O que o fracasso do BNH nos ensina sobre a Reforma Administrativa
A análise do extinto Banco Nacional da Habitação (BNH) e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criados sob o regime militar, serve como um precedente histórico fundamental para entender os impactos da proposta de flexibilização da estabilidade do servidor público.

Conjunto Habitacional do BNH. Reprodução/Foto: Blog do Trevisan.
Por Giovani Giacomini (Associação dos Servidores Administrativos da UFV)
O debate da Reforma Administrativa (PEC 38/2020) na Câmara dos Deputados reflete um dilema brasileiro de meio século: a busca por "eficiência" e "modernização" que historicamente resultou na eliminação de direitos sociais e no fracasso de políticas públicas. A análise do extinto Banco Nacional da Habitação (BNH) e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criados sob o regime militar, serve como um precedente histórico fundamental para entender os impactos da proposta de flexibilização da estabilidade do servidor público.
O BNH: Sucesso financeiro, fracasso social
O Banco Nacional da Habitação (BNH) foi estabelecido em 1964, oficialmente, como instrumento de combate ao déficit habitacional e impulsionador da construção civil. Contudo, seu objetivo estratégico real era respaldar o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), um sistema de capitalização compulsória ancorado principalmente no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O princípio norteador do BNH era pura e simplesmente a autossustentabilidade financeira. A habitação deixava de ser tratada como um direito social provido pelo Estado para se tornar um produto de mercado acessível via financiamento. O cidadão foi transformado em mutuário, submetido às regras do sistema financeiro.
O Estado atuava nesse esquema como um mero agente financeiro indutor: captava e canalizava recursos, mas delegava à iniciativa privada (construtoras e incorporadoras) a responsabilidade pela execução e o lucro da produção em massa de moradias. O capital robusto e estável, gerado pelo FGTS, era repassado na forma de empréstimos e financiamentos a agentes financeiros (Bancos e Sociedades de Crédito Imobiliário), chegando, por fim, ao setor da construção civil.
FGTS e o fim da estabilidade decenal: Financiamento à custa de direitos
Para garantir o financiamento do BNH, foi criado o FGTS (Lei nº 5.107/66). O Fundo, alimentado pelo depósito mensal de 8% do salário do trabalhador, pago pelo empregador, tornou-se a principal fonte financeira do sistema habitacional.
A criação do FGTS veio, contudo, com um alto custo social: a extinção progressiva da estabilidade decenal, um direito previsto na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) que garantia a permanência no emprego após dez anos de serviço.
Embora o trabalhador já empregado tivesse a suposta "opção" entre o regime da estabilidade decenal e o FGTS, o mercado de trabalho rapidamente tornou a adesão ao Fundo obrigatória para novas contratações. A estabilidade decenal, vista como um obstáculo à mobilidade da mão de obra e à acumulação de capital pelas empresas, foi extinta de forma indireta e acelerada, garantindo o fluxo contínuo de recursos para o BNH. O que se apresentava como uma escolha, logo se consolidou como a única regra.
O alerta histórico: A falência da política social
A priorização da lógica de mercado em detrimento da função social pelo BNH levou ao colapso de seu modelo:
- Exclusão: A exigência de autossustentabilidade desviou o foco dos financiamentos para a classe média, excluindo a população de baixa renda, que representava a maior parte do déficit habitacional.
- Endividamento: A correção monetária das prestações, em períodos de baixo crescimento salarial (arrocho salarial), gerou uma crise de inadimplência, resultando no endividamento e, em muitos casos, no desalojamento de famílias.
O BNH, apesar de ter construído milhões de moradias, não resolveu o problema social e foi extinto em 1986, deixando um legado de dívidas e segregação socioespacial.
O espelho no serviço público
A trajetória do BNH apresentada acima acende um alerta sobre a Reforma Administrativa (PEC 38/2020). A proposta prevê a possibilidade de entidades estatais "optarem" por diferentes regimes de contratação, incluindo a modalidade de servidor temporário ou sem estabilidade.
A justificativa oficial da reforma é a modernização e a garantia da eficiência do Estado, supostamente sem atacar a estabilidade do servidor. Contudo, essa busca por eficiência e redução de despesas com pessoal está, na verdade, diretamente ligada aos requisitos de controle de gastos tão caros aos fundamentos do neoliberalismo, que toma sua forma mais recente no Novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200/2023).
O Arcabouço Fiscal impõe limites e uma trajetória rigorosa para as contas públicas, exigindo controle estrito do crescimento da despesa primária. A PEC 38 surge, portanto, como um instrumento estrutural para que o governo consiga gerenciar e conter a parte mais significativa desse gasto: a folha de pagamento. Dessa forma, o sucesso do novo regime fiscal depende crucialmente da capacidade da Reforma Administrativa de alterar a gestão de carreiras e remunerações.
No entanto, o precedente do FGTS e da estabilidade decenal sugere que a simples introdução de uma "opção" de contratação mais flexível e menos onerosa para o gestor tende a resultar no rápido abandono do regime que assegura direitos e segurança — a estabilidade. O regime sem estabilidade, promovido como mais "eficiente" ou "moderno", pode rapidamente se tornar a regra dominante, eliminando a estabilidade na prática, tal como ocorreu na CLT.
A estabilidade do servidor público é o mecanismo essencial que assegura a continuidade das políticas de Estado (independentes das mudanças de governo), a impessoalidade e a proteção do servidor contra pressões políticas ou interesses privados. Sua flexibilização pode:
- Fragilizar as Políticas: Aumentar a rotatividade, interrompendo projetos de Estado de longo prazo.
- Comprometer a Neutralidade: Expor o servidor a interesses políticos ou privados, minando a autonomia e a capacidade técnica.
Se a Reforma Administrativa focar primariamente na flexibilização e na redução de custos de pessoal, repetindo a lógica do BNH de priorizar o capital e a restrição fiscal sobre a função social, o Brasil corre o risco de repetir o fracasso histórico: criar um modelo que atende a uma lógica administrativa de curto prazo — em parte impulsionada pela necessidade de cumprir o Arcabouço Fiscal —, mas que fragiliza a capacidade do Estado de garantir o sucesso e a estabilidade das políticas públicas essenciais.