"Verso Livre" estreia no YouTube e projeta a cena do rap de São Carlos para o mundo

O documentário "Verso Livre", dirigido pela cineasta e fotógrafa Marina Eduarda, está disponível na íntegra no YouTube, permitindo o acesso gratuito ao registro que documenta a efervescência da cultura de rua no interior paulista.

14 de Dezembro de 2025 às 20h30

Pôster do documentário “Verso Livre”.

Por Marcelo Hayashi (publicado em parceria com o Tribuna São Carlense)

O cenário do hip-hop e das batalhas de rima de São Carlos (SP) ganhou uma nova janela de exibição global. O documentário "Verso Livre", dirigido pela cineasta e fotógrafa Marina Eduarda, está disponível na íntegra no YouTube, permitindo o acesso gratuito ao registro que documenta a efervescência da cultura de rua no interior paulista.

Com 20 minutos de duração, o curta-metragem transporta o espectador para o centro das rodas de rima, especificamente nas Batalhas da Alcatéia e dos Pombos. A obra rompe a bolha universitária da cidade para dar voz aos MCs locais, expondo os desafios da cultura marginal e a tensão entre a arte periférica e o conservadorismo do interior.

A estratégia de lançamento digital busca democratizar o acesso à narrativa construída pela produtora independente AniramArt. Segundo a equipe, formada por jovens impactados pelo movimento desde a adolescência, o objetivo é utilizar a plataforma para que o filme sirva de espelho, legitimando a luta de quem ocupa as praças públicas e mostrando que a arte urbana do interior é uma potência viável.

Bastidores das gravações do “Verso Livre”, na Praça Coronel Salles (Praça dos Pombos). Reprodução/Foto: Divulgação interna.

A cineasta AniraM é natural de São Carlos e se formou em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Frequentadora assídua dos eventos de Hip Hop na cidade, o tema do seu documentário buscou trazer visibilidade à cultura local e aos artistas da cidade.

São Carlos tem se constituído como um polo da cultura Hip Hop no interior paulista. Dentro da região da 016, é uma das cidades que mais tem batalhas semanais, um grande número de MCs, Bboys e Bgirls e DJs. Cada vez mais o movimento cultural tem impactado na cidade, tanto com sua arte, como com seus protestos e resistência contra a precarização dos espaços públicos e dos desinvestimentos no setor cultural, como ocorre em todo país.

Puma versus Saitama na Batalha dos Pombos. Reprodução/Foto: Divulgação interna.

O documentário pode ser assistido pelo YouTube: https://youtu.be/nhRn0IRjKqA?si=_uFqQTVBEKeDGf7h

Aproveitamos a oportunidade para entrevistar a diretora do documentário para o jornal O Futuro. Confira a entrevista na íntegra.


Entrevista

O Futuro: O filme documenta as Batalhas da Alcatéia e dos Pombos em São Carlos, destacando a tensão entre a cultura marginal e o cenário do interior. Marina, o "Verso Livre" transporta o público para a cena de São Carlos, especificamente nas Batalhas da Alcatéia e dos Pombos. Como você avalia a importância jornalística e histórica de documentar o rap do interior paulista, tirando o foco dos grandes centros e mostrando a potência da cultura de rua em uma cidade universitária?

AniraM: Muito do que acontece na capital acaba refletindo no interior, mas aqui a execução é bem diferente. Os gritos de batalha são os mesmos, os formatos também, e o “sonho de virar e ir rimar nas grandes de SP” está presente, mas nossa vivência é outra. Nossa periferia é outra. Vejo a importância do registro justamente por isso. O documentário nasce da curiosidade: como se faz rap no interior paulista? Quais são nossos desafios e vantagens? O movimento não começou agora. O interior é muito rico e São Carlos já teve outras batalhas, mas com uma permanência um pouco instável, para além da repressão que sofriam, vejo que o público também é flutuante. Muitos voltam para suas cidades nas férias ou acabam se mudando. Por isso, acho importante mostrar a resistência desse movimento e como as batalhas retratadas no documentário trabalham para oferecer entretenimento gratuito para quem permanece aqui, principalmente porque sabemos que faltam espaços de lazer para a juventude. Também foi muito legal acompanhar, depois da finalização do documentário, o surgimento de novas batalhas pela cidade. O filme acaba virando um registro de como o movimento se transforma e se expande o tempo todo.

