Nubank impõe retorno presencial e escancara a contradição entre o discurso de liberdade e a exploração

Lucro bilionário, controle digital e o fim da autonomia: a empresa que se dizia símbolo de inovação repete o velho autoritarismo do capital financeiro.

11 de Novembro de 2025 às 18h00

Por Maíra Nery

O Nubank, a fintech que construiu sua imagem sobre o mito da “liberdade roxa”, impôs o retorno presencial obrigatório a milhares de trabalhadores. A decisão foi tomada de forma unilateral, sem diálogo e sob o silêncio imposto pelo medo da demissão. O banco, que nasceu vendendo uma imagem de autonomia, agora impõe submissão — e revela, mais do que nunca, a distância entre o marketing da modernidade e a realidade concreta da exploração.

A medida vem acompanhada de um discurso cínico sobre “fortalecer a cultura interna” e “aumentar a colaboração”, termos que servem apenas para mascarar o que realmente está em jogo: o controle sobre o tempo, o corpo e a vida do trabalhador. Muitos empregados contratados para funções remotas, inclusive de outros estados, foram pressionados a se mudar para São Paulo ou a pedir desligamento. O suposto “trabalho flexível” transformou-se em um regime de coerção.

Durante uma reunião interna por Zoom, com cerca de sete mil empregados, a indignação explodiu no chat. Comentários críticos à decisão foram punidos com demissões sumárias: doze trabalhadores foram desligados em retaliação — gesto de autoritarismo típico das corporações que pregam “cultura horizontal” enquanto esmagam a liberdade de expressão e o direito à resistência.

E o que torna esse ataque ainda mais escandaloso é que não há crise alguma que o justifique. Em 2025, o Nubank registrou receitas de 3,7 bilhões de dólares — crescimento de quase 40% em relação ao ano anterior — e lucro líquido de 637 milhões de dólares, um salto de mais de 42%. O retorno sobre o patrimônio chegou a 28%, e a base de clientes alcançou 122,7 milhões em três países, consolidando o banco digital como um dos mais lucrativos do continente. Ou seja: não se trata de necessidade econômica, mas de ganância organizada em forma de gestão. A “volta ao escritório” é, na prática, um retorno ao chicote disfarçado de cultura corporativa.

O CEO David Vélez alegou que o trabalho remoto gerou “custos invisíveis”. Invisíveis apenas para quem enxerga o mundo pela ótica do lucro. Para quem vive do trabalho, os custos são concretos: o tempo roubado no trânsito, o cansaço físico e mental, o fim da autonomia conquistada e a quebra de rotinas que permitiam cuidar de si e de suas famílias. O “custo invisível” é o da liberdade que o capital tolera.

Mas o problema é também estrutural. O centro das metrópoles brasileiras concentra escritórios, transporte público precário, altos custos de moradia nas regiões centrais e longas distâncias entre moradia e emprego. Estudos apontam que, na região metropolitana de São Paulo, o tempo de deslocamento por transporte coletivo é uma das principais barreiras à acessibilidade ao trabalho — especialmente para quem vive nas periferias ou em cidades-satélites.

Para muitos trabalhadores contratados remotamente, o modelo home office representava uma alternativa concreta: evitar o trânsito exaustivo, o custo elevado do transporte e o desgaste da vida longe dos centros. Forçar o retorno presencial significa obrigar quem mora em estados ou regiões periféricas a se deslocar ou mudar de cidade — ou perder o emprego. Em um país com alto desemprego e profundas desigualdades regionais, a maioria dos funcionários fora do Sudeste se vê condenada a escolher entre abandonar a família, reestruturar a vida ou aceitar a demissão. Esse deslocamento forçado atinge com mais gravidade quem já vive em vulnerabilidade territorial: a promessa de liberdade virou o dever de migrar.

Entre os funcionários do Nubank, cresce o clima de tensão. A promessa de um “ambiente leve e inovador” deu lugar à vigilância permanente. Softwares de monitoramento, câmeras, métricas de produtividade e reuniões de “performance” tornaram-se rotina. A vigilância que antes era apenas digital agora se soma ao físico — uma dupla prisão: o olho do software e o olho do patrão no escritório. Com a obrigatoriedade do retorno, o trabalhador não escapa da botnet corporativa. O banco instala o sujeito dentro de suas paredes, sob registro de jornada, crachá, controle de presença e métricas de interação.

