O avanço reacionário contra o aborto legal no Brasil
O PL 1904/24 passou a ocupar um local de destaque na conjuntura política brasileira após o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), aprovar o regime de urgência para a tramitação do PL.

Reprodução / Ramiro Furquim
O projeto de lei 1904/2024 apresentado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e assinado por outros 32 deputados, propõe uma série de acréscimos e modificações no Código Penal Brasileiro, em vista de equiparar o procedimento de aborto realizado com idade gestacional superior a 22 semanas ao crime de homicídio simples – pena que pode chegar até vinte anos de prisão. Essa medida se aplica mesmo nos casos de abortamento permitidos por lei, ou seja, casos de estupro, risco de morte à pessoa que gesta e má formação cerebral do feto, estabelecidos num decreto de 1940, sem alterações até o ano corrente.
O que está em voga com a apresentação desse projeto de lei é o aclaramento da ofensiva da classe dominante, majoritariamente representada no aparato político do Estado, contra os direitos reprodutivos das pessoas que gestam. Sendo as camadas mais pobres do povo, a parcela mais afetada por essas medidas, visto que possuem um acesso limitado a métodos contraceptivos e educação sexual, estando submetidas ao projeto de reprodução da força de trabalho, a partir do controle do Estado capitalista sobre os corpos que gestam, com objetivo de fazer com que esses deem conta de gerar mão de obra de baixo custo em países periféricos, cumprindo com a demanda imperialista de manutenção da hegemonia de países centrais ao desenvolvimento do capital.
Ademais, o Brasil registra cerca de 70 mil casos de estupro anualmente, sendo seis em cada dez vítimas, crianças de até 13 anos de idade. Se aprovado, o PL irá impor sobre grande parte dessas pessoas o peso de gestar o feto de um abusador, sob a pena de terem que responder judicialmente caso recorram ao procedimento do aborto, ainda que realizado pelo SUS.
O PL 1904/24 passou a ocupar um local de destaque na conjuntura política brasileira após o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), aprovar o regime de urgência para a tramitação do PL, em uma sessão de votação com o plenário esvaziado, feita de microfones fechados e sem a ocorrência de debate, em demonstração do caráter golpista dessa ação.
A resposta da população a essa manobra se notabilizou com a onda de protestos populares que encheram as ruas do país a nível nacional em defesa dos direitos reprodutivos, em oposição a tal projeto de lei. O pressionamento popular ocasionou o recuo de Arthur Lira, que adiou a votação para o segundo semestre de 2024, em claro movimento de reconhecimento de sua derrota.
No entanto, o debate que corre no entorno do projeto de lei não deve ser compreendido através de seu viés moralista, pois o que se combina ao processo de criminalização do aborto por vias judiciais é o projeto neoliberal de restrição do acesso ao procedimento que se dá pela privatização dos serviços públicos de saúde, os quais, ao saírem da regulação de órgãos públicos, caem nas mãos da iniciativa privada, interessada no esfacelamento total do oferecimento do serviço de aborto no país.
Hospital e Maternidade Vila Nova Cahoeririnha
O PL 1904/24 se soma aos inúmeros avanços contra o direito ao aborto legal no país, denotando uma ofensiva dos representantes da burguesia, sobretudo de extrema-direita, vindo para oficializar constitucionalmente os ataques já praticados no país. Atualmente, o número de hospitais que prestam o serviço de aborto pelo SUS para os casos previstos em lei são extremamente reduzidos e restritos à região sudeste, dificultando o acesso de pessoas de fora das capitais.
Ainda assim, o estado de São Paulo enfrenta o agravamento dessas medidas que se iniciaram em dezembro do ano passado, quando a prefeitura, sob gestão de Ricardo Nunes (MDB), decretou a suspensão do serviço de aborto no Hospital e Maternidade Vila Nova Cahoeririnha, após o seceretário de saúde da capital alegar, sem que houvesse qualquer evidência, a suspeita de irregularidades no serviço de aborto oferecido. Comprovando o caráter anti-aborto dessa decisão, a prefeitura de São Paulo nomeou para assumir o cargo de diretoria do hospital, Marcia Tapigliani, ginecologista filiada ao PL de Bolsonaro e abertamente portadora de um discurso “pró-vida”.
Já no início de 2024, a prefeitura foi acusada de ter acessado ilegalmente os prontuários médicos de pacientes e ex-pacientes do hospital que realizaram o procedimento do aborto entre 2020 e 2023, caracterizando o crime de quebra do sigilo médico, uma vez que a Secretaria de Saúde não apresentou requerimento judicial ao obrigar os funcionários do hospital a oferecer esses dados.
Em decorrência, o CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), suspendeu o registro de duas médicas que realizaram o procedimento de interrupção da gravidez por vias legais no hospital, através da denúncia, feita por membros do Conselho, de tortura, negligência e assassinato de fetos. Em março, a Polícia Civil de São Paulo abriu um inquérito para investigar a Prefeitura de São Paulo por violação dessas informações confidenciais.
O Hospital e Maternidade Vila Nova Cahoeririnha é referência na prestação do serviço público de acesso ao aborto legal, sendo o hospital que mais realizou abortos na capital e o único no estado especializado em oferecer o procedimento de assistolia fetal, que permite que o aborto seja feito em casos de idade gestacional superior a 22 semanas.
Devido à especificidade dessa especialização, apesar de a prefeitura ter encaminhado os pacientes para um dos outros quatro hospitais que oferecem o serviço de aborto legal na capital de São Paulo, esses não seriam capazes de realizar o procedimento nos casos de gestação avançada, submetendo as pessoas que se encaixam nesse quadro e aguardam pelo serviço à impossibilidade de terem acesso ao aborto assegurado por lei.

Flickr / Hernani Arruda Monteiro da Silva
O Conselho Federal de Medicina contra a assistolia fetal
Assistolia fetal é o nome dado ao procedimento de injeção de substâncias químicas que ocasionam na interrupção dos batimentos cardíacos do feto antes que este seja retirado do útero, sendo fundamental para a realização de procedimentos abortivos realizados após 22 semanas de gestação.
Em abril, o CFM (Conselho Federal de Medicina), em violação à classe médica e contra as milhares de vítimas de estupro do país, emitiu a Resolução 2378/35 que visa proibir profissionais da saúde de realizar o procedimento de assistolia fetal em casos de aborto legal decorrentes de estupro, pois, como cita o documento assinado pelo presidente do CFM, José Hitan Gallo, o método caracteriza “feticídio” – termo cientificamente inadequado.
Em desacordo, o STF, conforme o ADPF/1141, sob relatoria de Alexandre de Moraes – que já havia anulado a norma a partir de uma decisão individual – derrubou a norma emitida pelo CFM sob a alegação de que a Resolução ocasionaria em uma restrição de direitos não prevista em lei, ocasionando em impactos concretos sobre a saúde dos que gestam. Não coincidentemente, no mesmo dia (17 de maio) em que o STF suspendeu a resolução, o PL 1904/24 foi apresentado na Câmara.