O sindicalismo da TI em Pernambuco: 40 anos de lutas, conquistas e novos desafios

O jornal O Futuro, reuniu-se com dois dirigentes do SINDPD-PE — o secretário de Ciência e Tecnologia, Messias Melo, e o presidente do sindicato, Reinaldo Soares — para traçar um panorama histórico da situação da luta de classes dos trabalhadores de TI no estado.

18 de Setembro de 2025 às 15h00

Protesto organizado por trabalhadores do SERPRO, Recife. Reprodução/Foto: sindpdpe.org.br/Sindpd.

O jornal O Futuro, reuniu-se com dois dirigentes do SINDPD-PE — o secretário de Ciência e Tecnologia, Messias Melo, e o presidente do sindicato, Reinaldo Soares — para traçar um panorama histórico da situação da luta de classes dos trabalhadores de TI no estado.

O Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação de Pernambuco (SINDPD-PE) completará 40 anos neste ano. Durante seus anos de existência, a entidade acumulou importantes vitórias para a classe trabalhadora que representa, como a regularização da categoria de TI e a jornada de trabalho de 40 horas semanais.

Nesta entrevista, discutimos sobre as principais reivindicações, o fenômeno da “pejotização”, os desafios do sindicalismo entre os trabalhadores da categoria e seu perfil ideológico.


Neste ano o SINDPD-PE completará 40 anos de existência, tendo sua fundação ocorrida no contexto do final do regime militar, passando pela transição democrática do final dos anos 80. Vocês acham que a realidade do trabalhador de TI melhorou muito nessas quase quatro décadas de existência do sindicato?