O Futuro: A equipe de produção tem uma ligação com as batalhas desde a adolescência e busca unir a vivência acadêmica com a rua. O material de divulgação cita que a equipe foi impactada pelas batalhas desde a adolescência e agora busca conectar o meio acadêmico com a rua. De que forma essa intimidade prévia com o movimento facilitou a abordagem aos MCs e a captura da essência "crua" dos relatos, sem que o olhar da câmera parecesse uma intrusão? Também gostaria que você falasse um pouco sobre a idealização do documentário.

AniraM: O “Verso Livre” nasceu de outro documentário que fiz com a Vitória Rocha, uma das roteiristas, no ano anterior: o enredo (2022). Nele, o Stevan era um dos personagens e, sempre que ele aparecia falando das batalhas, os jovens nas exibições ficavam super entretidos, até interagiam com o filme. Essa conexão entre cinema e juventude foi o que inspirou a criação do Verso em 2023. Durante as entrevistas tudo fluiu de maneira muito natural, justamente porque eu já conhecia o pessoal. Eu frequentava a Batalha da Alcateia desde o ensino médio e acompanhei a evolução da cena e dos MCs. Quando pensamos em como construir o filme, o Saitama - que era nosso calouro na Imagem e Som - entrou para a equipe. Ele trouxe ainda mais intimidade ao processo por estar diretamente na cena como MC. Ajudou a formular perguntas, a direcionar conversas e a criar um ambiente confortável durante os depoimentos. Combinamos com antecedência quem seriam nossos protagonistas e sempre trocamos ideias após as batalhas, cada um em seu espaço ( a Praça Brasil ou a Praça dos Pombos). Os organizadores também foram muito receptivos. A plateia, então, nem se fala. Usamos uma handycam justamente para nos infiltrar de forma discreta e trazer essa sensação de intimidade. A linguagem documental permite essa espontaneidade, essas conversas despretensiosas que quebram a quarta parede. Para mim, um dos momentos mais especiais é o grito da Zemaki no final. Ela começa dizendo “essa vai pro documentário, então quero ver bonito!”, puxando ainda mais o público para dentro da roda. É exatamente essa sensação de uma noite de batalha que queríamos criar.

Equipe de produção do documentário “Verso Livre”. Reprodução/Foto: Divulgação interna.

O Futuro: Marina, você já tem um histórico na fotografia ("INGCEBO", "o SER negro") focado na autoestima da juventude negra. Sua trajetória, desde 2018, busca o empoderamento e a autoestima da juventude negra. O "Verso Livre" pode ser considerado uma extensão audiovisual dessa sua pesquisa fotográfica? Como a linguagem do documentário te permitiu expandir essa mensagem de "espelho" para jovens que, como diz o release, muitas vezes não se veem como potência?

AniraM: Vejo o “Verso Livre” como uma carta para a Marina do passado também, uma conclusão do que venho construindo com a imagem. Minhas exposições fotográficas surgiram ainda no ensino médio, na mesma época em que descobri as batalhas de rima em frente à minha escola, a ETEC Paulino Botelho. Era um período cheio de incertezas; seguir uma graduação de audiovisual? Investir na arte? No Brasil, e especialmente no interior, esse caminho parece ainda mais distante para pessoas negras. No “Verso Livre”, pude revisitar tudo isso. Minhas dúvidas foram respondidas: deu certo. O que mais confirmou isso foi o processo do filme em si. Retornar às praças que sempre frequentei, agora com outra perspectiva, já em formação como cineasta pela UFSCar, foi muito simbólico. Como comentei, a ideia do documentário surgiu da conexão dos jovens com as batalhas. Eu queria mostrar que, mesmo sendo uma área tradicionalmente elitizada, o cinema não precisa ser inacessível. Nós podemos contar nossas próprias histórias. E percebi que isso fez sentido, principalmente quando jovens mulheres vinham me dizer que se sentiam representadas ao nos ver filmando. Vi nelas um espelhamento, uma sensação de possibilidade. Isso foi muito importante para mim. O “Verso Livre” chega com essa força: mostrar para a cidade que a universidade e o cinema também são espaços nossos e, para os jovens negros e/ou periféricos da própria universidade e curso que me formei, que nossas histórias têm valor.

