A “uberização” do profissional de educação física

A ilusão de ser “dono do próprio negócio” ou “empresário de si mesmo” esbarra na dura realidade da competição selvagem e da estagnação dos valores praticados, dada a saturação do mercado com o aumento de profissionais registrados no setor.

29 de Maio de 2025 às 21h00

Reprodução/Foto: Apta Vital Sports.

Nota do editor: Identificamos que o presente artigo de opinião nutre uma correlação direta com o trabalho audiovisual do camarada Henrique Broietti, professor e mestrando pela Unicamp, e comunicador nas redes sociais. Dessa forma, recomendamos o seu trabalho enquanto referência direta para o presente tema.

Por Yuri Rolim

Muito se tem falado sobre a chamada "uberização do trabalho" e seus impactos sobre diversas categorias profissionais. Na área da Educação Física, essa lógica tem se tornado uma realidade cada vez mais presente, afetando especialmente os personal trainers. Aqui, não falo apenas da relação com empresas como a Uber, mas de um modelo de trabalho que transfere ao profissional todos os riscos e custos de sua atividade, sem oferecer garantias mínimas ou direitos trabalhistas.

Basta observar: se um motorista de aplicativo sofre um acidente, por exemplo, a empresa não assume qualquer responsabilidade. De modo semelhante, o personal trainer autônomo também se encontra à mercê das próprias condições — e despesas. Essa autonomia forçada tem sido a única saída para muitos profissionais, diante do total sucateamento do trabalho formal na área.

Mas ser “autônomo” não significa liberdade? O personal, ao definir o valor de sua hora/aula, precisa considerar uma série de gastos fixos e variáveis que, muitas vezes, tornam o exercício da profissão financeiramente insustentável. A anuidade do Conselho Regional de Educação Física (CREF), que pode ultrapassar os R$ 500,00, os custos com plataformas de treino, redes sociais, equipamentos, transporte, os altos valores cobrados pelas academias denominadas de “repasse” para permitir que o personal possa atender seus alunos. Assim, uma parte significativa do que ele ganha vai para a academia e até uniformes são apenas alguns exemplos. E mesmo diante de tudo isso, muitos ainda preferem essa via ao regime CLT, cujas condições são frequentemente ainda mais precárias.

O problema é que essa escolha não vem acompanhada de estabilidade. A ilusão de ser “dono do próprio negócio” ou “empresário de si mesmo” esbarra na dura realidade da competição selvagem e da estagnação dos valores praticados. Com o aumento do número de profissionais, o mercado se torna saturado, e a única saída passa a ser trabalhar mais — muitas vezes, em jornadas exaustivas — para manter uma renda mínima. A exploração, nesse caso, não vem de um patrão, mas da própria lógica do sistema.

Os dados comprovam essa tendência. Entre 2015 e 2025, o número de cursos de Educação Física no Brasil cresceu 187%, saltando de 1.544 para 4.439. No mesmo período, o número de profissionais registrados passou de 377 mil para mais de 671 mil. No entanto, a criação de postos de trabalho não acompanhou esse crescimento, com exceção das academias de ginástica — historicamente marcadas por baixos salários.

A consequência é previsível: os recém-formados acabam aceitando empregos mal remunerados como estratégia de entrada no mercado, na esperança de formar uma clientela e depois migrar para o atendimento autônomo. Mas esse movimento, na prática, apenas alimenta um ciclo de precarização.

O setor público, que poderia representar uma alternativa de estabilidade, também se retraiu. Após um crescimento expressivo da presença de profissionais de Educação Física no SUS entre 2009 e 2014, houve queda a partir de 2019, reflexo direto das políticas de austeridade adotadas nos últimos governos. O chamado “arcabouço fiscal” impõe limites aos investimentos públicos, impactando diretamente as oportunidades na área.

Vale lembrar que a maioria dos profissionais de Educação Física vem das camadas populares. Muitos são os primeiros da família a entrar no ensino superior, Como a maior parte dos cursos da área são ofertados por instituições privadas, com mensalidades pagas a duras penas. São trabalhadores que precisam estagiar e trabalhar em dois ou três lugares ao mesmo tempo para manter os estudos e contribuir com a renda familiar.

Além disso, há o fator geográfico, no qual as melhores oportunidades estão nos bairros nobres, onde se concentram as grandes academias e condomínios de alto padrão. Profissionais que moram nas periferias enfrentam longas jornadas de deslocamento, aguardam horários vagos entre atendimentos e, consequentemente, muitos buscam se mudar para mais perto desses locais de trabalho, mas enfrentam o desafio de arcar com aluguéis mais caros, elevando ainda mais o custo de vida, no qual acaba aceitando valores abaixo do praticado apenas para garantir alguma renda. Essa dinâmica favorece quem já está estabelecido — geralmente, quem mora próximo ou possui maior capital social — e dificulta a entrada de novos profissionais, consolidando uma espécie de "monopólio informal".

Outro ponto preocupante é a exclusão dos profissionais mais velhos. Muitos, ao atingirem os 50 ou 60 anos, perdem espaço no mercado, enfrentando a ausência de previdência, perda de clientela e uma realidade cruel tornando difícil continuar trabalhando com dignidade. Sem rede de proteção social, caem na invisibilidade.

O resultado disso tudo é o aprofundamento das desigualdades dentro da própria categoria. Os personal trainers que ganham R$10, 15 ou 20 mil por mês são exceções — geralmente jovens, com boa rede de contatos, bem localizados geograficamente e com investimentos em marketing pessoal. A maioria, no entanto, luta para manter uma renda básica, sem direitos, sem garantias e com um futuro cada vez mais incerto.

Diante desse cenário, é urgente repensar os rumos da profissão. O fortalecimento das políticas públicas, o estímulo à organização coletiva e o debate sobre a regulamentação justa do trabalho autônomo são caminhos possíveis para frear o avanço da uberização e garantir condições dignas para quem dedica a vida à promoção da saúde e do bem-estar.