Messias: Primeiro, o mundo do trabalho teve profundas transformações ao longo desses quarenta anos. Portanto, é muito complicado comparar a realidade dos trabalhadores de TI de hoje com os da época da fundação do sindicato, do ponto de vista de sua estrutura produtiva. Quando o sindicato foi criado, a estrutura produtiva… A gente brinca que é como se fosse uma “fábrica de informações”.
Na época da fundação do sindicato, uma empresa de processamento de dados, que é como nós chamávamos as empresas de TI naquela época, era fundamentalmente uma fábrica de informações, em que entravam um conjunto de dados através, inicialmente, de cartões perfurados e, posteriormente, através de digitação em microcomputadores e terminais de computadores. Essas informações digitadas eram processadas em grandes computadores, segundo um software (usávamos menos o termo “software” e mais o termo “programa”), um programa de computador feito por programadores que escreviam esses programas em papéis, que depois eram perfurados e transformados em linguagem de máquina através de cartão de digitação, a partir de instruções definidas em uma lista. Veja que eram funções muito bem definidas na profissão. Esses dados que entravam saiam como produto em formato de relatório de papel, para serem trabalhados por alguém. Então era uma grande fábrica de papel impresso... Relatórios imensos de computadores ou formulários impressos, produzidos a partir de conjunto de dados que alguns trabalhadores digitavam freneticamente para transformar em dados a serem processados pelo computador. Quando digo “freneticamente”... Esta é uma primeira mudança sensível. Os perfuradores e digitadores trabalhavam sob o regime de produção taylorista. Com um conjunto de documentos, e sentados em cima de suas máquinas perfuradoras, ou de seus terminais de computador, tinham que digitar “automaticamente” e aceleradamente com metas de produção que levavam invariavelmente ao adoecimento.
Uma das minhas primeiras visitas a centros de processamento de dados que fiz na época em que estávamos fundando, ainda nem o sindicato, a APPD (Associação dos Profissionais de Processamento de Dados), foi na fábrica… Você é jovem, talvez não saiba… A fábrica de açúcar Amorim Primo, que ficava ali no Cais José Mariano com a rua Velha… um prédio velho… hoje está velho e acabado. Eu entrei na sala de perfuração e o pessoal estava digitando freneticamente com muito controle de tempo, ou seja, não tinham intervalos pré-definidos tão fortemente e, em alguns desses centros de processamento de dados, ou centros de digitação, a ida ao banheiro era controlada e eles tinham que entregar uma meta de produção muito forte. Só para você ter uma ideia, uma coisa que até hoje me marcou fortemente… tinham digitadores que tinham sinovite (na época não se falava em LER/DORT) de uma forma tal que já tinha afetado alguns tendões e para eles ganharem agilidade, eles amarravam um dedo no outro, que estava mais lesionado, com uma liga para que aquele dedo não atrapalhasse a celeridade da digitação. Então, isso é um ponto, um aspecto que foi transformado, e essa transformação tem muito a ver com as lutas dos sindicatos, não só o de processamento de dados do TI, mas também o dos bancários, quando fizeram uma grande luta para o reconhecimento da LER/DORT como uma doença profissional, causada pelo trabalho. Daí decorreu que, posteriormente, (foi criada) uma norma regulamentadora da saúde do trabalhador que definiu as condições de trabalho na área de digitação, perfuração e posteriormente em outras áreas de esforços repetitivos, para evitar LER/DORT, lesões causadas por esforços repetitivos e doenças ortopédicas causadas pelo esforço repetitivo. Então, está é uma mudança que tem muito a ver com o trabalho dos sindicatos e particularmente, em Pernambuco, nós participamos ativamente nisso, nesse processo. Só que, como eu disse, o mundo mudou. Se entrar numa empresa de processamento de dados, você que está no mercado a pouco tempo, não vai ver mais digitadores praticamente. (Ainda) existe algum resquício de digitação em algumas poucas empresas terceirizadas… em geral, terceirizadas.
Jornada de trabalho… a jornada de trabalho era a jornada de trabalho tradicional do mercado brasileiro, 44h de trabalho, então os digitadores trabalhavam em turnos de 6h. Aí rapidamente o turno de 6h se instalou, quando não, jornadas maiores sem intervalos. Hoje, os trabalhos de esforços repetitivos nessa área de digitação, ou da operação de data centers, é de trinta horas e, no caso de trabalhos repetitivos tem que ter intervalos de 50/10, 50 minutos de trabalho e 10 de descanso. Essa foi uma das primeiras conquistas nacionais que nós tivemos com relação à jornada de trabalho e que participamos ativamente enquanto sindicato de Pernambuco. E a jornada de trabalho hoje é predominantemente de 40h semanais, então, isso também traz uma mudança porque uma das questões centrais da relação capital trabalho é a disputa pelo tempo de trabalho. Então nessa disputa que continua até hoje, a gente ver que tivemos conquistas antes mesmo de se fixar jornadas mais legais, mais favoráveis ao trabalho nessa área. Então isso faz uma diferença sensível do ponto de vista das condições concretas do trabalho.
Quarenta anos atrás, os direitos dos trabalhadores de processamento de dados, como a gente chamava na época os trabalhadores, eram os da legislação, e havia claramente dois grandes agrupamentos: o pessoal da fábrica, de produção (aquela fábrica em que entravam os dados por meio de digitação, que eram processados por um processador, e que havia alguém que conferia); e a parte da inteligência, que eram os programadores e analistas. Aqui nessa parte, historicamente, os salários eram bem maiores do que os da turma de produção. Essa diferença hoje se dá na categoria mais entre o pessoal da área de desenvolvimento/análise “versus” o pessoal que trabalha em helpdesk nos centros de suporte, principalmente os terceirizados, nas grandes empresas, nos grandes órgãos públicos que têm algum conjunto de trabalhadores que trabalham em regime de suporte ao usuário, suporte à máquina, alguns deles em regime de trabalho bastante intenso, de 6h de turno, de 12/36 etc. Sempre teve essa realidade de uma categoria bipartida, um grupo de trabalho mais intelectual, com salários um pouco melhores, e um grupo de trabalho mais operacional com salários menores. Mas, fundamentalmente, os direitos eram os da legislação.
Se comparar com hoje, do ponto de vista do conjunto de direitos que os trabalhadores de processamento de dados possuem, os trabalhadores de tecnologia da informação de Pernambuco, comparar com a lei (atual), tivemos várias pequenas conquistas que compõe um quadro diferenciado, não só aqui, mas no Brasil todo. Claro que há diferenças entre os estados, claro que há diferenças. O modo de produção mudou completamente. Hoje, fundamentalmente, o trabalho que aquela grande fábrica de produção… se acabou, deixou de existir. Todos os data centers são operados quase automaticamente, remotamente, o trabalho é fundamentalmente intelectual, mas a disputa pelo tempo de trabalho do profissional continua existindo fortemente. Não à toa, você tem o Porto Digital aqui que é um povoado, endeusado, mitificado, mas quando você vai olhar a média salarial do trabalho de TI… não é o que se coloca na maioria das publicidades.

Em anos recentes, quais tem sido as principais reivindicações da categoria?

