Tropicália, ao incorporar guitarras elétricas e elementos da cultura de massa, fazia-o de forma crítica, tensionando os signos dominantes e revelando as contradições do Brasil arcaico-moderno. Já o chamado Brazilian Phonk opera numa lógica distinta: em vez de reelaborar criticamente a cultura periférica, transforma uma manifestação cultural coletiva em propriedade intelectual, esvaziando seu conteúdo popular e político para moldá-lo ao mercado. Trata-se de uma mercantilização que se apropria de bases sonoras disseminadas organicamente por MCs nas periferias e as redireciona para os circuitos do consumo digital.
Não há arte no vácuo: ela se ancora em estruturas sociais concretas. Assim, esse esvaziamento formal tem um fundamento material. A Tropicália surgiu num momento de efervescência política e cultural, alimentada por contradições sociais profundas. Já hoje, estamos numa ampla crise política que inclui o esgotamento das vanguardas políticas do século XX e a hegemonia de um progressismo despolitizado.
A arte brasileira contemporânea, nesse contexto, é marcada não só pela mercantilização, mas também pela ausência de horizonte. O problema não está em usar guitarras, graves pesados ou batidas aceleradas — mas sim em fazê-lo sem projeto, crítica, ruptura ou radicalização. Falta à arte hoje aquilo que faltava à esquerda etapista diante da Tropicália: uma estratégia. E talvez seja este o verdadeiro legado da Tropicália que nos cabe resgatar: a ousadia de construir sínteses, de formas e de sentidos, que apontem para uma nova representação. Não basta dizer que a arte deve resistir — é preciso refletir: resistir como? E contra quem?
Se há algum legado da Tropicália a ser pensado na conjuntura atual, julgo ser esse, que minimamente, talvez, nos ajude neste momento de debate sobre um tema que volta à tona em novas vestes.