E essa lógica não é exclusiva do Nubank. O Itaú Unibanco, outro gigante do setor financeiro, demitiu cerca de mil funcionários em regime remoto ou híbrido sob a justificativa de “baixa produtividade” detectada por softwares de monitoramento — teclado, cliques e navegação. É o capital digitalizando o velho autoritarismo de fábrica, transformando cada tecla, cada segundo sem tarefa visível, em motivo de punição. O “trabalho flexível” converteu-se em algoritmo, vigilância e terror laboral.

O controle, antes exclusivamente digital, agora se soma ao controle físico: o corpo no escritório. Trata-se de uma estratégia dupla de disciplinamento. Se antes o trabalhador podia resistir no remoto, diluindo o controle, agora está recluso em um espaço vigiado. O retorno presencial não tem a ver com “colaboração”, mas com reafirmação de poder. A máquina do capital financeiro exige o olho vivo do patrão, a presença corporal como sinal de submissão, a rotina diária como ritual de disciplina.

O que está em jogo vai além de um modelo de trabalho. Trata-se da luta entre o capital financeiro e quem gera sua riqueza: os trabalhadores. Cada nova regra imposta, cada hora arrancada, cada corpo obrigado a voltar ao escritório é uma reafirmação do poder patronal — o mesmo poder que veste terno digital, mas tem alma de fábrica do século XIX.

O fim do remoto não é sobre produtividade, é sobre subordinação. É o capital reafirmando que só existe trabalho sob seus olhos, dentro de suas paredes, sob suas câmeras. Mas a revolta que explodiu no Zoom mostra que, mesmo diante da repressão, há consciência e coragem. Os demitidos do Nubank se tornam símbolo de uma nova etapa da luta de classes no setor financeiro: a batalha pela vida, pelo tempo, pela dignidade e pelo direito de não ser reduzido a uma máquina de lucros.

Enquanto o banco afirma valorizar “pessoas e inovação”, na prática submete seus funcionários à lógica do lucro imediato e do esgotamento constante. As mesmas tecnologias usadas para “empoderar clientes” servem para controlar trabalhadores. O mesmo banco que se diz “revolucionário” é hoje a expressão mais sofisticada do velho capital financeiro — agora digitalizado, gamificado e travestido de modernidade.

O caso do Nubank expõe o esgotamento do modelo de “capitalismo cool”, que tenta conciliar inovação tecnológica com exploração extrema. Por trás dos escritórios coloridos e dos discursos de “propósito social”, há o mesmo mecanismo de extração de mais-valia, agora mediado por telas e métricas. A promessa de liberdade virou marketing; o futuro do trabalho virou retrocesso; e o discurso de pertencimento virou instrumento de submissão.

Enquanto o banco lucra bilhões, trabalhadores enfrentam burnout, insegurança e medo. A retórica de “empresa humanizada” cai por terra diante de uma realidade em que a produtividade é medida em cliques e a dignidade se torna variável de custo. O roxo que simbolizava liberdade agora tinge o mapa do medo: medo de falar, de reclamar, de não performar, de ser substituído por uma máquina.

A cultura corporativa do banco, que se dizia horizontal e diversa, tornou-se uma ferramenta de disciplinamento ideológico. A diversidade é celebrada nos slogans, mas reprimida nas práticas: não há espaço para dissenso, crítica ou recusa. O roxo virou a cor da coerção. A demissão dos doze trabalhadores é uma mensagem direta: quem questiona, paga com o próprio emprego. Mas também é um sintoma do medo que o capital tem de uma classe trabalhadora que pensa, fala e se organiza.

Em tempos de lucros recordes e vigilância total, resistir é mais do que necessário: é uma questão de sobrevivência. O desafio colocado aos trabalhadores do setor bancário é romper o isolamento imposto pelas telas e reconstruir laços de solidariedade real. Porque o futuro que o Nubank vende é o mesmo velho presente do capitalismo: lucro para poucos, controle para muitos e liberdade para ninguém.

Enquanto o lucro cresce e o controle se intensifica, cresce também a necessidade de organização e resistência. Cada trabalhador que se levanta contra o autoritarismo patronal carrega nas mãos a centelha capaz de incendiar a máquina fria do capital.