Messias: Salário continua sendo a principal. Mas você diferencia o salário da seguinte forma, na parte operacional da categoria os salários são extremamente baixos se você considerar o que é necessário para a pessoa viver dignamente. Então a importância da elevação dos pisos salariais continua sendo importante.
Só para ter ideia, o piso salarial da nossa categoria é… do ponto de vista do digitador, do auxiliar de informática, técnico de informática e técnico de helpdesk passa pouco mais de R$ 1.800, valor extremamente baixo. O piso do analista é R$ 3.100. Então é um piso extremamente baixo. Mas a remuneração média em Pernambuco, só para ter ideia, hoje, é de R$ 6.204. O que significa que você tem alguns trabalhadores ganhando salários bem maiores, e outros bem menores do que isso para poder chegar nessa média.
Na área de consultoria, a média aqui chega a quase R$ 9.000, em consultoria para Tecnologia da Informação. Na área de trabalhos mais operacionais é bastante inferior a isso. Então a realidade salarial continua sendo muito importante e presente aqui em Pernambuco. Enquanto que na área de consultoria a média salarial é R$ 9.165, na área de suporte técnico é de R$ 3.891 e na área de pessoas que trabalham em portais, produtoras de conteúdo e serviço é R$ 1.864. Web Design é de R$ 1.976. Ou seja, a média salarial não quer dizer muita coisa, porque média… não diz a realidade dos trabalhadores, é uma média que disfarça muito a realidade, mas mostra claramente quem recebe salários mais altos, e que um conjunto de trabalhadores ganham menos, o que faz com que essa média baixe de R$ 9.000, que é o teto do salário médio do consultor, para R$ 6.100, que é a média da categoria como um todo.
Mas há uma pressão que cabe muito debate na discussão da validade dela, que é muito presente na categoria, que é pela generalização e universalização da PLR (Participação de Lucros e Resultados). Porque há uma compreensão dos trabalhadores no setor que o porto digital, esse sucesso empresarial, com faturamentos imensos, tem que distribuir partes dos seus lucros aos trabalhadores. É também uma reivindicação muito presente na categoria a PLR.
Um outro ponto muito recente que sempre teve muito presente, mas ganhou muito peso nos últimos anos é a questão do plano de saúde. Por mais que a gente defenda politicamente o SUS, na realidade do setor, todas as empresas fornecem um plano de saúde. E o trabalhador acaba indo para os planos de saúde, e aí é uma pressão muito forte nos preços dos planos de saúde, que já são crescentes e extremamente altos. Isso faz com que os trabalhadores tenham muitas dificuldades de manter seus planos de saúde, então há uma pressão para ter uma cobertura maior das empresas em relação ao plano de saúde.
E um outro ponto muito presente que a gente não consegue avançar na disputa patronal é o reconhecimento profissional. A nossa categoria exige muito formação contínua, pois se você quer ficar no mercado tem que buscar formação continuamente. Seja através de certificação de cursos ou de especialização, mestrado, principalmente especialização. Então isso exige muito do profissional e há uma pressão que haja retorno nas empresas em relação a esse aperfeiçoamento que é obrigado a correr atrás, salários melhores ou algum tipo de gratificação para esses trabalhadores nessa área.
Um outro ponto que a gente tem tentado introduzir na discussão é tentar mexer na jornada de trabalho, porque há um componente que, principalmente depois da reforma trabalhista de 2017, é a crescente da flexibilização da jornada de trabalho, via o banco de horas e via home office, então há um reconhecimento de que a gente tem que tentar normatizar melhor a jornada de trabalho, de preferência caminhando para uma jornada menos exigente em termos de dias trabalhados. Ainda não está presente no setor, os trabalhadores falando rotineiramente a ideia da jornada de 4 dias de trabalho 3 dias de descanso, mas essa é uma jornada que a gente quer seguir, trabalhar menos para viver melhor, mas ainda não surge como reivindicação dos trabalhadores essa questão.
E um ponto importante, reivindicação principalmente das mulheres que trabalham no setor, é o auxílio alimentação, por incrível que pareça, durante a licença maternidade. É decrescente o número de trabalhadoras mulheres que atuam no setor e há um componente que nós achamos importante para que tenha mais mulheres trabalhando, é você trabalhar o conceito de igualdade salarial, claro, mas também de você gerar condições para os cuidados com os filhos e filhas. Serem mais cobertos, com base nos direitos, com mais ampliação a licença maternidade e paternidade, garantia de salários, PLR, auxílio alimentação no caso de gravidez… é um conjunto de coisas que garantem condições às trabalhadoras para ficarem no mercado de trabalho.

