A exploração dos trabalhadores na indústria dos videogames é a causa da perda de qualidade e do aumento dos preços
Em diversas redes sociais recentes, entra-se em debate a queda geral da qualidade dos videogames e como as empresas obrigam consumidores a adquirirem novas tecnologias caras e que não duram.

Enterro de videogames realizado em 1983, Otero County, New Mexico, Estados Unidos. Reprodução/Foto: Taylor Hatmaker.
Por Gustavo Garcia
Desde a última apresentação das grandes empresas de tecnologia computacional, em 7 de janeiro de 2025 pela Consumer Electronics Show (CES), explode uma insatisfação geral nas redes sociais por parte dos apresentadores e consumidores de tecnologias voltadas ao mercado de videogames envolvendo os preços abusivos para acesso aos mais novos hardwares de empresas como Nvidia, AMD e Intel, que controlam majoritariamente esse setor econômico. O descontentamento abriu um debate sobre a falta de qualidade e otimização dos recentes jogos eletrônicos de alto orçamento, também chamados de AAA ou triple A. O que se esconde é como a superexploração dos desenvolvedores e dos artistas envolvidos na produção de videogames é a sua principal razão.
Na CES 2025, a Nvidia, monopolista do setor que detém 90% da receita de GPUs voltadas para videogames, ou receita de 10,4 bilhões de dólares para 2024, revelou suas novas placas de vídeo e seus respectivos preços que variam de 549 US$ até 1999 US$, ou de 3200 R$ até 11600 R$ (em conversões diretas na cotação atual), que chega ao Brasil com preços ainda maiores. A empresa ainda trouxe diversas “inovações” por inteligência artificial (IA) que dizem serem responsáveis por aprimorar a qualidade estética dos jogos, por técnicas como Ray Tracing (RT), e otimização, via Deep Learning Super Sample (DLSS, da Nvidia) ou FidelityFX Super Resolution (FSR, análogo da AMD): a reação do público foi um escárnio contra os conglomerados monopolistas por estarem entregando “jogos piores” e “otimizações falsas” por preços estratosféricos.
Para explicar as duas primeiras afirmações do público, precisamos entender certos aspectos sobre a performance de jogos eletrônicos e como essas tecnologias a afetam. Primeiramente, otimização trata-se de um conjunto de técnicas destinadas a melhorar a performance que um certo programa computacional possui, isto é, uma boa otimização implica em um maior tempo de vida de um hardware. Em segundo lugar, um videogame, um vídeo transmitido em um celular, um canal de TV passando, funcionam por meio de uma ilusão criada por uma sequência de imagens sendo mostradas, ou seja, várias fotos levemente diferentes são reveladas rapidamente, causando a ilusão de movimento. Uma medida chamada quadros por segundo (FPS) é usada para mensurar a “suavidade” do que é mostrado ao usuário: um maior FPS implica em mais fotos sendo enviadas em certo período de tempo. É usado como padrão mínimo de qualidade para videogames um valor de 30 quadros por segundo, com um valor ótimo de 60. Abaixo do mínimo, diversos jogadores alegam experienciar dores de cabeça e náusea, principalmente quando o FPS não é constante, tendo os chamados “gargalos”, em que momentaneamente o FPS cai para abaixo de 30.
Dentre as tecnologias apresentadas pela Nvidia, o DLSS utiliza algoritmos para que o computador renderize as imagens em uma qualidade menor, assim diminuindo o impacto sobre ele e, por IA, aumenta-se a qualidade novamente para ser mostrada ao usuário. A lógica pode ser vista na imagem a seguir: o computador cria uma imagem menor “traditional render” e o algoritmo aumenta o número de detalhes “DLSS Super Resolution”.

Esquema de funcionamento do DLSS. Fonte: Techspot.
A promessa feita pela empresa é que isso permitiria os consumidores a aumentarem o nível de qualidade estética dos jogos sem nenhum custo adicional. A realidade é que essas tecnologias só são acessíveis caso compre os modelos mais novos e a maior parte dos jogadores não conseguem se usufruir dessas técnicas. Na prática, os jogos mais atuais obrigam o uso do DLSS fora da margem propagada. Em vez de usá-la para ir uma qualidade Full HD (qualidade da maior parte dos monitores usados pelos jogadores) para 4K, vemos-nos obrigados a baixar a qualidade de 720p ou 480p (qualidade muito inferior ao padrão, equiparável a monitores dos anos 90) para subir a Full HD por meio do DLSS. Já que a inteligência artificial se baseia na imagem pior feita pelo computador para aumentar a qualidade, o efeito é o aparecimento de problemas nas imagens, como fotos borradas e com artefatos visuais (surgimento de elementos que não deveriam estar ali).
Porém, qual é a razão disso ocorrer? A resposta, diferentemente das ideologias neoliberais propagadas, se encontra na economia de gastos em processos de otimização. Dessa forma, a indústria dos videogames, que abarca tanto as produtoras dos jogos em si, quanto as empresas de hardware já citadas, é caracterizada por uma forte exploração dos trabalhadores.
