2ª Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver: Gênero, raça e resistência nas ruas

Estiveram na marcha deste ano mais de 300 mil mulheres de todo o país, além de representantes de outros 40 países, que chegaram à Esplanada dos Ministérios para uma das maiores e mais importantes mobilizações políticas do movimento negro da última década.

14 de Dezembro de 2025 às 0h00

Reprodução/Foto: Juh Pompeu.

A segunda edição da Marcha das Mulheres Negras, realizada no dia 25 de novembro, contou com representantes de diferentes regiões do Brasil, que, reunidas, passaram a ocupar as ruas de Brasília marchando e levantando a pauta “por reparação e bem viver”. A atividade destacou o papel central da mulher negra na luta contra as desigualdades estruturais que sustentam o país. Estiveram na marcha deste ano mais de 300 mil mulheres de todo o país, além de representantes de outros 40 países, que chegaram à Esplanada dos Ministérios para uma das maiores e mais importantes mobilizações políticas do movimento negro da última década.

A marcha é organizada desde 2015 e reúne mulheres quilombolas, ribeirinhas, do campo, urbanas, periféricas, acadêmicas, artistas e trabalhadoras organizadas em diversos coletivos. Trata-se de uma articulação nacional formada por Comitês Impulsores Estaduais, Municipais e Regionais, mobilizados por mulheres negras — sejam elas integrantes de organizações, grupos comunitários ou ativistas independentes — e conta com parcerias de instituições do Governo Federal. Desde seus primeiros passos, a marcha organizou-se em torno de um projeto de reivindicação ao acesso à saúde, educação, moradia e bem-estar da população negra, inspirada nos movimentos latino-americanos e afro-diaspóricos.

Ao final da marcha, foi elaborada a Carta das Mulheres Negras, que reuniu as seguintes posições:

  • Reconhecimento público, pelo Estado brasileiro, da dívida histórica material e imaterial por ato normativo do Presidente da República;
  • Criação do Fundo Nacional de Reparação para compensação dos prejuízos causados pela escravização e colonização, de duração indeterminada — até a equiparação das condições socioeconômicas entre os diferentes segmentos raciais da população brasileira;
  • Subsídio a projetos de pesquisa específicos sobre a dívida histórica, especialmente focados na investigação de indenizações pagas em decorrência de legislações abolicionistas;
  • Estabelecimento de processos de ressarcimento progressivo pelas famílias e negócios beneficiários das indenizações mencionadas no tópico anterior, que devem ser destinados ao Fundo Nacional de Reparação;
  • Reanálise e anistia de dívidas de financiamentos estudantis da população negra;
  • Reanálise e anistia de dívidas de financiamentos para moradia de pessoas negras;
  • Extinção do laudêmio para fins de regularização fundiária de imóveis para pessoas negras;
  • Implementação de regimes previdenciários especiais, atentando para as particularidades dos trabalhos informais e garantindo condições especiais de aposentadoria para categorias de trabalhos braçais ocupados majoritariamente por pessoas negras, como serviços de construção civil, trabalho doméstico, serviços gerais de limpeza e manutenção, entre outros;
  • Incentivo e subsídio para a criação de equipamentos/centros de memória (museus, centros de pesquisa, bibliotecas) da escravidão em todos os estados federativos;
  • Emenda Constitucional que preveja a distribuição das vagas nos Tribunais Superiores com proporcionalidade de raça e gênero;
  • Emenda Constitucional que garanta a paridade de raça e gênero em cargos eletivos de todas as casas legislativas e nos poderes executivos.

O desafio das mulheres negras no Brasil

A mobilização se insere em um contexto social marcado por indicadores preocupantes em relação à violência contra mulheres. E, tratando-se de mulheres negras, os dados demonstram aumentos significativos diante da conjuntura política de crise econômica, retrocessos institucionais e aumento da violência de gênero e racial.

No segundo trimestre de 2024, o desemprego entre mulheres negras foi de 10,1%, mais que o dobro do registrado entre homens não negros (4,6%). Elas ocupam mais empregos informais (43,3%) e recebem, em média, 46% do rendimento de um homem branco (IBGE/PNAD). Esses dados demonstram uma combinação de fatores estruturais: além de barreiras de entrada e permanência no mercado formal, as mulheres geralmente assumem a maior parte dos cuidados domésticos e familiares. Esse exemplo de divisão sexual e racial do trabalho é uma das heranças diretas do escravismo que permanece sustentada pelo sistema capitalista, mantendo essas mulheres em posições subalternizadas para garantir mão de obra barata, trabalho reprodutivo não pago e controle social.