Existem trabalhadores que vêem no modelo de trabalho PJ uma maneira de obter maior liberdade econômica e autonomia com o trabalho, enquanto que algumas empresas se utilizam desse tipo de contrato para mascarar uma relação empregatícia. O sindicato possui medidas de conscientização e combate à “pejotização”?

Messias: Vou te contar uma historinha interessante, o Porto Digital tem vinte e poucos anos. No final dos anos 90, início dos anos 2000, era crescente a evolução do setor aqui em Pernambuco, e havia uma pressão muito grande do empresariado junto ao governo do estado e a prefeitura, para haverem políticas de fomento ao setor, de desenvolvimento do setor, e aí que nasce o Porto Digital. Várias iniciativas federais através do CESAR, e a prefeitura do Recife, cumpriram um papel muito importante. Exerceram uma pressão grande para surgimento de incentivo ao setor por parte dos governos, principalmente estado e município.
Mais ou menos nesse início dos anos 2000, eu estava na CUT, e nós desenvolvemos uma pesquisa financiada pelo FINEP, de radiografia de oito setores econômicos no Brasil. Um dos setores que a gente radiografou foi o setor de software, de trabalho de software, empresas de software. Foi importante e interessante porque a gente mapeou o Brasil todo e particularmente o setor que tinha maior importância econômica era o setor de software entre os quais, o de Recife e Pernambuco, particularmente o de Recife. O que a gente constatou na reestruturação que o setor vinha sofrendo na segunda metade dos anos 90? Não por coincidência, eram os anos do FHC, que é quando começam de forma mais forte a implementação do neoliberalismo, o processo de mais flexibilização dos direitos trabalhistas etc. O que aconteceu? A gente constatava claramente o crescimento de empresas de TI em Pernambuco, e o crescimento de trabalhadores (estou falando de trabalhadores formalizados), assalariados, mas a média salarial na segunda metade dos anos 90 e primeiros anos dos anos 2000 caía. Se você comparava com São Paulo, Florianópolis, e outras cidades e regiões que estavam naquele momento também tendo um esforço de softechs, de desenvolvimento da indústria de softwares no Brasil, não acontecia esse fenômeno. Havia crescimento de emprego e também da média salarial. Média, como já te disse Pedro, não significa muito, mas é um elemento importante para se mapear a realidade. Então, o que é que acontecia nesse setor naquele momento? As antigas empresas de Pernambuco, principais empresas de serviços que eram a Procenge, Elógica, Telesystem, SEPRO (estou citando as principais empresas de informática daquela época, importante aqui), estavam enfrentando esse processo de reestruturação produtiva de diferentes formas. Na Elógica, do Belarmino, visionário da informática pernambucana, a forma como foi feita a reestruturação produtiva foi o fatiamento do capital. Quando um grupo de trabalhadores montavam uma empresa, ele tornava-se sócio dessa empresa, que atuava em determinado segmento, com determinado produto. Ele virava sócio dessa empresa, ou seja, as pessoas deixavam de ser empregadas para virarem sócias dessa rede de empresas. Mas mantinha uma parte deles como empregados da Elógica, a empresa maior.
O CESAR, nessa altura, era uma cooperativa, funcionava na Federal, em instalações da Federal. Esse modelo de cooperativa é o que foi seguido pela Procenge e outras empresas. Algumas das empresas incentivaram os PJs naquele momento. Eu me lembro bem que nessa época de pesquisa encontrei colegas de faculdade (saí da federal na turma de 80, concluí meu curso no final de 1980, então das primeiras turmas de formados conheço muita gente que estava naquele processo) que nessa época me diziam “sou PJ, Messias, esse é um processo louco, não tenho férias, não estou contribuindo para a aposentadoria” etc. Já naquele momento, o que aconteceu? A gente fez um processo de pressão forte pela fiscalização do trabalho. O governo do FHC ainda não havia destruído o ministério do trabalho. Muita pressão… até que o ministério do trabalho foi para cima das falsas cooperativas. Foi quando o CESAR deixou de ser uma cooperativa e passou a ser uma associação, e seus cooperativados foram contratados como empregados do CESAR. Esse foi o nosso primeiro acordo que fizemos com o CESAR. A gente conseguiu, junto ao ministério do trabalho, exercer uma pressão em cima do CESAR que fez com que ele deixasse de ser uma cooperativa e passasse a ser uma associação com empregados.

