Planos de saúde lucram às custas do SUS e ignorando a regulamentação do setor
Com respaldo da Agência Nacional de Saúde e com forte influência em Brasília, os planos de saúde têm no SUS e nos benefícios do Estado os fiadores ideais para enfrentar a crise de seu financiamento.

Reprodução/Foto: B3 / IPO da Hapvida.
Os planos privados têm se notabilizado, nos últimos anos, por reajustes exorbitantes, coberturas restritas e uma atuação política agressiva para garantir seus lucros, mesmo que isso signifique precarização dos serviços oferecidos. A história do sistema de saúde suplementar no Brasil é marcada, desde seu surgimento na passagem para a segunda metade do século XX, por conflitos entre os detentores dos serviços hospitalares e os consumidores desses serviços. Na teoria, trata-se de um setor que deveria ser uma alternativa ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas na prática mostra-se um complexo mecanismo de abusos de contratos, fragilidades e um poderoso vetor de pressão pela privatização e desmonte do SUS.
Cobranças abusivas e uma cobertura frágil
A promessa de acesso rápido e de qualidade a serviços de saúde, vendida pelas operadoras, contrasta com a realidade. Reajustes anuais que superam a inflação, somados a uma cobertura cada vez mais restritiva, tornaram-se o modo de atuação dos planos de saúde, o que tem gerado uma série de denúncias. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que deveria regular o setor, tem sido, em muitos casos, aliada das operadoras, chancelando aumentos e propostas que fragilizam o direito à saúde.
Os reajustes anuais são um dos principais pontos de atrito. Embora a ANS estabeleça tetos para os planos individuais e familiares (6,06% em 2025 e 6,91% em 2024), esses limites não são aplicados para a grande maioria dos usuários, já que os planos coletivos representam mais de 80% dos contratos e não estão sob regulamentação dos tetos da agência. Na prática, ocorrem aumentos de até 100% em um ano, gerando insegurança e vulnerabilidade extrema para os beneficiários que contam com o seguro contratado.
Além dos reajustes, a cobertura dos planos tem sido um ponto de crescente insatisfação. A proposta de planos “minimalistas”, defendida pelas operadoras e pela ANS, exemplifica essa precarização. A Resolução Normativa 621 da ANS, de dezembro de 2024, permitiria a venda de planos que cobririam apenas consultas e exames, excluindo atendimento ambulatorial, internações e tratamentos complexos. Na prática, são planos com preço ligeiramente menor do que os valores “habituais”, entregando um produto de baixa qualidade e que não garante qualquer segurança em saúde, já que não há cobertura para internações e procedimentos complexos. Trata-se, portanto, de uma flexibilização regulatória, que rompe com a Lei 9656, elaborada em 1998 frente a necessidade de maior regulamentação desse setor.
As consequências dessa política são visíveis no crescente número de reclamações. Em 2023, foram mais de 450 mil queixas, sendo que o biênio 2023-24 conteve os recordes da série histórica de reclamações. Esses números são um reflexo da insatisfação dos consumidores com os reajustes abusivos, a negativa de cobertura e a dificuldade de acesso a procedimentos e tratamentos essenciais.
O lucro às custas do Estado
Por trás da precarização dos planos de saúde, há um poderoso lobby do setor privado, que busca expandir seus lucros através de negociações e influência sobre a política institucional. Esse movimento tem se intensificado, com as operadoras transformando seu poder econômico em influência política, inclusive por meio do financiamento de campanhas e da atuação direta no Congresso Nacional.
O discurso da “integração com o SUS” é a principal tática para justificar a transferência de custos e responsabilidades para o sistema público. Sob o pretexto de suplementar o SUS, as operadoras buscam respaldo legal para que o sistema público arque com o ônus dos tratamentos de alta complexidade ou de pacientes que se tornam “caros demais” para a saúde suplementar. Essa prática, já velada, seria institucionalizada com a aprovação de propostas como os planos “minimalistas”, que, ao não cobrirem procedimentos essenciais, encaminhariam os usuários aos cuidados do SUS, se desresponsabilizando pela assistência aos seus segurados.
O mercado de planos de saúde no Brasil se expandiu nas últimas décadas com forte apoio do financiamento público. Esse processo contou com diferentes mecanismos: concessão de crédito subsidiado para a construção de hospitais e aquisição de equipamentos; reconhecimento de instituições lucrativas como “filantrópicas”, garantindo isenções fiscais e previdenciárias; e a possibilidade de dedução dos gastos com planos privados no imposto de renda. Soma-se a isso à obrigação legal de ressarcimento ao SUS pelos atendimentos prestados a usuários de planos, que na prática se mostra pouco efetiva, marcada por atrasos, valores inferiores ao devido e elevada inadimplência.
O lobby da saúde privada não se limita a propostas de desregulação. Ele também atua para impedir avanços na legislação que poderiam beneficiar os consumidores e fortalecer o SUS. Projetos de lei que visam atualizar a Lei dos Planos de Saúde de 1998, como o PL 7419/2006, enfrentam forte resistência do setor e dos seus representantes em Brasília.
A situação dos planos de saúde no Brasil na última década é mais um processo que escancara o caráter de classe do Estado brasileiro. Quando um setor empresarial vê a diminuição da sua margem de lucro, o risco é terceirizado para a estrutura estatal, enquanto os lucros seguem sendo sacados pelos seus sócios.
Para o setor de saúde brasileiro (no qual atuam cada vez mais complexos internacionais de saúde), o SUS mostra-se como um lucrativo garantidor de lucro, proporcionando um negócio sem risco: quando a margem de lucro é minimizada, terceiriza-se a assistência ao sistema público, sem qualquer compromisso com a obrigação de ressarcimento ao SUS e com a certeza de dívidas perdoadas ao longo dos anos.
Direito ou mercado: um impasse estrutural
A trajetória dos planos de saúde no Brasil demonstra que a lógica da saúde suplementar não se organiza em torno da garantia do direito, mas da mercantilização de um serviço essencial. Reajustes abusivos, propostas de planos restritivos e a transferência sistemática de custos ao SUS revelam um setor que opera com risco mínimo para os empresários e risco máximo para a população. A atuação da ANS, ao invés de proteger os usuários, tem frequentemente consolidado práticas que ampliam a insegurança dos consumidores, permitindo a continuidade de abusos contratuais e da exclusão do atendimento de alta complexidade.
Esse cenário evidencia a contradição essencial entre o fortalecimento de um sistema público universal e a expansão de um mercado privado sustentado por renúncias fiscais, privilégios legais e perdão de dívidas. A coexistência entre o direito à saúde pública e o oferecimento de serviços privados em saúde, que foi tema central na fundação do SUS e na 8ª Conferência Nacional de Saúde, reafirma-se como inviável, como já defendiam alguns setores naquele período.
Ao reduzir sua responsabilidade sobre os beneficiários, as operadoras transformam o SUS em fiador de sua lucratividade, esvaziando a lei de 1998 e bloqueando avanços legislativos que poderiam conter os abusos. A consequência é um ciclo de privatização velada e permanente ameaça de desmonte do SUS, que permanece como único garantidor real do direito à saúde para a esmagadora maioria da população brasileira.