Não é apenas sobre construir ou não Angra 3
Houve disputas sobre qual tecnologia adotar e mudanças de governo modificaram os projetos, fazendo com que o programa nuclear brasileiro se desenvolvesse de maneira inconstante, reflexo que persiste até hoje.

Reprodução/Foto: Ricardo Funari/Brazil Photos/LightRocket via Getty Images
Por Ive Avolio
Os entraves em relação à construção de Angra 3 não são novidade e têm dividido opiniões entre os veículos burgueses de comunicação. A Veja chama de “Novela Atômica”; o Estadão publicou um editorial intitulado “É hora de desistir de Angra 3”, enquanto O Globo defende que “Concluir obras de Angra 3 seria a decisão mais sensata para o país”. Independentemente das posições, a realidade nos mostra que as negociações do governo Lula avançaram com a Eletrobras, e tivemos notícias recentes de acordos com uma empresa russa para realizar o processo de conversão e enriquecimento de urânio. Onde estão os interesses da classe trabalhadora nesse cenário?
A energia nuclear possui um forte apelo e desperta o interesse das pessoas, pois, em geral, remete a incidentes nucleares e às bombas atômicas. No entanto, devemos tomar cuidado, pois temos em mãos um problema complexo. A segurança, o custo de investimento e o retorno aos consumidores não são os únicos elementos a serem considerados, apesar de serem os mais abordados pela mídia. Devemos refletir sobre a totalidade do programa nuclear brasileiro, sua história e o papel da Eletrobras.
Devemos lembrar que Angra 1 está no fim de sua vida útil, estando em funcionamento há 40 anos. A vida útil da usina depende da qualidade do revestimento do reator, que se deteriora com o passar do tempo devido à captura de nêutrons e às interações com a reação nuclear. Por isso, a continuidade da construção de Angra 3 se apresenta como uma questão latente neste momento, assim como estão ocorrendo planejamento de obras de melhorias em Angra 1.
Novos passos para construção de Angra 3: acordo entre governo e a Eletrobrás
Antes do Carnaval, na quinta-feira, 28 de fevereiro, foi divulgado o acordo realizado entre o governo e a Eletrobrás. Este acordo consiste em fornecer mais cadeiras indicadas pelo governo no Conselho de Administração da empresa, resultando em três cadeiras em um total de dez, assim como uma cadeira no Conselho Fiscal. Em contrapartida, a Eletrobras não precisará se responsabilizar pelos gastos de Angra 3.
Contudo, isso não aumenta o poder decisório do governo na Eletrobras, já que se mantém a cláusula que limita a representatividade nas votações da assembleia geral de acionistas a 10% do capital votante, conforme estipulado à época da privatização da empresa. Por outro lado, a Eletrobras se comprometeu a financiar a Eletronuclear para garantir manutenções em Angra 1, aumentando sua vida útil.
Este acordo privilegia a empresa e apenas garante a possibilidade de continuidade de Angra 3, caso o governo assim deseje, sem as amarras da Eletrobras. O essencial aqui está em perceber que esse problema surge devido à privatização de uma empresa estratégica que, com sua conclusão, limitou a soberania do Estado para tomar decisões independentes e autônomas sobre seu setor energético. Independentemente da pertinência da continuidade da construção da usina, a dificuldade e a burocracia em torno desse processo – que mascaram debates importantes sobre nosso setor energético – demonstram o erro da privatização da Eletrobras.
O Estado arcará com os ônus do projeto e protegerá a empresa e o lucro de seus acionistas (as ações da empresa cresceram 5% após a notícia do acordo). O maior erro desse processo foi o governo não aproveitar a pauta para debater a reestatização da empresa.
Acordo com a Rússia para a conversão e enriquecimento de urânio: contexto histórico da tecnologia de enriquecimento
Mais recentemente, no dia 11 de março, foi divulgado um acordo com a empresa russa, Rosatom, para conversão e enriquecimento de Urânio extraído de Caetité, na Bahia, para ser utilizado na fabricação de combustível nuclear e abastecer a central nuclear de Angra dos Reis. O produto beneficiado deve ser fornecido até 2027, podendo indicar a continuidade da construção de Angra 3.
A necessidade da importação demonstra como ainda não possuímos autossuficiência no ciclo do combustível nuclear. A INB (Indústria Nuclear Brasileira) não realiza o processo de conversão (transformação do concentrado de urânio, yellowcake, em hexafluoreto de urânio,) e, atualmente,consegue enriquecer apenas 70% da demanda de Angra 1. Há intenção de expandir essa capacidade com a construção de novas centrífugas em Resende/RJ, para atingir autossuficiência e possibilitar a exportação de urânio enriquecido.
Somos um dos poucos países detentores da tecnologia de enriquecimento de urânio em escala industrial. Esse fato decorre de conflitos históricos em torno do programa nuclear desde 1953. Houve disputas sobre qual tecnologia adotar e mudanças de governo modificaram os projetos, fazendo com que o programa nuclear brasileiro se desenvolvesse de maneira inconstante, reflexo que persiste até hoje.
A construção de Angra 3 teve início em 1980, foi paralisada, retomada em 2008 e novamente suspensa em 2015, devido aos escândalos de corrupção da Lava Jato. Durante esse período, não avançamos em pesquisas para desenvolver reatores de potência nacionais e com tecnologias modernas, como os reatores nucleares de quarta geração, que devem se tornar viáveis comercialmente por volta de 2030 – mesmo período da conclusão de Angra 3, caso sua construção seja retomada!
Outrora, se defendia o desenvolvimento nuclear, para que o Brasil se industrializasse a partir do setor nuclear. Hoje, por mais que não ganhe o mesmo significado, este setor continua sendo importante, haja vista o cenário de desindustrialização do país, para fomentar pesquisa, tecnologia, gerar empregos e auxiliar na transição energética.
Mas não podemos nos enganar, sem um programa alinhado aos interesses da classe trabalhadora, apenas diferentes setores da elite se beneficiarão. Para a continuidade do Programa Nuclear Brasileiro é necessário estatizar a Eletrobrás, paralisar anseios pela privatização do setor nuclear, garantir a soberania do Estado, investir em ciência e tecnologia, realizar estudos para mitigar impactos ambientais e sociais e findar a política de austeridade fiscal. Também, devemos buscar compreender a história do Brasil, quais foram os interesses e disputas no setor nuclear, para assim compreender a totalidade da questão nuclear no país: Angra 3 é apenas um dos elementos.