O setor trabalha com uma taxa de rotatividade de 22,6%, acima da média estadunidense, onde mais ocorre contratações para a indústria de jogos, que é de 20%, sendo que esse valor é fortemente puxado para cima pelo setor de comércio online e varejista, de em torno de 30%, conhecidos pela intenso desgaste contra os trabalhadores internacionalmente. Na prática, a maioria dos setores atuam com uma taxa entre 12-17% de rotatividade. Entre o início de 2023 e a metade de 2024, cerca de 20 mil pessoas foram demitidas da indústria de videogames, fenômeno particularmente crítico nesse período, mas comum na indústria, com 8500 demissões em 2022 e diversos conglomerados demitindo centenas de pessoas antes disso. Com isso, ela é reconhecida por fazer severas práticas de “crunch”, que se trata de quando os desenvolvedores são obrigados a aguentar tempos de trabalho semanais acima do estipulado em contrato, sem recebimento de hora extra, podendo chegar a casos de até 100 horas semanais.
Segundo uma pesquisa de 2023 feita pela IATSE (International Alliance of Theatrical Stage Employees), a grande maioria dos trabalhadores são contratados em uma jornada 5x2 por 40 horas semanais, contudo, pelos próprios pesquisadores, a exploração pelos períodos de crunch não são contabilizados nestes contratos, fazendo com que cerca de 50% dos entrevistados afirmarem que já foram submetidos a essa dinâmica e 39% dizerem que não são ou já não foram pagos pelas horas extras trabalhadas. A própria pesquisa reforça, entretanto, que o fraseamento da pergunta feita sobre pagamento de horas extras pode ter modificado o resultado e isso é confirmado por outro estudo que mostra que apenas 8% dos desenvolvedores recebem pagamento em dinheiro, os outros 92% ou não recebem (34%), ou recebem promessas de “pagamento de almoço ou janta” ou em aditivos no banco de horas.
O fenômeno não é diferente no Brasil, em uma pesquisa da Abragames de 2023 é reportado que a maioria dos trabalhadores brasileiros no setor são terceirizados (47%) e cresce consideravelmente o número de PJs e não formalizados (17% e 6%, respectivamente). O abuso nas jornadas de trabalho se repetem, com expedientes de 16 horas por dia.
O que é cinicamente referido como “cultura de crunch” nas empresas desenvolvedoras de videogames nada mais é do que um dos mecanismos capitalistas de manutenção da alta taxa de lucro que o setor apresenta. A receita total gerada para 2024 foi de 187.7 bilhões US$, maior do que a indústria do cinema e da música juntas, com tendência de aumento para os próximos anos. Os três maiores conglomerados da indústria de videogames, que abocanham mais de 100 bilhões US$, ou cerca de 53,2% do mercado, e totalizam uma margem de lucro média de 23,5%, sendo que a média das indústrias estadunidenses foi de 7,71%, quase três vezes mais lucrativo!
Essas margens são alcançadas em detrimento total dos trabalhadores. Os jogos AAA são de extrema complexidade de se produzir pelo realismo ambicionado pelas desenvolvedoras que, por muitas vezes, são meras desculpas para que novos videogames sejam lançados para uma nova onda de lucros exorbitantes. Um exemplo é como pudemos ver no recente aumento do preço base dos AAAs, justificado pelos “projetos estarem muito caros”, como se os lucros já não fossem enormes. Tal complexidade cria a necessidade de mais trabalhadores serem empregados em cada projeto ou mais tempo deve ser dedicado para que saia do papel, todavia o aumento do número de desenvolvedores ou tempo empregado não está acompanhando a escalada das dificuldades de produção.
Se observarmos, por exemplo, Red Dead Redemption, uma das franquias mais populares do mundo, o primeiro exemplar que envolveu cerca de 1000 pessoas com um orçamento de 100 milhões US$ por 5 anos, enquanto sua continuação, apresentou 3000 desenvolvedores com um orçamento estimado entre 170 a 240 milhões US$ por oito anos. Ou seja, para a continuação, o orçamento fica por volta do dobro do original, mas cerca de três vezes mais pessoas trabalham por 60% mais tempo. Rockstar, desenvolvedora do jogo, portanto, fez sua força de trabalho atuar cerca de 5 vezes mais, só dobrando o orçamento, o que evidenciou uma superexploração brutal dos trabalhadores, com pessoas dormindo nos escritórios, jornadas de 24 horas, de 100 horas semanais e em escala 6x1.
O porquê desses efeitos negativos sobre a classe trabalhadora vive – e sempre viveu – na busca incansável, acima de tudo e todos, do lucro. Os estúdios e empresas de hardware atuam em uma lógica de acúmulo de capital que destroem a dignidade dos desenvolvedores e enforcam o acesso à cultura pelos consumidores.