Messias, deixa eu te perguntar uma coisa. Eu, por exemplo, tenho uma certa história com o CESAR… Quando ele foi criado, eu ainda estava começando no mercado de trabalho. Naquela época, o que mais se ouvia era o pessoal dizendo: “pô, o CESAR é massa”. E realmente, eu tinha muitos amigos do Centro de Informática que tinham ido para São Paulo em busca de melhores oportunidades. Depois veio aquela história da lei de incentivo à informática — foi aí que o CESAR começou a conseguir contratos maiores, e a proposta era justamente essa: criar o CESAR como uma forma de atrair esse pessoal de volta. Mas me diz uma coisa… isso tudo é verdade mesmo ou é só conversa fiada?

Messias: Não, não é. Nessa conjuntura, nesse cenário, o pessoal consegue… é… uma “conjunção dos astros”... que faz com que o governo Jarbas, a prefeitura Jarbas, resolvesse incentivar o setor… fazer a história do Porto Digital. O governo do estado resolveu também, a partir dessa política da prefeitura, criar o Porto Digital. Quem estava lá? Cláudio Marinho, que estava na secretaria de ciência e tecnologia do estado, que foi um dos principais incentivadores da visão... Valdemar Borges Filho, deputado estadual, atuava fortemente nesse setor… São as mesmas figurinhas que você vai ver sempre…
Essa “conjunção dos astros”, significou dinheiro público “injetado na veia”. A lei de informática, o governo do estado fornecendo o Porto Digital, o prédio “Bandepão”, parte dos recursos da privatização do BANDEP é colocada nesse setor. Então vieram um grande arranjo de incentivo às políticas públicas que alavancaram o setor. A gente não pode negar que alavancaram o setor. Nesta reestruturação, naquele momento, a forma de fazer a reestruturação do ponto de vista dos trabalhadores foram duas formas… A primeira, os digitadores, que não eram mais necessários, demitidos, foram recontratados por empresas de terceirização onde ainda haviam contratos de digitação. Onde haviam contratos de digitação? Nos bancos. Banco do Brasil, Caixa Econômica… Os bancos ainda precisavam de digitação e esse pessoal foi contratado como terceirizados nesses bancos. Então esses trabalhadores se ferraram do ponto de vista de direitos trabalhistas. O sindicato, que era o sindicato que atuava nas estatais, também estava acabando com seus parques de digitação. Sempre teve na área de TI freelancers, sempre tiveram pessoas que eram empregadas e prestavam serviços “por fora”. Se a pessoa ficasse muito tempo na carreira poderia virar uma consultora. Então digitação virava um terceirizado, ficava fora da empresa, corria atrás de seu salário cada vez pior, e analistas viram pejotas, pois passaram a ganhar mais, tomar conta do próprio dinheiro, que não vai para o INSS, então poderá administrar a própria aposentadoria como quiser. Tinham a ilusão de poder obter mais dinheiro, que naquele momento do começo dos anos 2000 foi muito forte.
Eu falei do primeiro acordo com o CESAR… Um dos acordos mais traumáticos pelo sindicato ocorreu anos depois quando o CESAR fez a redução da jornada de trabalho durante uma crise. Logo depois que o governo Lula assumiu, em 2003, o país deu uma parada… então o que é que o CESAR faz? Faz redução de jornada com redução de salário. O sindicato foi derrotado em longas assembleias com o CESAR, foi derrota pelos trabalhadores porque eles foram convencidos pelo CESAR de que era necessário que fizessem redução de jornada para preservarem seus empregos. Então, ali começou uma disputa, que muitos bem conhecem, uma disputa ideológica. Os valores neoliberais, a meritocracia, valores antisindicais inclusive, daquele período foram fortemente enraizados. Então a gente perdeu um forte vínculo com as empresas privadas nesse período. Aos poucos passamos a retomar esse vínculo e, por incrível que pareça, principalmente na pandemia.
Em resumo, PJ, sempre existiu, freelance como residual, e nesse período do começo do Porto Digital acaba ocorrendo uma predominância de falsas cooperativas e PJs.

Você havia dito que o CESAR, no começo, era uma “cooperativa falsa”, entendi corretamente? Lembro que disse que era uma cooperativa, que depois teve que virar uma empresa. Em uma reunião que participei quando trabalhei no CESAR, o CEO havia dito que o CESAR não era uma empresa, mas um “Centro de Inovação”.