Num país como o Brasil, marcado por escravidão, patriarcado e concentração extrema de riqueza, a desigualdade não é acidente: é ferramenta. Por isso, pautar a luta em defesa das mulheres negras é lembrar que a emancipação das mulheres negras virá pela transformação das estruturas econômicas que produzem exploração, desigualdade e opressão. Superar o capitalismo é construir outra forma de produzir e viver!

Precarização na organização da marcha desperta debate sobre as formas do bem viver

Durante a realização da marcha, os episódios acerca das condições de insalubridade no alojamento e das demais condições de acessibilidade no espaço do evento geraram indignação das delegações participantes — mulheres de diferentes idades, inclusive com condições de saúde sensíveis — que relataram a falta de estruturas básicas no espaço de alojamento na Granja do Torto, local destinado originalmente a cavalos.

Devemos, antes de tudo, enfatizar que o evento foi composto por várias organizações que vêm lutando pelos direitos das mulheres negras há anos, e nossa crítica não visa questionar sua legitimidade nessa luta, mas sim reivindicar seu caráter de classe, bem como denunciar os aspectos liberais reproduzidos pelas instituições burguesas também envolvidas na organização. Mas é importantíssimo ressaltar que, enquanto lideranças dos movimentos negros estavam alojadas em hotéis e tinham à disposição banheiros com chuveiros e energia elétrica, parte das militantes, depois de várias horas de viagem, foi alojada em estábulos sem água ou energia, tendo de dormir sobre uma lona que cobria o que poucos dias antes estava repleto de esterco e de todo tipo de sujeira proveniente da criação de gado.

Segundo os organizadores, “o local estava limpo faz dias”, o que não corresponde à realidade, pois o espaço ainda cheirava forte. Mesmo com as mulheres tentando resolver a situação, pouca coisa mudou. “O problema só foi ter uma resolução quando os vídeos (de denúncia) começaram a ser divulgados”, relata uma das militantes presentes. Mas o abandono dessas mulheres seguiu: elas dormiram mais uma noite no estábulo e continuaram sem energia e sem água. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, disse em entrevista ao jornal Metrópoles que a marcha “é um movimento do qual nos faz sentir muito orgulho. Nós estamos aqui pelo bem viver. Hoje é por todas nós para que a gente definitivamente passe a pensar num projeto político voltado para a gente. Nós, mulheres negras, somos a base desse país”. Contudo, diante da realidade vivida, Reparação e Bem Viver são palavras fortes quando analisamos as condições às quais as mulheres negras foram submetidas nesse evento.

Em sequência ao descaso sofrido pelas participantes da marcha, notou-se também negligência em relação à alimentação. Mesmo com a ciência de que as mulheres chegariam à cidade por volta da tarde, após enfrentar horas de estrada, a recepção do evento foi tardia, e a alimentação só foi disponibilizada às 19 horas. Com a repercussão dos vídeos de denúncia, a primeira preocupação das organizadoras foi perguntar por que estavam gravando, afirmando que aquilo “sujaria a imagem da marcha” e que “roupa suja se lava em casa”.

Em contrapartida, tivemos conhecimento de que pessoas mais conhecidas da marcha estavam em hotéis e, quando questionadas, as organizadoras mais uma vez afirmaram que “pagaram do próprio bolso”, gerando sensação de desconfiança e evidenciando uma hierarquização das relações — o que demonstra o descaso com as mulheres trabalhadoras presentes, mulheres negras que geralmente estão nos piores empregos e recebem os piores salários. Enquanto umas obtiveram melhores e maiores condições, outras passaram mais uma noite nessa situação humilhante, com falta de água, comida e luz, sem consideração pelo bem-estar de pessoas com comorbidades, crianças e idosos.

Em nota publicada pelo perfil do evento sobre as denúncias, foi feita a seguinte declaração: “assim que os primeiros relatos chegaram [...] o Comitê Nacional apurou os fatos e interviu na intenção de acolher a todas” e que “estruturas para eventos desta natureza sempre são desafiadoras”. Mesmo diante de um espaço que discute temáticas que abordam a reparação histórica e a dignidade da mulher negra, este episódio no estábulo da Granja do Torto demonstra a falha no compromisso com a luta antirracista e a manutenção do ciclo de violência e de quebra da construção coletiva.