O Futuro: Há uma crescente midialização das batalhas de rima, seja pelo que a cultura representa pela juventude, seja pela intenção mercadológica para com o Hip Hop. O documentário busca aproveitar essa onda para explicar a cultura para quem é de fora, ou o objetivo primário é registrar a memória e legitimar a luta de quem já está dentro do movimento em São Carlos?

AniraM: Nosso objetivo inicial era dar mais espaço para quem faz parte do movimento em São Carlos. Como eu ainda era universitária na época, queria apresentar a cidade para quem não a conhecia. Sou muito são-carlense e sempre brinco que me incomodava ouvir que “em São Carlos não tem nada para fazer de graça”, porque tem sim. Era uma apresentação mais interna da cena. Mas, como era nossa primeira experiência mais séria construindo um filme, queríamos que ele alcançasse festivais, escolas e mostras. Não usamos muito das mídias convencionais, como cortes para TikTok, porque nossa intenção era levar a arte marginal para espaços considerados mais tradicionalistas. Foi difícil. Recebemos muitos “nãos”. Mas os resultados vieram: participamos da primeira edição do Expo Cine Favela Brasil 2024, na capital paulista, e foi surreal. Depois de um ciclo de exibições, disponibilizamos o filme no YouTube para que qualquer pessoa possa acessar e conhecer a cena de São Carlos.

As exibições conquistadas do documentário “Verso Livre”. Reprodução: Divulgação interna.

O Futuro: Na ficha técnica, notamos que você acumula funções cruciais como direção, fotografia e edição. Quais foram os maiores desafios técnicos e narrativos de produzir uma obra desse gênero de forma independente e como essa multifuncionalidade influenciou a estética final do filme?

AniraM: Fazer cinema independente é sempre uma aventura. É cansativo, mas muito gratificante. Nossa equipe era pequena e fizemos tudo com os equipamentos que eu já tinha. Criei até uma lojinha para vender artes e conseguir comprar um gravador, já que, por ser um projeto independente e sem vínculo direto com a universidade, não podíamos usar os equipamentos do curso. A maior dificuldade foi a financeira; transporte, exibições, remuneração. Nada disso conseguimos garantir. O filme foi feito na força de vontade mesmo. Do nosso próprio bolso e energia, era juntar alguns amigos e fazer acontecer. Durante a roteirização, fizemos visitas técnicas para entender a iluminação das praças, já que tudo acontecia à noite e nossos equipamentos eram bem iniciais. Na pós, nosso editor e colorista, Matheus Eustáquio, conseguiu uniformizar tudo, incluindo os dois tipos de câmera: uma Canon SL3 em 4K e uma handycam que chegava a um 1080p bem sofrido. Mas isso virou estética. A divisão do filme - chegada, rounds, final, free do campeão - funciona bem com essa mistura, porque representa o cotidiano real de quem vive as rodas.

O Futuro: Vimos que o documentário rodou pelo país, sendo exibido em muitos lugares importantes. Como foi a distribuição? Quais dificuldades tem em ser um documentário fora do circuito convencional e da grande indústria? E como é atingir tantas pessoas assim?

AniraM: Nossas dificuldades foram principalmente na questão dos espaços. Fizemos um curta de 20 minutos justamente por ser o tempo médio aceito em mostras, mas, ainda assim, foi difícil pela temática. Mesmo com o tema “em alta”, o cinema ainda é um ambiente muito hostil quando se trata de cultura de rua. Apesar dos muitos “nãos”, conseguimos levar o filme para vários lugares do país. Para nós, sendo a primeira vez inscritas em editais e festivais, e fazendo tudo de forma independente, foi ainda mais especial. Além das exibições em escolas, eventos de hip hop e praças da cidade, participamos de: 1º Festival de Cinema Feminino Pode Ponto Cine; 1º FECICO – Festival de Cinema de Colombo; V Festival Beta – Prêmio de Audiovisual Universitário ESPM; 8º Festival Toró – Audiovisual Universitário de Belém; 2ª Mostra de Cinema Preto Periférico de Ouro Preto; Festival Cine Santo André 2024; e tivemos espaço no 1º Fazimento de Cena, primeiro festival de cinema de São Carlos, onde pude participar de um debate sobre o processo do filme. Encerramos o ciclo na Expo Favela Brasil 2024, da melhor maneira possível. Assim como a rima, o “Verso Livre” é livre em suas métricas e caminhos. Entrou em lugares onde talvez não esperassem ver a gente, mas estamos lá, e continuaremos.