Messias: O CESAR, na verdade, é uma ONG. Vamos lá, o que é uma cooperativa real? É um conjunto de pessoas que se juntam, cotizam e passam a ter a gestão daquela instituição. A gestão do CESAR nunca foi dos cooperativados, sempre foi do conselho administrativo do CESAR, um conselho de figurões que representavam as instituições fundadoras do CESAR. Então não havia uma assembleia de todo mundo que trabalhava no CESAR para decidir as regras de remuneração, as regras de trabalho. Então não era uma cooperativa nesse sentido de ser uma cooperativa de verdade. No caso da Procenge, a mesma coisa, não foi criada pelos trabalhadores da Procenge da época, porque queriam criar e definiam os rumos da sua vida. Do ponto de vista legal, eles obedeciam às regras legais de criação de uma cooperativa, mas na vida prática não eram o que pode ser considerado uma cooperativa de verdade. Foi um meio utilizado na época de fazer o processo de reestruturação produtiva, que do ponto de vista do setor de TI empresarial, isso deu certo, essa transformação. No sentido de que ela ampliou fortemente o setor graças aos subsídios públicos e a essa possibilidade de fazer essa migração de mão de obra de forma diferenciada.
A gente não consegue mensurar de maneira clara a quantidade de MEI e PJs que atuam no setor. A gente tem uma ideia, depois da pesquisa que a gente fez que foi apresentada hoje pela DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e que vamos divulgar, que existem mais ou menos 3400 empresas no setor de TI. Desses 3400, 2700 estabelecimentos são de natureza jurídica e não têm nenhum vínculo empregatício. A princípio, é um número que podemos atribuir aos MEIs. MEIs ou falsos “PJotas”, que são aqueles trabalhadores assalariados disfarçados de PJ.

Alguns trabalhadores de TI se recusam a se sindicalizarem por acharem que o sindicato é inútil, que a taxa sindical é um dinheiro desperdiçado e que, à vezes, o sindicato se coloca contra os interesses da categoria, como é o caso do sindicato de TI de São Paulo (SINDPD-SP), que no ano passado formalizou no Ministério do Trabalho suas preocupações com a crescente "pejotização" e "internacionalização" da mão de obra no setor. O sindicato possui ações de incentivo à sindicalização?

Messias: A gente faz um esforço grande. Hoje a gente faz muito trabalho pela internet. É muito difícil, até nas estatais, você conseguir fazer uma assembleia presencial. Mesmo tendo que trabalhar e se deslocar para casa depois, as pessoas passaram a preferir participar da bendita assembleia virtual. O que é bom, porque nós temos ampliado enormemente. Hoje a gente consegue chegar rapidamente a muito mais gente. Hoje, com as notícias do sindicato. Só que ao fazer por internet, você não faz o trabalho que é o político, mais sólido, que é o presencial cara-a-cara, conversar, conhecer a realidade do trabalhador e a partir daí você conscientizá-lo da importância da organização da classe.
Um texto na internet, uma postagem na internet pode ter efeito, mas o efeito é pequeno. A gente tem feito um esforço grande tentando criar grupos de debates. Inclusive têm alguns grupos de debates da gente e de alguns outros companheiros com diversas visões políticas que postam documentos mais sólidos de visões mais críticas do capitalismo, onde a gente tem que fazer “driblar”, muitas vezes, a reação da direita na área que queremos tentar combater esse discurso. Então, a gente tem uma dificuldade grande de fazer um trabalho de conscientização política concreta. Então, a gente faz mais um trabalho de propaganda. Usando os meios de comunicação de propaganda, de pequenos textos, pequenas notas, chamando a atenção de determinado tema, então quando fazemos a assembleia, fazemos um debate mais politizado.
É cada vez mais difícil, não só no nosso sindicato, mas no sindicalismo mundial, enfrentar a nova organização do trabalho que é feita além das fronteiras. Esse é um dos problemas do sindicalismo à nível mundial, de você conseguir ter elementos de atuação para o trabalhador que trabalha deslocado do seu empregador, do ponto de vista geográfico e constituição de direitos. Esse é um processo muito complicado, que é fundamentalmente enfrentado, basicamente através de tentativas de padrões internacionais de condições de trabalho do OIT.
A gente tem um conjunto de pessoas que está em Portugal. Você sabe que tem muita gente de T.I trabalhando ou em Portugal ou para Portugal, onde tem muita gente do CESAR. Não é à toa que o Porto Digital abriu uma unidade lá (em Aveiro). Porque a porta de entrada de T.I pernambucana e/ou brasileira para a Europa é via Portugal, principalmente por conta da linguagem. Os companheiros portugueses com quem a gente dialoga estão enfrentando a mesma dificuldade que a gente, e olha que eles têm uma regulação de trabalho home-office muito mais sólida, que exige mais obrigações das empresas.
Um dos problemas que eles têm é um problema semelhante ao nosso: é que os trabalhadores estão trabalhando para as empresas de Portugal através de contratos que ninguém fiscaliza. Que não há instituição de fiscalização de contrato de trabalho internacional. Nós não temos na nossa legislação brasileira nada sólido sobre isso. Por exemplo, a Petrobras, que é uma empresa que tem grandes investimentos na África e em outros países. Petroleiros são uma das categorias mais organizadas do Brasil e eles enfrentam o mesmo problema. O pessoal da Petrobras que trabalha fora, não consegue fazer a fiscalização completa. Então nós temos uma fragilidade grande do sindicalismo mundial com esse trabalho transfronteiriço e a realidade do home-office tornou isso mais difícil ainda. No caso do Brasil houve uma mudança legislativa significativa na legislação trabalhista brasileira: o direito é decorrente da relação do contrato de trabalho, da convenção coletiva e do local onde você trabalha. Então, se você é contratado para trabalhar aqui em Pernambuco, o direito é oriundo do sindicato de Pernambuco. Mesmo que a empresa seja da Europa, se te contratou para trabalhar aqui, ela tem que praticar o direito daqui.
Qual a mudança legal que se fez na época do Bolsonaro? O direito é decorrente do local onde está a empresa que te contratou. Então, se a empresa é do Rio Grande do Sul e me contrata para trabalhar em home-office e eu moro aqui em Recife, mesmo que eu tenha que atender a um cliente aqui, a legislação induz que o direito seja do Rio Grande do Sul. Então esse é o enfrentamento que o sindicalismo está fazendo para parametrizar e definir mais claramente de onde vem o direito daquele trabalhador e ser central para o enfrentamento da sua terceirização. Ou seja: se você contrata uma pessoa em Pernambuco, você tem que praticar os direitos de Pernambuco, ou o do país contratante, o que for melhor. Que é isso que a gente tenta garantir pela legislação brasileira. Você teria proteção de direitos trabalhistas mais sólida. Nós ainda não conseguimos reverter essa derrota do bolsonarismo.