Pela complexidade de produção dos videogames modernos, os estúdios são obrigados a contratarem muitos funcionários para que o desenvolvimento ocorra em um tempo aceitável em termos de marketing e de custos de produção (quanto maior a demora, mais gastos são necessários com energia, salários, aluguel de espaço físico e de licenças de software, etc.), contudo, é de interesse dos grandes conglomerados de fazerem a manutenção de uma alta taxa de lucro, independentemente se isso significará abusos trabalhistas no processo. Busca-se, consequentemente, mecanismos para contenção de gastos: trabalhadores passam a ir para o home office, tomando para si o custo de energia e aluguel, mais horas extras são exigidas, mesmo que não sejam pagas, escalas são incrementadas com mais dias de trabalho. Este acumulado de trabalho a mais que os desenvolvedores recebem por meio de horas extensivas, obrigadas pela própria empresa, são traduzidas em menos contratações e, em segundo momento, em demissões em massa. O cinismo surge ao tentarem dizer que os baixos salários da indústria de videogames comparados a outros setores de tecnologia é pelos trabalhadores “amarem demais seus empregos” fazendo com que pessoas demais se candidatem para as vagas, um suposto problema de “oferta e demanda”. Não, o que temos aqui é um caso de corte de gastos que gera um amontoado de trabalhadores desempregados que diminuem os salários e aumentam a margem de exploração.
Todavia, existe um limite que as empresas conseguem explorar a hora trabalhada, visto que o trabalho útil empregado nos programas só pode ser de qualidade se os empregados estiverem aptos fisicamente e psicologicamente para isso. Não se pode esperar que alguém trabalhando 24 horas por dia tenha o desempenho de uma jornada de 8 horas. Desta forma, os estúdios buscam formas de garantir que seus jogos minimamente funcionem, para que o público os compre, mas de forma a maximizar a exploração individual dos empregados. E aqui surgem as empresas de hardware: as soluções de IA reveladas ao público, como DLSS e RT, são expostas como “benefícios ao consumidor” que irão “incrementar o desempenho” ou “embelezar jogos modernos”, mas, na prática, são mecanismos de intensificação da exploração. Ambas as tecnologias permitem que menos trabalhadores sejam contratados para o estágio de desenvolvimento.
O DLSS, pelo seu funcionamento descrito anteriormente, permite que a otimização mínima para o funcionamento de um videogame caia pelo próprio algoritmo diminuir o peso computacional dos projetos. O efeito disso são equipes proporcionalmente menores em relação ao orçamento total pelas empresas julgarem que tempo dedicado para otimização “seja menos necessário”.
Outra tecnologia, o Ray Tracing (RT), ainda afirma que trará total realismo na simulação de luz, contudo, o que se esconde é que isso também reduz a necessidade de mão de obra, visto que as novas engines de jogos já possuem RT integrados, tornando quase que desnecessário todo tratamento de iluminação que normalmente seria feito a mão pelos desenvolvedores. Ao mesmo tempo, as empresas Nvidia e AMD obrigam que os trabalhadores a comprem suas GPUs de última geração para terem acesso a essas tecnologias de forma minimamente funcional.
As técnicas desenvolvidas não terminam nos exemplos dados, por mais que sejam as mais conhecidas, recentemente foi anunciado que falas de personagens poderiam ser automatizados sem atores ou que jogos poderiam ser visualmente modificados sem um único desenvolvedor, o que gera mais dependência do setor em IAs e incrementa o desemprego. A Nvidia também é o maior conglomerado do mundo de chips para IA, com 80% do mercado, optando por forçar a venda de suas GPUs em todos os locais e contextos. Assim como os usuários precisam usar especificações recentes da marca, os estúdios também! Para usarem as soluções apresentadas precisam pagar aluguel, que chega a centenas de dólares por desenvolvedor usando-a, ou da compra direta que vai a milhares de dólares.
Portanto, a indústria de videogames trabalha na seguinte lógica: de um lado temos estúdios tentando cortar gastos de todos os cantos que conseguem, até alcançarem um certo limite, por outro lado temos empresas de hardware e IA entregando “soluções” que reduzem a necessidade de desenvolvedores, o que aumenta a superexploração em prol de margens de lucro imensas e obriga os consumidores a terem que recorrentemente comprarem novas tecnologias se quiserem continuar desfrutando de seu lazer. Esse ciclo, benéfico para a burguesia do setor e péssima para a classe trabalhadora, apresenta-se como uma característica inerente do modo de produção voltado à acumulação inacabável do capital.
No capitalismo, toda tecnologia existe e é criada não pela melhoria da qualidade de vida dos consumidores ou do trabalho dos empregados, mas pela busca incessante do lucro, independentemente de como isso irá afetar fisicamente, psicologicamente ou financeiramente a classe trabalhadora. As técnicas computacionais desenvolvidas só serão de interesse proletário quando esse tomar para si as rédeas e direcioná-las segundo suas necessidades. O acesso à cultura geral, o que inclui os videogames, só será alcançado pelo poder dos trabalhadores, pelo socialismo-comunismo.