Câmara aprova projeto que dificulta o aborto legal para meninas vítimas de estupro

Caso aprovado no Senado, o decreto, aprovado na última quarta-feira, retoma barreiras burocráticas que podem obrigar crianças e adolescentes a se tornarem mães.

7 de Novembro de 2025 às 17h00

Manifestação em 2024 contra PL que criminalizava o direito ao aborto para crianças. Reprodução/Foto: Evandro Leal/Enquadrar/Estadão Conteúdo.

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo nº 3 de 2025, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), que dificulta o acesso ao aborto legal por parte de meninas e adolescentes vítimas de estupro, na noite do dia 05 de novembro.

O decreto derruba a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que visava garantir o direito ao aborto de forma segura e humanizada por parte de menores de idade vítimas de violência sexual, retirando a exigência da presença dos responsáveis ou de boletim de ocorrência. Caso seja aprovado no Senado, o decreto retoma barreiras burocráticas que podem obrigar crianças a se tornarem mães.

Ampla aprovação no Congresso Nacional - inclusive da base do governo

O projeto legislativo teve a assinatura de 46 deputados — tanto da oposição quanto da base do governo — dos partidos PL, Republicanos, União Brasil, Podemos, MDB, Novo, PP, PSD, Cidadania, PDT e Avante. Na votação, o texto foi aprovado por ampla maioria: 317 votos a favor e 111 contra, novamente com apoio de parlamentares que vão da extrema-direita aos integrantes do governo.

Entre os votos favoráveis, estiveram nomes do chamado “campo democrático”, como Marcon (PT-RS) e André Janones (Avante-MG). Depois da repercussão negativa, limitaram-se a “pedir desculpas”. O resultado é escandaloso, pois escancara a conivência de amplos setores do parlamento com o ataque aos direitos das mulheres, das crianças e das adolescentes.

Após a aprovação, o Ministério das Mulheres publicou uma nota demonstrando preocupação com a derrubada da resolução. Segundo o governo, “ao anular essa orientação, o PDL cria um vácuo que dificulta o acesso dessas vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção”, afirmou o ministério.

Medida quer “proteger a vida” enquanto larga crianças e adolescentes à própria sorte

A medida se sustenta no discurso da “proteção da vida” dos fetos, como se o país enfrentasse uma “epidemia de abortos” ou uma queda considerável no número de nascimentos. Mas os mesmos setores que levantam essa bandeira se mantêm em silêncio diante de medidas concretas para enfrentar a violência sexual e a pedofilia. Dados do Censo 2022 revelaram, por exemplo, que 34 mil crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em uniões conjugais, um fato que demonstra a profundidade do problema. Dificultar o aborto para crianças e adolescentes em nada altera esse cenário e ainda pode agravá-lo.

A exigência da presença dos responsáveis no momento da solicitação pelo aborto também representa mais uma barreira. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, em 2022 foram registrados 40.659 estupros de menores de 13 anos no país. “Quem é mais estuprado no Brasil é menina. São quatro estupros por hora, e a maior parte deles acontece dentro de casa e é praticada por familiares”, comentou Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, em um ciclo de atividades do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, ainda em 2024. É razoável pensar que um pai abusador não faria um boletim de ocorrência contra si mesmo em uma delegacia, por exemplo. Sem falar no constrangimento de revelar para várias pessoas sobre uma violação, sob risco de ser desrespeitada e constrangida.

Ataques não começaram hoje

A medida é parte de uma cruzada dos setores reacionários contra o direito das mulheres — especialmente das menores. Em 2024, mulheres se uniram em torno da campanha “Criança não é mãe”, diante de um projeto de lei, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equiparava o aborto ao homicídio, ameaçando de prisão as mulheres que realizassem o procedimento. A mobilização teve efeito, e o projeto não foi adiante.

Os setores reacionários, em busca de apoio eleitoral, sustentam uma falsa narrativa de que estão “defendendo a vida”. Na realidade, condenam meninas e adolescentes a se tornarem mães à força, obrigando-as a abrir mão da infância e da juventude e seus direitos de estudar, brincar, não trabalhar e descansar. Esses mesmos setores também ignoram o futuro das crianças que nascerão nessas condições, muitas vezes marcadas por uma profunda condição de vulnerabilidade e pela falta de amparo do Estado, que não garante os direitos básicos para o pleno desenvolvimento infantil.

O texto agora vai para o Senado. As meninas e adolescentes do Brasil precisam de uma grande mobilização na sociedade para impedir que esse - e outros projetos com os mesmos objetivos - sejam colocados em vigor.