Reinaldo: Tinha uma época que para você contratar, mesmo que você fosse uma empresa de fora, alguém daqui você tinha que ter alguém daqui. Era muito oneroso, de 2008 a 2010, fazer contrato de PJ para o exterior.

Sendo o campo da TI historicamente associado a uma visão mais liberal, isso se reflete no perfil dos filiados ao sindicato?

Reinaldo: No sindicato temos um quadro de filiados que vêm majoritariamente das empresas públicas. Podemos citar a SERPRO e a DATAPREV. No nível estadual, a antiga FISEPE e nova TI. No nível municipal, a EMPREL. Então a gente vem com esse perfil. Eu diria que são, majoritariamente, pessoas que têm uma visão progressista e que acredito que isso está alinhado com esse crescimento da entidade do sindicato ao longo do tempo. Os 40 anos que, inclusive, estaremos fazendo em outubro deste ano. Esse é um ano especial pra nós aqui no sindicato porque a entidade está fazendo 40 anos e esteve envolvida com a organização do movimento sindical da categoria de TI no Brasil todo. Inclusive com pautas que nós puxamos e que depois foram levadas para outros estados. Então, o quadro de filiados acompanha um pouco isso, majoritariamente são pessoas que têm essa visão e que vêm, também, de empresas privadas. Eu queria só complementar essa abordagem, mais uma vez, que no que diz respeito a empresas privadas, a gente tem esse desafio de conscientizar em relação à pejotização e a uma série de coisas. E também a questão de chegar junto do sindicato, de se filiar, de contribuir, inclusive financeiramente, de alguma forma é muito importante. A gente tem uma atuação hoje em dia muito no mundo digital, porque a gente entende que redes sociais, apesar de não compactuarmos com tudo o que tá ali dentro e a forma com que as plataformas funcionam, é onde todo mundo está. Então o sindicato tem essa atuação hoje pensando muito nisso. Precisamos avançar no mundo digital porque assim a gente consegue alcançar muito mais gente. É uma categoria hoje dá ordem de 13 a 15 mil pessoas e que, majoritariamente, arrisco dizer que mais de 95%, está na iniciativa privada. Então existe o desafio da gente atuar junto a esse público que é enorme e a gente entende que também temos que estar nesse mundo digital, buscando inclusive filiações, mas é uma situação difícil. Porque se a pessoa questiona o que a entidade do sindicato faz, como que essa pessoa vai pensar em se filiar? Então, de fato, hoje temos “n” desafios e se pegarmos na retrospectiva desses 40 anos, vários desafios se colocaram e tenho certeza que esses desafios que se colocam hoje da gente enquanto entidade, enquanto sindicato, a gente vai dar conta satisfatoriamente de resolver nossa atuação junto a essa base.

