Necropsias das vítimas da chacina no Rio de Janeiro são realizadas de portas fechadas no IML

Defensoria Pública, comissões de direitos humanos, RAAVE e parlamentares denunciam impedimento de acompanhamento das perícias. Mais de cem corpos foram necropsiados apenas com a presença do Ministério Público e da Polícia Civil — os mesmos órgãos que propuseram e executaram a operação que resultou na chacina nos Complexos da Penha e do Alemão.

31 de Outubro de 2025 às 15h00

Foto: Divulgação/Redes sociais.

Após a operação policial que deixou mais de 140 mortos nos Complexos da Penha e do Alemão, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) foi impedida de acompanhar as perícias dos corpos no Instituto Médico-Legal (IML). A ordem partiu da própria Polícia Civil, que justificou a decisão com base em “rotina técnica” e “ambiente controlado”.

A coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria, Rafaela Garcez, relatou ter sido barrada no acesso ao IML mesmo após decisão judicial que garantia a presença do órgão. Segundo ela, o objetivo da Defensoria é assegurar um mínimo de transparência diante de uma cena de crime “não preservada” pela própria polícia.

“O controle que a Defensoria busca é para aprimorar a qualidade da perícia, com o olhar de outros peritos que possam analisar melhor as circunstâncias das mortes. Já pedimos também as imagens das câmeras corporais dos policiais. A quem interessa impedir o acesso da Defensoria a esses corpos?”, questionou Garcez.

Na tarde desta quinta-feira (30), o deputado federal Tarcísio Motta (PSOL-RJ) esteve no IML e denunciou publicamente o bloqueio à participação de agentes externos nas necropsias. Segundo ele, mais de 100 corpos foram necropsiados sem a presença da Defensoria ou das comissões de direitos humanos. Motta também destacou que o Ministério Público não poderia atuar como agente externo, já que foi o órgão que deu início à operação que culminou no massacre.

Entre os dias 29 e 30 de outubro, a Defensoria montou uma força-tarefa que atendeu 106 famílias das vítimas — mães, esposas e filhos que ainda aguardam respostas sobre as circunstâncias das mortes. O atendimento contou com apoio da RAAVE (Rede de Atenção a pessoas Afetadas pela Violência de Estado), que presta suporte jurídico e psicológico às famílias.

No dia 30, a Defensoria Pública da União (DPU) acionou o Supremo Tribunal Federal (STF), solicitando autorização para acompanhar as necropsias e realizar perícias independentes da Polícia Civil antes dos sepultamentos. O pedido foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, no âmbito da ADPF das Favelas, que busca limitar a letalidade policial no Rio de Janeiro — um limite que o Estado segue ignorando.

Ainda no mesmo dia, em reunião com movimentos sociais e parlamentares, a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, classificou a operação como “um horror inominável” e anunciou medidas emergenciais de acolhimento às famílias e proteção de testemunhas, especialmente crianças. Segundo ela, o governo federal pretende encomendar uma perícia independente para apurar as mortes.

“Segurança é direito de toda a população. Não adianta falar em segurança sem políticas públicas de saúde e educação”, afirmou a ministra durante visita às comunidades, acompanhada de Benedita da Silva (PT-RJ) e Glauber Braga (PSOL-RJ).

Apesar das declarações, o anúncio do governo federal não se traduziu em ações concretas. Uma perícia independente, se de fato estivesse em curso, deveria ter sido iniciada imediatamente, já que as cenas do crime foram alteradas — em muitos casos, pelas próprias famílias que foram obrigadas a procurar e recolher os corpos de seus entes nas matas, onde foram abandonados pela polícia. Além disso, com a conclusão das necropsias e a liberação dos corpos para sepultamento, torna-se inviável qualquer nova perícia sobre a causa das mortes.

Até o momento, cerca de 100 corpos já passaram por necropsia, e metade foi liberada às famílias — muitas sem informações completas sobre as circunstâncias da morte. O número elevado de vítimas levou o IML do Rio a transferir outros casos para Niterói, concentrando seus recursos apenas nas autópsias da operação.

A decisão da Polícia Civil, respaldada pelo governo estadual e pelo sistema de justiça, de impedir a presença de agentes externos nas perícias não é um ato técnico, mas político. Representa uma censura institucional, voltada a garantir que a versão oficial do Estado e das polícias prevaleça sem contestação — enquanto a verdade, mais uma vez, é negada à população e às famílias das vítimas.