Messias: Na pesquisa de 2026/2027, a gente fez uma pesquisa de perfil do que pensam, qual a formação e a origem dos trabalhadores de TI. E como fizemos uma pesquisa envolvendo público e privado, a gente conseguia fatiar. Então você encontrava na área pública, de onde vem a maior parte dos nossos sindicalizados, uma base mais fortemente progressista. Não em termos de esquerda ou de direita, mas uma base mais progressista, conservadora, e no centro. Quando você pegava os dados das empresas privadas, você tinha um universo diferente. Você podia identificar, olhando as opiniões e as posições sobre economia, costumes e política, que somente cerca de 25% da categoria assumia uma postura mais progressista perante o conjunto de questões colocadas nesse âmbito de economia, religião, costumes e participação social. Você encontrava cerca de 35% de pessoas mais conservadoras, então você tinha a diferença do pessoal no meio termo, uma categoria mais ou menos dividida. Em que uma minoria era progressista, o maior agrupamento era conservador, mas tinha um grupo no meio que se identificava lá e cá, por isso eu digo que é uma categoria predominantemente liberal conservadora. Este perfil nas estatais é diferente, as pessoas tendem a ser mais progressistas.
Nas relações de filiação nas empresas privadas, normalmente quem se filia são pessoas que se identificam com o sindicato ou que precisam do sindicato para uma ação jurídica ou que estão enfrentando um drama pesado com empresa e sabe que vai ter uma ação judicial. Apesar de nós fazermos muitos convênios de lazer na tentativa de estabelecer uma parte de serviços do sindicato, nunca foi o forte do sindicato, mas ocasionalmente tem pessoas que vem não pela assessoria jurídica, mas pelos convênios. Posso dizer que, dentre os filiados, temos uma maioria mais progressista do que conservadora. Na base, ainda acho que não mudou muito, melhorou, mas não mudou muito. Eu diria que um quarto poderia se identificar como progressista, numa visão larga do conceito de progressista. E pelo menos 35% mantêm-se bastante conservador. E o outro meio termo está em disputa política e ideológica como está no Brasil colocado. Com o fenômeno da polarização que nós temos, digamos assim, bolsonarismo e petismo, temos uma mudança clara. 2018 a gente sabia que a maioria era antipetista na categoria. Em 2022, pudemos ver pelas nossas redes sociais que havia uma participação diferente, o bolsonarismo havia diminuído de peso nas nossas redes sociais, mas é difícil a presença ideológica.
Eu funciono meio que como uma patrulha dentro do sindicato pra dosar o que a gente pode e o que não pode publicar. Temos que dar doses políticas, cuidadosamente a depender do grupo, porque senão a gente desfaz o grupo durante a campanha salarial. Então é uma relação difícil, mas eu acho que dá para caracterizar essa base como liberal conservadora, e nos filiados predominando uma visão um pouco mais progressista, mas na base ainda não, e não é um fenômeno só daqui. Agora um dado interessante, já que tocamos no assunto de internacionalização eu me lembrei: o rejuvenescimento do sindicalismo americano, que tem vindo fortemente do serviço público, mas também dessa área um pouco mais moderna da economia. No sindicalismo americano se envolvem muitos jovens, muitas pessoas da área de tecnologia, não TI necessariamente, seja via os armazéns operacionais da Amazon, o pessoal da Google… começam a se organizar sindicalmente também lá e isso foi muito fortemente influenciado pela pandemia. O que aconteceu é que quem trabalhava no setor mais informal dessas relações de trabalho com Big Techs, sofreu mais fortemente. Na Starbucks, na Amazon, em outros lugares, eles sofreram mais fortemente a exploração do trabalho. A degradação das relações de trabalho serviu como gatilho para o rejuvenescimento do sindicalismo americano. Aqui a gente não tem esse fenômeno ainda muito claramente, porque aqui o empreendedorismo e a ideologia da prosperidade, entre os evangélicos, o peso dos evangélicos nas periferias junto com o empreendedorismo, a ideia de “eu me viro sozinho” “eu preciso ter condições de me virar sozinho”, faz com que a gente tenha perdido espaço no sindicalismo brasileiro e temos tido dificuldade de enfrentar essa nova lógica no mundo do trabalho.